Bem sabemos que os
professores se queixam da papelada, mas nesta época do ano, a coisa tende a
piorar, pois chovem pedidos de relatórios de todos os lados. Nesse contexto,
muitos serão os docentes, que hesitam sobre qual será a melhor forma de iniciar
a escrita dos textos dos seus múltiplos relatórios.
Muitos estarão como certos alunos que, colocados perante a tarefa de escrever um texto, matutam, pensam e repensam, e passados uns poucos minutos, dizem qualquer coisa do género: “Não sei como começar”.
O não saber como se iniciar um texto, não só é frequente acontecer com alunos e docentes, mas sim com toda a gente, inclusivamente, com experimentados e prestigiados escritores. Trata-se da conhecida angústia da página em branco, que há séculos afeta jovens dos 7 aos 77.
Tanto faz que haja um tema em concreto sobre o qual escrevermos, como que haja liberdade para dissertarmos sobre o que muito bem nos aprouver. Em qualquer dos dois casos, é normal que hesitemos, não saibamos por onde começar e que a angústia da página em branco se faça sentir.
Mesmo que seja para
contarmos uma simples história, relatarmos um mero facto, darmos uma singela
opinião, escrevermos uma modesta carta ou descrevermos uma banal paisagem, seja
qual for o caso, começar é sempre difícil.
Será melhor começarmos
pelo Uzbequistão? Por Freixo de Espada à Cinta? Pela vizinha do lado? Ou pelas
ervilhas com ovos escalfados que comemos ontem ao jantar? Hmm…
Se normalmente já é
difícil sabermos por onde começar, mais ainda o será, quando, como acontece com
os relatórios escolares, estamos restringidos a uma, duas ou três páginas, e
temos de abordar não sei quantos tópicos nesse exíguo espaço.
Em boa verdade, dadas
as circunstâncias, o mais sábio seria recorrermos aos ensinamentos vindos do
oriente, nomeadamente, ao que nos ensinam os haikus.
Para quem
eventualmente não saiba, o haiku é uma ancestral forma de poesia japonesa, que
se caracteriza por captar a intensidade da existência através de um breve verso.
Abaixo, a tradução do mais famoso haiku de todos os tempos, escrito
por Matsuo Basho (1644-1694):
Ah, o velho poço,
uma rã salta,
som da água.
Imaginem o que seria
fazer um relatório sobre o trabalho docente ao longo de um ano letivo em forma
de haiku:
Folhas caídas, início
das aulas,
Passaram-se uns meses,
fez frio
final de Junho, faz
calor, acabou.
Em nosso entender,
este haiku da nossa exclusiva autoria, capta perfeitamente a intensidade
existencial do ano letivo, assim como a passagem do tempo e a relação entre a
condição humana, nomeadamente a docente, e as metamorfoses da natureza. Ou
muito nos enganamos, ou Matsuo Basho sentir-se-ia orgulhoso do nosso haiku.
Mas desviámo-nos um pouco da nossa intenção inicial, que era aconselhar sobre a melhor forma de se iniciar a escrita de um texto. Regressemos então. Para tal, iremos recorrer ao auxílio dos mais consagrados escritores.
No seu romance “Anna
Karenina”, Tolstoi assinou um dos mais célebres inícios da história da
literatura: “Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
Apesar de ser um belo começo, não é necessariamente factual que todas as famílias felizes o sejam da mesma forma, e que todas as infelizes o sejam de formas diferentes. Mas o que nos interessa isso quando queremos iniciar um texto? Na verdade não nos interessa para nada.
Esta é a lição que Tolstoi nos dá, ou seja, que diante de uma página em branco, os factos pouco ou nada importam. O que verdadeiramente importa é como os relatamos, por exemplo, das imensas atividades que constam no PAA, se apenas cumpriram umas poucas, o melhor é descreverem esse facto à maneira de Tolstoi: “O balanço é claramente positivo, pois todas as atividades do PAA foram cumpridas com igual sucesso, exceptuando as que por diferentes razões não o foram”.
Abaixo, uma foto de
Tolstoi.
Um outro início
célebre da história da literatura, é o do romance de J. D. Salinger, “À espera
do centeio” (1951). Para os nossos leitores mais idosos, esclarecemos que
durante décadas, o título em português de “The Catcher in the Rye” era “Uma
agulha no palheiro”, agora já não é. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Transcrevemos o começo
de “The Catcher in the Rye” e, ao contrário do que fizemos com Tolstoi, não há
tradução, mantemos a transcrição na língua original. Por alguma razão, estamos
cá desconfiados que os nossos leitores não saberiam apreciar devidamente a
musicalidade do original em russo de "Anna Karenina", mas que, saberão
perfeitamente degustar as delicadas nuances do inglês de J.D. Salinger:
“If you really want to hear about it, the first thing
you’ll probably want to know is where I was born and what my lousy childhood
was like, and how my parents were occupied and all before they had me, and all
that David Copperfield kind of crap, but I don’t feel like going into it, if
you want to know the truth.”
