PVC (material plástico com utilizações muito diversificadas) é uma sigla bem gira, mas pouco usada em educação. A classe docente e o Ministério da Educação adoram siglas. Ele há os os QZP (Quadros de Zona Pedagógica), ele há os NEE (Necessidades Educativas Especiais), ele há o PAA (Plano Anual de Atividades), ele há as AEC (Atividades de Enriquecimento Curricular), ele há o PASEO (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória), ele há a ADD (Avaliação do Desempenho Docente), ele há os colegas que se despedem com Bjs e Abc, ele há tantas e tantas siglas que podíamos estar o dia inteiro nisto.
Por norma, a linguagem ministerial é burocrática e esteticamente pouco interessante, as siglas são apenas um exemplo entre muitos outros possíveis. Foi por isso com surpresa e espanto, que num deste dias nos deparámos com um documento da DGE (Direção Geral de Educação) relativo ao PASEO, no qual se diz que os alunos devem “aprender a apreciar o que é belo”. Assim, sem mais nem menos, uma frase límpida e cristalina: aprender a apreciar o que é belo...
Nós por cá sempre
gostámos de apreciar o que é belo, mas precisamente por isso, sabemos o quão
perturbante tal prática pode ser. Não temos a certeza que a classe docente
esteja efetivamente preparada para correr esse tipo de riscos. Colocar a classe
docente e respetivos discentes, assim de repente, sem haver sequer umas quantas
ações de formação previamente creditadas, a apreciar o que é belo, talvez seja
demasiado imprudente. Muitos professores são muito bem capazes de se aleijar.
O imenso poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) escreveu assim:
“Pois o belo nada mais é do que o começo do terrível”.
Rilke nasceu em Praga, mas a única língua que lhe servia para a sua poesia, era a bela língua germânica. Citemos novamente a sua frase acerca do que é o belo, mas desta vez em alemão: “Denn das Schöne ist nichts als des Schrecklichen Anfang”.
Há muitas palavras
belas na língua alemã, mas são palavras que magoam e arranham, como por exemplo
“Schrecklichen”. Diante a beleza, todo o cuidado é pouco.
Viajemos até
Hollywood, até 1955, ano em que foi realizado o filme “O pecado mora ao lado”.
A história é simples, Richard, um pacato cidadão, casado e com um filho,
prepara-se para passar uma temporada sozinho em casa, enquanto a esposa e o
filho vão de férias visitar a família. Tudo muito normal, tudo muito tranquilo.
Sucede que nesse mesmo dia, se muda para o prédio uma nova vizinha. Uma bela
vizinha.
Vejamos a cena em que
Richard conhece a nova vizinha. Richard começa por tropeçar num patim que o
filho deixou desarrumado pela casa, nisto, toca a campainha. Richard abre a
porta e depara-se com a vizinha. Para apreciar convenientemente a sua beleza,
Richard começa logo por dar um mau jeito ao pescoço, mas esse é só o primeiro e
o mais leve dos muitos achaques que vai sofrer. Também para o pacato Richard, a
beleza é só o começo do terrível:
Algo ou alguém pode ser muito bonito, muito lindo ou muito jeitoso, mas a beleza é outra coisa, é um desassossego, como que queima. Pertence a um cientista, e não a um poeta ou a um artista, uma das mais certeiras frases acerca do belo. Foi Albert Einstein quem disse:
“O que há de mais belo na nossa vida é o sentimento do mistério”.
“Aprender apreciar o
que é o belo”, pode muito bem significar saber sentir, ver, ouvir e ler o
terrível mistério que há em todas coisas vivas e não-vivas. Em 1887, Vicent Van
Gogh pintou um par de botas. Não pintou uma grandiosa paisagem, uma heróica
cena histórica ou um retrato de uma importante personalidade, pintou sim um
mero e vulgar par de botas. Van Gogh vislumbrou nesse simples par de botas, o
terrível mistério de todas coisas, o mesmo é dizer, a sua beleza.
Van Gogh nasceu na
Holanda em 1853 e morreu em França em 1890. Foi um pintor pós-impressionista.
Vincent teve vários episódios psicóticos, num dos quais cortou a própria
orelha. Negligenciava a sua saúde, não fazia uma alimentação saudável e bebia
muito. Não teve qualquer sucesso nem reconhecimento durante a sua vida e era tido
como um louco e um fracassado. Hoje em dia as suas obras estão entre as mais
caras do mundo e são frequentemente vendidas por valores acima dos cem milhões
de dólares.
Apenas pelo conhecimento destes factos, imediatamente compreendemos que a beleza que Van Gogh via em todas as coisas, estava intimamente associada a qualquer coisa de terrível.
Em 1928, o poeta
Carlos Drummond de Andrade publicou o mais belo, célebre e controverso poema de
toda a literatura brasileira, No meio do caminho.
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do
caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Tal como as vulgares botas pintadas por Van Gogh, também uma simples pedra no meio do caminho pode guardar em si toda a beleza do mundo, o seu terrível mistério. Drummond casou-se em 26 de fevereiro de 1926 com a amada Dolores Dutra de Morais. Um ano depois nasceu o primeiro filho do casal: Carlos Flávio. Por uma tragédia do destino, o menino sobreviveu apenas por meia hora. Uma das interpretações possíveis para o poema de Drummond, é a de que este seria uma espécie de túmulo para o filho.
Nas escolas gosta-se muito de fazer lindas exposições com trabalhos de expressão plástica muito bonitos, originais e coloridos, tudo muito bem, porém, aprender a apreciar o belo é outra coisa.
Para terminar dizemos-vos que talvez a melhor introdução, que alguma vez possamos fazer ao que é saber apreciar o belo, seja ver uma cena do muito oscarizado filme “American Beauty”. Nessa cena, de cerca de três minutos, vemos um saco de plástico ao sabor do vento. Quem souber ver, ouvir e sentir, adivinha o quão terrível, misteriosa e bela é a vida só por contemplar os movimentos desse saco de plástico:
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