Em Portugal em matéria de educação fala-se muito, opina-se abundantemente, discute-se bastante, mas sabe-se pouco. Pelo menos se formos a avaliar por um pequeno “tour” que fizemos a alguns sites, chats e blogs dedicados à educação. Graça a Deus, há uns quantos bastante interessantes, mas há outros que infelizmente não o são e que se limitam a amplificar o ruído e a confusão.
Nos últimos tempos, claro que são as reivindicações profissionais e as greves o tema central em discussão, contudo, antes disso, ou paralelamente a isso, existia e existe um outro assunto que também motiva discursos inflamados e acesas trocas de opiniões. Referimo-nos ao “novo” paradigma educacional resultante da implementação do “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PASEO)”.
Para além da
enorme contestação que este paradigma globalmente gera nalguns setores, há
depois pontos em específico, em que as reações são mais viscerais, como sucede
no caso das mudanças no sistema de avaliação e classificação dos alunos e do muito
odiado Projeto MAIA (Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação
Pedagógica).
O objetivo deste
projeto, para quem eventualmente o desconheça, é criar condições para que a
avaliação pedagógica seja integrada nos processos de desenvolvimento curricular
e se articule com o ensino e com a aprendizagem.
Nós aqui não
pretendemos entrar em ruidosas discussões do tipo prós e contras, pretendemos
sim viajar no espaço e no tempo, até Paris mais concretamente. Pretendemos
apenas que se perceba que este “novo” paradigma educacional tem atrás de si uma
já longa história.
Viajemos então
até Paris. Estamos no ano de 1968, o mês é maio. Paris está a ferro e fogo, as
manifestações sucedem-se, a contestação é diária e a revolta é imensa. O regime
treme.
Importa aqui
recordar, que o Maio de 68 foi a primeira grande revolta popular que teve
origem no interior de um sistema educativo. Ao contrário da maior parte das
revoltas por esse mundo fora, o Maio de 68 não teve origem nem na classe
operária, nem nos pobres e oprimidos, nem nas forças armadas, nem sequer
exclusivamente nas universidades. Foi uma revolta muito original, pois nasceu
simultaneamente nas escolas, nos liceus e no ensino médio e superior.
Quase
profeticamente, dois meses antes de maio, o editorial do jornal “Le Monde” de
15 março de 1968, intitulava-se «Quand la France s’ennuie» (Quando a França
se entedia). Esse editorial viria a ficar famoso e a constar dos livros de
história, pois que de algum modo foi o presságio para a revolta que pouco tempo
depois se seguiria.
Em 1968 a França
estava entediada, chateada e aborrecida. Os dias passavam iguais, nada de novo
sucedia e parecia que tudo tinha sobraçado numa estagnação sem fim. O país
cheirava a naftalina e vegetava num conservadorismo bacoco, que por nada mais
ansiava, do que limitar-se a replicar o passado e a viver como habitualmente.
Em meados do
século XX, quem de França olhasse para outro lado do Atlântico, para a América,
via uma nação dinâmica, feliz, próspera e audaz. A nação do futuro, que iria
chegar à lua e sabe-se lá mais onde. Enquanto isso, e ao contrário do que dizia
o título de um célebre romance de Ernest Hemingway (Paris é uma festa), por
terras gaulesas o conformismo e o comodismo tinham-se instalado.
O tédio que esse
comodismo e conformismo geraram, acabou por ser o catalisador para uma
contestação global ao sistema de ensino vigente. Existia um sentimento
generalizado que o sistema educativo estava caduco, que os métodos, as
aprendizagens e as avaliações estavam fora de prazo e que eram completamente
inúteis para a vida futura. A escola era vista como um empecilho, como uma
prisão.
Num ensaio do investigador de ciências da educação Youeen Michel, cujo título é “Mai 68 et l'enseignement : mise en place historique”, faz-se referência ao editorial do “Le Monde” e pode ler-se o seguinte: “ce n’est pas seulement «la France qui s’ennuie», ce sont aussi les élèves dans leurs classes et les étudiants dans leurs amphis.” (não é apenas a França que se entedia, também os alunos se entediam nas suas salas de aula e os estudantes universitários nos seus anfiteatros).
Como já vimos,
nessa época, os alunos das escolas, liceus e universidades francesas ansiavam
por algo de novo, ansiavam por uma reforma educativa governamental que ficou
conhecida pela expressão “Éducation nouvelle”.
A “Éducation nouvelle” estava na ordem do dia e era um tema cujo debate não se restringia aos círculos especializados. A urgente reforma e modernização da educação era um assunto que motivava abundantes debates públicos e que se discutia nas televisões, nos jornais, nos cafés, nos cabeleireiros, em família e entre vizinhos.