Como muitos de vós
saberão, "David Copperfield" é um romance de Charles Dickens, que se inicia com
as desventuras do jovem David, desde que ficou órfão de pai, até ser internado
num asilo. David é injustiçado e cruelmente tratado, ainda assim, mantém-se um
bom menino.
Durante gerações, "David Copperfield" foi leitura obrigatória para todos os jovens de boas famílias
e não só. Era uma forma de lhes moldar o carácter e de os fazer crescer com a
consciência de que, por mais injustiças, maus tratos ou crueldades que
sofressem, deveriam continuar sempre a ser bons meninos.
Logo na primeira frase
do seu romance, J.D. Salinger atira imediatamente com toda a moral de Dickens
às malvas com uma só expressão: “…and all that David Copperfield kind of crap”.
Mas Salinger faz mais,
dirige-se diretamente aos leitores e diz-lhes que não lhe apetece escrever nada
daquilo que esperam que ele escreva: “…but I don’t feel like going into it, if
you want to know the truth.”
Em síntese, de uma só penada, Salinger dá-nos duas lições. A primeira é de que ao iniciarmos um texto, podemos mandar às malvas as morais estabelecidas, e a segunda é a de que não temos de corresponder às expectativas de quem nos lê.
Também é uma boa ideia
iniciar-se um texto brincando com a língua. Foi isso mesmo que fez Vladmir
Nabokov, esse finíssimo artífice da escrita, no seu famoso romance “Lolita”.
Nabokov inicia o seu
texto com uma espécie de trava-línguas ou de cantilena, dando desde logo o mote
para tudo o resto que se segue. Ficamos assim imediatamente a saber, que vamos
ler um livro inteiro dedicado a brincadeiras linguísticas: “Lolita, light of my life, fire
of my loans. My sin, my soul.
Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate
to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta.”
Imaginemos um relatório à moda de Nabokov, tipo uma cantilena:
“A Lolita, a Lolita, fez o
PCT, o PCT, e teve em conta, teve em conta, o PAA, o PAA, e o PE é, o PE é, e o
PA-SE-O, o PA-SE-O, o be-rro, o be-rro que o gato deu, miauuuu”.
Não sabemos se Nabokov
ficaria orgulhoso de nós, provavelmente não, mas em compensação, quase de
certeza que a Dona Chica sim.
Talvez os dois mais
conhecidos inícios de toda a história da literatura, sejam os que se seguem. O primeiro é o de “D. Quixote” de Miguel Cervantes:
“En un lugar de La Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho
tiempo que vivía un hidalgo…”
O
segundo é o da “Divina Comédia” de Dante: “Nel mezzo del cammin di nostra
vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita.” (No meio do caminho da nossa vida, vi-me numa selva obscura, pois que a via
reta perdida fora).
Ambos nos põem
subitamente num lugar que, ainda que vagamente nomeado, é bastante incerto onde
efetivamente se situa. Cervantes nomeia a vasta região castelhana de La Mancha,
mas mais do que isso não faz. Muito pelo contrário, diz-nos apenas que é um
lugar de cujo nome não quer recordar-se ("de cuyo nombre no quiero acordarme").
Dante fala-nos
tão-somente de uma selva obscura. Não será certamente da selva amazónica ou de
uma selva africana que nos fala. É sim de uma selva que se nos apresenta
algures no meio da nossa vida, quando nos desviamos do caminho certo. Que
caminho reto e certo será esse? E que perigosos desvios terá? Pois! Acerca
disso Dante nada nos diz.
Em conclusão, quer
Cervantes, quer Dante, optam por iniciar os seus textos sendo vagos, ou seja,
cultivando o mistério e a incertitude. Fizeram bem, pois todas as grandes
histórias começam sempre do mesmo modo, ainda que as palavras possam ser
outras, ou seja, começam remetendo-nos para um tempo e lugar que fica algures:
Era uma vez…
E pronto, terminamos
aqui os nossos conselhos. Façamos um resumo:
a) Sejam tão breves como um haiku;
b) Recordem-se de
Tolstoi, não são os factos o que mais importa, mas sim como os relatam;
c) Tal e qual como
J.D. Salinger, não se preocupem com as expectativas de quem vos lê;
d) Como Vladimir
Nabokov, se vos apetecer brincar, brinquem;
e) Como Cervantes e Dante, sejam vagos.
Despedimo-nos na esperança que estes conselhos vos sejam úteis, ciao.
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