Poderá a
expressão “professora primária” ser recuperada como um termo que designe um
tipo de personagem literário? Que ninguém se sinta melindrado, não estamos a
chamar a ninguém “professora primária”, longe de nós, cruz credo.
Tipos de
personagens literários há muitos, como por exemplo, entre outros, o herói, o
vilão, o galã, a ingénua, a romântica, a lutadora, a bruxa, a fada, a princesa,
a sedutora, o velho sábio ou o aventureiro. E o que na verdade estamos a
sugerir, é que a todos estes, poder-se-ia muito bem acrescentar mais um tipo de
personagem literário, a saber, “a professora primária”.
Entenda-se que,
ao usarmos a expressão “a professora primária”, não estamos a referir-nos a
uma classe profissional, até porque, no contexto laboral, já nem sequer existem
professoras primárias. O que agora existe são docentes do 1° ciclo, que é uma
coisa muito diferente.
Nós bem sabemos
o quão diferente é, pois enquanto petizes tivemos várias professoras primárias.
Não as tivemos, às várias, por ter chumbado de ano, mas sim porque em cada ano
de escolaridade havia uma diferente.
De todas elas
temos vívidas recordações. Era com cada galheta, com cada lamparina e com cada
ralhete que levámos, que até íamos de avião. Felizmente que esses tempos, o das
professoras primárias, já lá vão.
Resumindo, do que estamos a falar, é de recuperar a expressão “professora primária”, não como um termo que designe uma classe profissional, mas sim como a designação de um tipo de personagem literário.
Como um tipo literário, a expressão “professora primária” designaria um personagem meio patusco, que quase sempre se apresenta com um ar rezingão e que nos está constantemente a repreender. O menino (ou a menina) não fale tanto, faz favor de se sentar, esteja sossegado, isso não se diz, porte-se como deve de ser, acha que o que fez está bem feito, arrume lá isso, não tem vergonha nenhuma, faça o trabalho, e por aí afora. São estes os dizeres típicos do tipo literário que propomos.
A existir um
personagem literário tipo “professora primária”, seria alguém cuja principal
característica era fazer-nos sentir que estamos sempre em falta, que somos
sempre culpados de algo. Isto a não ser que sejamos uns bons meninos (ou
meninas), muito bem comportados, obedientes, respeitadores e trabalhadores.
Como se
depreende do que foi dito, em termos literários, “professora primária” pode ser
qualquer um (ou uma). Tanto poderá exercer funções no 1° ciclo, como no 2° ou
3°, tal como no ensino secundário, pré-escolar ou universitário. Poderá nem
sequer ter nada a ver com a escola. Há por aí muita personagens reais muito
semelhantes ao tipo “professora primária”, há os que trabalham em repartições
de finanças, em bancos, no comércio e em muitos outros sítios.
É também
indiferente qual seja o género, há tipos “professoras primárias” quer do sexo
feminino, quer do masculino, quer de qualquer um dos outros géneros de que
agora não nos lembramos do nome.
Uma coisa é a vida da escola, outra coisa é a escola da vida. São muitos os grandes escritores, que após crescerem e entrarem na escola da vida, se queixaram amargamente nos seus escritos da vida na escola.
As recordações da vida na escola dos grandes escritores, nunca são particularmente felizes. São inúmeros os relatos literários com memórias da escola, como sendo esta um local chato, castrante, pouco criativo e triste.
São relatos que
atravessam os séculos e as geografias. Não raras vezes, aparece nesses relatos
um personagem correspondente ao que acima designámos como o personagem
literário tipo “professora primária”.
Umas vezes é
efetivamente uma professora, muitas vezes é um professor, um diretor, um tutor
ou um outro alguém. Em qualquer dos casos, é sempre uma figura autoritária,
arrogante e muito pouco esclarecida relativamente ao vasto mundo que existe
para lá das paredes de uma escola.
Charles Dickens, por exemplo, descreveu abundantemente esse tipo de personagens em muitas das suas obras literárias.
O que fundamentalmente caracteriza esse tipo de personagens literários, é viverem numa situação paradoxal. Por um lado, aprenderam muito pouco na escola da vida, pois passaram de estudantes a professores e viveram quase sempre em restritos contextos académicos, sejam estes de nível básico ou superior. Mas por outro lado, possuem autoridade para exercer funções nas quais se apresentam como detentores e transmissores do saber. Em síntese, sabem pouco da vida, mas aparentam ser detentores do saber.
A consequência
desta situação paradoxal, é que o saber que estes personagens detêm, se limita
frequentemente ao restrito saber académico e pouco mais do que isso. Como estes
personagens pressentem, ainda que inconscientemente, o seu grande
desconhecimento relativamente aos saberes da vasta escola da vida, ou seja,
desconhecem quase tudo o que há para lá das paredes da instituição escolar,
sentem um grande desconforto, ao qual reagem com frustração, resignação e
irritação.