Muito genericamente, o que a “Éducation nouvelle” visava era promover métodos ativos e evitar o divórcio entre o saber livresco, ou seja, o saber que constava nos manuais e sebentas, e as novas exigências sócio-profissionais. Visava também evitar a separação entre a escola e a vida.
O problema foi
que as reformas prometidas pela dita “Éducation nouvelle”, tardavam em ser
efetivamente implementadas pelos governantes. Houve resistências várias,
contínuos adiamentos e o imobilismo parecia ir sair vencedor, até que,
subitamente, deu-se a explosão do Maio de 68 e tudo mudou quase de um dia para
o outro.
A contestação
inicialmente surgida no interior das escolas, dos liceus e das universidades,
alastrou-se rapidamente a outros setores, nomeadamente, a movimentos políticos
e sindicais, e, de repente, a França estava na rua, já não era apenas o ensino
que interessava, clamava-se pela revolução total.
No ano letivo
seguinte, 1968-69, já muito tinha mudado. Francis, um jovem aluno de então,
explicava assim as mudanças a um jornalista: “On pouvait poser quelques
questions pour mieux se faire expliquer les choses, mais il était hors de
question de contester quelque chose. L'idée que l'on puisse parler des choses
était impensable. On ne pouvait pas avoir son point de vue, il y avait un point
de vue qui était celui du manuel scolaire. La curiosité intellectuelle n'était
pas du tout encouragée." (Antes podíamos colocar questões para que nos
explicassem melhor as coisas. Mas estava fora de questão que as contestássemos.
A ideia que pudéssemos falar das coisas era impensável. Não podíamos ter o
nosso ponto de vista. Só havia o ponto de vista do manual escolar. A
curiosidade intelectual não era encorajada).
Marie-Thérèse, também ela uma jovem aluna desse tempo, deu igualmente o seu testemunho: “Plus d'estrade, le professeur n'était plus au dessus des élèves mais à leur niveau. On a fait disparaître les notes et les compositions dans chaque matière. On a compris qu’il fallait dispenser un enseignement différent selon les élèves. Les jeunes professeurs se sont tous engouffrés dans cette rénovation avec grand plaisir. Moi j'étais très contente de retrouver cet esprit de pionniers, c'était exaltant, on inventait, on créait." (Desapareceu o estrado, o professor já não estava num plano superior ao dos alunos, mas ao seu nível. Desapareceram as notas e os testes para cada matéria. Compreendeu-se que é preciso ensinar de um modo diferente consoante os alunos. Os jovens professores envolveram-se nessa renovação com grande prazer. Eu fiquei muito feliz por encontrar esse espírito pioneiro, era exaltante, inventava-se, criava-se).
Estes testemunhos e muitos outros, podem ser lidos, vistos e ouvidos na íntegra em:
E pronto,
terminamos aqui a nossa viagem no tempo e no espaço com uma conclusão que nos
parece óbvia, o que atualmente em Portugal se chama o novo paradigma educativo,
tem mais de cinco décadas. Quando depreciativamente se fala em
“experimentalismo”, a única coisa de que se dá mostras é de falta de
conhecimento.
Há imensos e
aprofundados estudos, ensaios e teses sobre a história do “novo” paradigma
educativo, sobre a forma como há décadas vem sendo implementado em França e
noutros países, as dificuldades que foram sentidas e os resultados obtidos. É
uma questão de se ir ler e estudar, antes de se começar a falar, a discutir e a
opinar.
Na verdade, o “novo” paradigma é até mais antigo. Foi há um século, há 100 anos portanto, que esse novo paradigma começou a ser implementado nas zonas mais progressistas dos Estados Unidos da América. Mas essa viagem fica para uma próxima oportunidade.
Por agora,
deixamo-vos a melancólica Françoise Hardy nos tempos pré-Maio de 68. Tempos em
que nada de novo sucedia e os “jours comme les nuits, sont en tous points
pareils, sans joies et pleins d'ennuis":
0 movimento da Escola Nova ė muito anterior ao movimento francês. Já Comenius (1592-1670) foi um percussor da inclusão com o seu mote "ensinar tudo a todos". O expoente do movimento seria no final do século XIX, início do século XX, com John Dewey. Celestin Freinet foi a referência do movimento em França. No Brasil, a obra de Paulo Freire foi um marco de luta contra a "conceção bancária da educação". No final do século XX, mais concretamente nos anos 90, um conjunto de teóricos impulsiona com vários estudos, a prendizagem ativa, como Donald Schon,Perrenoud, Bogdan e Biklen, Albano Estrela,António Nóvoa, Feiman-Nemser, Shulman, Maria do Céu Roldão, Maria de Fátima Cavaleiro Sanches, João Pedro da Ponte entre tantos, tantos outros...volvidos mais de 30 anos pouco ou nada mudou e a discussão está mais estéril do que nunca.
ResponderEliminarErrata: onde se lê percussor deve ler-se precursor.
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