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Velocidade Furiosa

 

Nas escolas, há muito que quase toda a gente, inclusive nós, usa duas expressões que são tecnicamente contraditórias, mas que na prática parecem não o ser. Uma é quando se diz que cada aluno tem a seu próprio ritmo ou velocidade de aprendizagem, a outra é quando se diz que um aluno não consegue acompanhar o ritmo de aprendizagem da turma. 

Na primeira expressão, dá-se a entender que não é grave um aluno ter um ritmo de aprendizagem mais lento, pois que aprende à sua própria velocidade e, mais tarde ou mais cedo, chegará onde os restantes já chegaram. Na segunda expressão, dá-se a entender que um aluno cujo ritmo de aprendizagem é mais lento do que o dos seus colegas de turma, algum problema de “velocidade” há de ter.

Não é invulgar que a mesma pessoa, seja ela docente, psicólogo ou encarregado de educação, use as duas expressões num curto espaço de tempo sem sentir que uma, como que contradiz a outra. 


A questão é difícil e, por consequência, não é fácil de resolver. O problema das questões difíceis é precisamente esse, ou seja, o de normalmente não serem fáceis de resolver.


Ponhamos o exemplo do aluno X. Como os nossos leitores com um ritmo de entendimento mais veloz hão de calcular, não há nenhum aluno que se chame X. Ao usarmos o termo X, pretendemos dar a este nosso texto um tom científico que, caso chamássemos ao hipotético aluno Felisberto, jamais teria.

Isto sem desprimor para os eventuais Felisbertos que nos leiam. Usámos o nome Felisberto como um mero exemplo, do mesmo modo que poderíamos ter usado Cunha da Silva Telles, Zé das Couves ou Barbosa de Vasconcelos.

(Um beijinho para os Felisbertos)

O aluno X apreende, compreende e aplica os conhecimentos, só que o faz de um modo muito mais lento que todos seus colegas. Imaginemos uma turma do 1° ano de escolaridade.

No método analítico-sintético de aprendizagem da leitura, os alunos começam por aprender as vogais, depois os ditongos, seguindo-se as consoante, o “p”, o “t”, o “v” e por aí afora.

Decorridos uns meses do início do ano letivo, já todos os alunos, excepto o X, conseguem ler pequenas frases com palavras com vogais e com algumas poucas consoantes, como por exemplo, “O pipi é da titi” ou “A titi vai à vila no popó do papá”.

 

Todavia, o hipotético X, em vez de já ir no popó do papá e no pipi da titi, continua a digladiar-se com os ditongos “ai, ui, ai, ui, ai” e não passa disso.

Provavelmente, saiu à titi, pois que também ela deve ser muito dada aos ditongos “ai” e “ui”, sobretudo, quando vai à vila no popó do papá.

 

Talvez alguns dos nossos leitores considerem que este tipo de frases com pipis, titis e popós, não sejam muito adequadas para alunos de tão tenra idade, mas o facto é que, no método analítico-sintético, existem. E, caso tenham dúvidas, é ver o texto na ficha de trabalho abaixo.

Temos novamente uma Titi, só que desta vez, está acompanhada por um tio chamado Tomé. O Tomé observa a Titi a mimar uma pata e um patito.

Pela leitura do texto, pressupõe-se que o Tomé sentiu um repentino desejo de também receber os mimos da Titi. Razão pela qual, (presumivelmente) se pôs a apitar a mota. Apita Tomé, apita. Apita que pode ser que tenhas sorte.

Muito apropriadamente, a mota do Tomé faz Pi…Pi…Pi…What Else?




Posto isto, voltemos aos ritmos e velocidades para colocarmos a seguinte questão: estará X (ainda se lembram dele?) a seguir o seu próprio ritmo de aprendizagem e não há motivos para preocupação ou, pelo contrário, estará o X a não acompanhar o ritmo da turma e começa a haver razões para nos preocuparmos? Não sabemos.

 

Coloquemos um outro exemplo de diferente cariz, mas com semelhante dilema. O aluno Y (mais um termo científico) chega sistematicamente à escola com 55 minutos a uma hora e meia de atraso. Ao questionarmos os encarregados de educação sobre as razões para tal, estes respondem-nos que o ritmo biológico de Y é lento e que, por consequência, só acorda lá mais para o meio da manhã.

Acrescentam ainda, que é importante respeitarmos o ritmo biológico das crianças e não as acordarmos quando estão a dormir. Que fazer neste caso? Respeitar o sono da criança? Exigir-lhe que chegue a horas? Não sabemos.

Sabemos sim que, o que qualquer uma destas duas situações reflete, é a disparidade que frequentemente existe entre o ritmo individual de cada um e o ritmo comum, que, por definição, deveria ser compartilhado por vários.

 

Com certeza, já a alguns de vós aconteceu combinarem com grupo de vários amigos às 15 horas em ponto no café da esquina. Como vós tendes um ritmo individual que se pauta pela pontualidade, chegam à hora acordada. Mas, esse vosso ritmo individual, não está harmonizado com o ritmo comum, subsequentemente, todos esses amigos, que têm um ritmo diferente do vosso, chegam quarenta a cinquenta minutos depois do combinado. O que fazer? Secar? Ir à nossa vida? Não sabemos.

 

A conflituosa dialéctica entre o ritmo individual e o comum, atravessa todas as situações. Nem sequer é preciso referirmo-nos a grupos tão extensos, como uma turma ou um conjunto de amigos. Com efeito, bastam apenas dois elementos para que essa dialéctica se manifeste. A situação é tal, que mesmo sendo essas duas pessoas muito íntimas e próximas, ainda assim, há desencontros de ritmos.

 

Imaginemos duas pessoas, duas individualidades, cada qual com o seu ritmo, que, dando-se particularmente bem uma com a outra, se propõem levar a cabo uma tarefa em comum.

Uma delas, tem um ritmo muito elevado e acaba velozmente a sua parte, dando o tarefa por terminada. Já a outra, tem um ritmo mais pausado, e por conseguinte, sente que a tarefa não foi concluído satisfatoriamente. Não o dando assim por finalizada.

Em tais situações, o elemento do par cujo ritmo é mais pausado, ou resigna-se a dar a tarefa comum por terminada e aceita a frustração daí decorrente, ou então, continua a tarefa ao seu ritmo individual, à velocidade que mais lhe apraz. Qual a solução mais adequada? Não sabemos.

 

Numa das mais notáveis cenas do filme “Tempos Modernos”, Charlie Chaplin interpreta um trabalhador cujo ritmo de trabalho é muito distinto do ritmo que a fábrica lhe impõe. Charlie Chaplin trabalha a um ritmo humano, a fábrica funciona a um ritmo mecânico, a uma velocidade furiosa. Ele tenta adaptar-se, mas não dá, acaba por ser engolido pela maquinaria.



Em síntese, relativamente aos desencontros entre ritmos individuais e ritmos comuns, pouco sabemos, sabemos apenas que existem.

Sabemos também, que quando o ritmo é o certo, é como se tudo dançasse, como na canção “I Got Rhythm", aqui protagonizado por Gene Kelly:






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