Os personagens literários tipo “professora primária”, não são culpados desse seu destino. Isso podemos nós perceber lendo os grandes escritores. São personagens que simplesmente foram apanhados numa teia institucional que os prende e os emaranha.
Se os
personagens literários forem mesmo docentes, o que nem sempre é o caso, a teia
que os emaranha é constituída por um conjunto de procedimentos, regras e
matérias a roçar o absurdo.
A sua
absurdidade advém dessas práticas pouco ou nada terem que ver com a vida que
existe fora da escola. São regras, procedimentos e matérias que mais do que
educar, deseducam. Terá sido por isso, que o grande escritor norte-americano
Mark Twain, que citamos sem traduzir, escreveu um dia: “You must never let
schooling interfere with education.”
Na escola da
vida, o mundo muda constantemente. Temos de aprender continuamente a
adaptarmo-nos, a renovarmo-nos, a ser criativos, a trocar ideias e argumentos e
a pensar. Na escola da vida aprendemos a mudar de regras, de procedimentos e de
matérias consoante o momento.
Na vida da
escola, nem sempre é assim. Frequentemente repetem-se os mesmos procedimentos,
seguem-se as mesmas regras e ensinam-se as mesmas matérias, sirva tudo isso
ainda para alguma coisa, ou já não sirva absolutamente para nada.
Há saberes
eternos. Serviam-nos nos tempos da Grécia clássica e continuam a servir-nos nos
dias de hoje. Se calhar até nos servem mais nos dias de hoje, do que nos
serviam nos tempos de outrora.
Há coisas que
temos sempre de aprender: a ler, a escrever, a contar, a ver o céu, a
contemplar o mar, a apreciar a beleza de uma obra de arte, a escutar uma bela
melodia e a olhar alguém nos olhos.
Há outras coisas
que já não nos servem para nada. Já não nos servem agora e muito menos nos
servirão no futuro. Coisas como repetir “ad infinitum” exercícios
estereotipados, ou coisas como usar a memória apenas para decorar respostas
para as expelir em testes ou exames. Isso só serve, quando serve, para tirar
boas notas, para nada mais.
Com essas coisas
que já de pouco ou nada servem, não vale a pena perdermos tempo. Há imenso para
mostrar, para falar, para discutir e para pensar. Há tanto, que se poderia
levar uma vida inteira a fazê-lo.
Mostrar, falar,
discutir e pensar é o que vale mesmo a pena fazer, pois em boa verdade, é muito
duvidoso que haja algo que valha a pena, que possa verdadeiramente ser
ensinado.
Só personagens
literários tipo “professora primária”, é que ainda acreditam piamente que têm
algo para ensinar. Citando um outro grande escritor, Oscar Wilde, e mais uma
vez na língua original: “Education is an admirable thing. But it is well to remember from time to time
that nothing that is worth knowing can be taught.”
Queremos ainda
falar-vos de um outro enorme escritor, o argentino Júlio Cortázar. No dia 28 de
junho de 1963, Júlio Cortázar publicou um romance cujo título original é “La
Rayuela”. A tradução literal para português seria o jogo da macaca. Por alguma
razão, os editores portugueses acharam que esse título não teria a dignidade
literária suficiente e traduziram “La Rayuela” por “O Jogo do Mundo”.
O que esse
romance tem de único, é que pode ser lido de diversas formas. Os seus 155
capítulos podem ser lidos sequencialmente, ou seja, do princípio ao fim. Mas
também se pode optar por seguir a proposta do próprio Júlio Cortázar e ler só
até ao capítulo 56 prescindindo do resto. Pode também ser lido pela ordem que o
leitor deseje, começando e terminando em qualquer um dos capítulos. E pode
ainda ser lido de acordo com uma tabela (que se encontra no início do livro)
que propõe uma leitura completamente distinta, saltando e alternando capítulos.
Seja qual for a sequência da leitura, há sempre uma história.
Júlio Cortázar
odiava a escola e, sobretudo, aquela mania que existia no tempo em que havia
professoras primárias que iam seguindo religiosamente as páginas dos manuais
escolares dia após dia, mês após mês e ano após ano. Felizmente que hoje já não
existem. Quando muito existirão apenas como um tipo de personagem literário, ou
seja, ficcional.
Terminamos com uma citação de Júlio Cortázar, que se refere a tempos já passados. Também esta citação está na língua
original:
“La escuela y la práctica educativa se representan
bajo signo negativo: a través de la imposición de modelos inapelables e
igualmente absurdos, tiene como objetivo y efecto la formación de sujetos
tipificados, carentes de toda disensión y juicio crítico; condenados, en
consecuencia, a la repetición piadosa, a la inercia, a la inacción. Del proceso
de (de)formación de los “sujetos” deviene su incapacidad de cuestionamiento y
el acatamiento absoluto de las normas impuestas. La escuela, ahí donde nunca
había un por qué, donde solamente se podía seguir adelante y el único poder
posible era una orden.”
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