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Professores regressam às ruas de Lisboa e nós também

 


Os professores voltam hoje a Lisboa. Nos últimos tempos, os professores vão para a escola contrariados, quase obrigados, contudo, é sempre com entusiasmo que regressam às ruas da cidade.

Também outrora nós fomos assim, íamos para a escola meio-amuados e levemente entediados, mas percorríamos Lisboa sempre plenos de vida e alegria.

 

Quando novos, era a cidade quem nos ensinava, era a cidade a quem mais amávamos. Era a cidade, e não a escola. Não que enquanto alunos nos déssemos mal com a escola, simplesmente não havia uma grande afinidade entre “ambos os dois”.

Por nosso lado, à escola, não lhe causávamos aborrecimentos. Nem éramos indisciplinados, nem tínhamos dificuldades de aprendizagem. Por o outro lado, o da escola portanto, verdade seja dita que também não nos maçava. Nem exigia que estivéssemos sempre presentes, nem insistia que nos esforçássemos mais, do que aquilo que era estritamente necessário para transitar de ano com o mínimo de dignidade.

Em resumo, entre nós a escola havia uma relação tépida, funcional e meramente de fachada. Ninguém chateava ninguém e lá íamos todos andando, dia após dia, ano após ano, com a cabeça entre as orelhas.

 

Já com a cidade, a relação era outra. Aí havia intensidade. Em cada esquina nos víamos. Em cada rua nos encontrávamos. Era nela em quem nos revíamos. Era com ela que aprendíamos.

Se porventura, os leitores nos quiserem agora acompanhar numa marcha por esses tempos e lugares de Lisboa, fica o convite.

 

Let us go then, you and I

Let us go, through certain half-deserted streets

When the evening is spread out against the sky…

 

Em Alfama havia uma palmeira, não uma palmeira qualquer, uma palmeira única. Tinha vindo de África há mais de 500 anos. Foram os marinheiros do tempo das Descobertas que a trouxeram. De um dos mais luminosos miradouros de Lisboa, o Largo das Portas do Sol, passados séculos, ainda hoje podemos ver essa palmeira. Mede para cima de dez metros e eleva-se sobre o casario que lentamente desce do alto até ao rio.

Quem quer que tivesse nascido por entre os becos e vielas de Alfama, sabia de cor e salteado a história dessa palmeira. Conhecia-a desde criança.

Ia-se pela rua e, a propósito de tudo e de nada, havia sempre quem contasse as aventuras e desventuras dessa palmeira: a região de África donde a trouxeram, os mares por onde havia navegado e tudo aquilo a que assistira, desde que há séculos a tinham colocado a observar lá do cimo Lisboa, o Tejo e tudo.

Ao ouvirmos as histórias que nos contavam, aprendíamos os nomes de continentes, de oceanos e de marinheiros. Sabíamos como se tinha vivido noutros tempos e noutros lugares. Sabíamos das coisas a que lá do alto essa palmeira tinha assistido. De como tinha visto partir do cais El-Rei D. Sebastião para não mais voltar. De como tinha visto chegar ao Tejo as caravelas de Filipe I, o novo senhor de Portugal. De como tinha visto a cidade desfazer-se em ruínas, de como caiu o Carmo e a Trindade e o mar veio pelo Terreiro do Paço adentro tudo arrastando consigo. 

Sabíamos de como tinha visto tudo isso e muito mais.





Era a cidade, e não a escola, quem nos ensinava. Era a cidade, e não a escola, a quem amávamos.

Na cidade havia filmes. Filmes muito diferentes dos atuais. Nos atuais, os atores esforçam-se em demasia para ficar à frente das câmeras e reivindicar para si o protagonismo. Todavia, uns, já estão muito vistos e dizem sempre as mesmas coisas, da mesma forma há muitos anos. Outros, estrelas recentes, fazem muito barulho, esbracejam, indignam-se, mas a nós parece-nos uma espécie de “overacting”, ou seja, desconfiamos que é fita a mais.

Mas deixemos esses filmes de hoje, recordemos antes os de antigamente. Descer a avenida continha em si imensas promessas que sabíamos irem ser cumpridas. Promessas de viagens, de aventuras, de romances e de tudo o mais que a vida tem.

Era nas salas de cinema que essas promessas se materializavam. Em salas enormes com ecrãs gigantescos, tudo “Bigger than Life”.

 

Junto á Praça dos Restauradores havia os cinemas Éden e Condes. Mais lá para o topo da avenida, o São Jorge e, do outro lado da estrada, quase em frente, o Tivoli. No São Jorge vimos quase todos os filmes de Woody Allen. Era, e continua a ser, o nosso humorista favorito. Foi ele quem nos ensinou algumas das maiores verdades sobre a existência humana. Muitas das suas frases ainda hoje nos servem de farol, eis alguns exemplos:

"Se ao menos Deus desse um sinal claro que existe…Como por exemplo fazer um grande depósito em meu nome num banco suíço."

"A realidade é dura, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife.

"Há casamentos que acabam bem. Há outros que duram para sempre."

"O cérebro é o meu segundo órgão favorito."

"A vantagem de ser inteligente é que podemos fingir que somos imbecis, enquanto o contrário é completamente impossível."

 

Foi do outro lado da estrada, no Tivoli, que assistimos a um grande clássico que nos marcaria para sempre, “O Leopardo” de Luchino Visconti. O filme foi realizado em Cinemascope e ocupava a totalidade da imensa tela do Tivoli.

O filme baseia-se num romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. A determinado momento da narrativa, o sábio Príncipe Don Fabrizio Salina proferiu uma frase a que muitos deveriam prestar atenção:

"É preciso que algo mude, para que tudo fique na mesma."

 

Era a cidade, e não a escola, quem nos ensinava. Era a cidade, e não a escola, a quem amávamos.


As ruas da cidade tinham as suas horas noturnas. Delas dizia o poeta Cesário Verde:

 

Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer

 

À noite, também muito se aprendia. Pelas tascas e tabernas de então, algumas delas mal-afamadas, havia gente que bebia e cantava o fado. Gente simples, vizinhança e amigos que por acaso apareciam. Tivessem ou não boa voz, cantassem bem ou mal, estivessem ainda compostos ou já muito entornados, todos tinham a sua oportunidade.

Não se tratava de dar espetáculo. Tratava-se sim de se confessarem, de partilhar com quem assistia o que lhes ia por dentro. De outra forma jamais o conseguiriam fazer. Notava-se-lhes no rosto e na voz que tinham vivido aquilo que cantavam.

Ao vermos e escutarmos, percebíamos aquilo que nenhuma escola ensina. Percebíamos o que é uma alma vencida e porque choravam as guitarras. Por muito que hoje em dia, haja quem se dedique a propor aos alunos atividades para gerir as emoções, uma coisa é certa, por melhores que sejam essas atividades, nunca conseguirão dar a perceber o que é o amor, o ciúme, as cinzas e o lume, a dor e o pecado, como o davam a saber por essas tascas e tabernas.

 

E pronto, terminamos por aqui esta nossa marcha. Para finalizar, Carlos do Carmo, um rapaz de Lisboa, um homem da cidade. Um, como tantos, que de trabalhar nunca se cansa e por amar a liberdade com a cidade se levanta:



 



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