Usam-se e gastam-se muitas palavras a dizer
inconsequências e a fazer assertivas afirmações nas televisões, na internet ou
nos jornais. Gastam-se e usam-se outras tantas palavras a dar urgentes
notícias, que passado um pouco tempo já ninguém recorda.
No entanto, há quem fale e diga o que verdadeiramente
há para dizer. Todavia, a esses dificilmente os escutam, pois que a gritaria é
muita, e quem diz o que há verdadeiramente para dizer, normalmente fala baixo e
por vezes quase que sussurra.
Imaginemos alguém que fala ou escreve sobre educação publicamente, mas não se põe aos gritos, nem diz com ferocidade se é contra ou favor de mais ou de menos testes e exames, nem sequer usa palavras estridentes como “facilitismo”, “rigor” ou “exigência” e por fim, também não se descabela com rankings, nem toma partido na infértil querela ensino privado versus ensino público.
Imaginemos alguém, que ao falar ou escrever
publicamente sobre educação, use sobretudo palavras doces, como por exemplo,
amor! Na verdade pessoas dessas existem, mal se ouvem, mas sim, existem. É de
uma delas que hoje vos queremos falar, o seu nome é Anna Pagès.
Anna Pagès nasceu em Barcelona em 1960 e é uma
filósofa, uma escritora e uma investigadora sobre teorias da educação.
Poder-se-ia dizer que Anna Pagès é também uma feminista, só que não vale a pena
dizê-lo, pois o termo, tal e qual como é vulgarmente entendido, presta-se a
inúmeros equívocos, e a que quem o lê se coloque imediatamente num dos lados de
uma qualquer barricada e comece a dizer que sim ou que não, ou que é contra ou
a favor. Nada disso nos interessa, nem sim nem não, nem prós nem contras,
consequentemente, digamos antes que Anna Pagès é uma mulher. É melhor assim:
uma mulher.
Uma mulher que crê que o saber, a ciência, a cultura e a educação só têm a ganhar em deixarem-se envolver por aquilo a que chama “A voz feminina”. Voz feminina não significa aqui a voz de uma qualquer mulher em particular, nem de nenhum grupo de mulheres em específico, nem de todas as mulheres juntas, significa antes uma maneira de sentir, de pensar, de compreender e de ensinar, cujo objetivo primordial não é dominar, amestrar, competir, ganhar e classificar.
Não nos entendam mal, não nos leiam de um modo
literal. “A voz feminina” de que aqui se fala é um conceito. Ou melhor dizendo,
é um conceito metafórico. Assim sendo, “A voz feminina” não é um exclusivo das
mulheres, é uma voz que existe em todos os seres humanos.
Mas para que exista, é precisa saber escutá-la, é
preciso saber entreouvi-la pelo meio do imenso ruído que nos circunda. Para se
sentir o seu chamamento é necessário estar-se muito atento ao que é quase
inaudível.
À nossa volta há uma constante cacofonia de sons, há
ambulâncias que atravessam as ruas cheias de urgência, aviões que chegam e
partem, televisões continuamente ligadas nos cafés, gente que fala alto, cães
que ladram ferozmente ao longe de uma qualquer varanda, motorizadas apressadas,
restos de melodias que saem das janelas dos automóveis e mais, muito mais…
Quase que parece que todos esses sons se digladiam, cada
um a tentar impor-se a todos os restantes, a ver quem fala mais alto. E no meio
disto tudo, onde está a subtil voz que mal se ouve?
O que se ouve por esse mundo fora são vozes grossas.
Vozes que querem dominar a natureza de modo a dela extrair toda a riqueza
possível, que querem competir economicamente à escala global e obter a
classificação de AAA nas agências de ratings das dívidas nacionais, que querem
ganhar o campeonato da competitividade e todos os demais que existam. Vozes que
querem triunfar.
Todas essas vozes fazem parte de um modo de se sentir
e de se compreender o mundo exclusivamente baseado no poder de quem vence, de
quem chega em primeiro, de quem consegue agarrar o melhor bocado e sobe ao
topo.
Esse modo de se sentir e de se compreender a vida e o
mundo, entra também pelas portas das escolas adentro, e assim como provoca
catástrofes e desequilíbrios na natureza e a muita gente deixa na miséria e na
pobreza, também dentro das escolas causa os seus estragos.
Há paliativos, e que bons eles são, ficamos logo todos
muito mais sossegados. A Amazónia está a desaparecer? Os mares estão a morrer?
O melhor é pormos o vidro no vidrão e comprarmos roupa em segunda mão. Há
centenas de milhares de pessoas que fogem à fome e à guerra? Há quem mesmo
trabalhando afincadamente pouco ou nada tenha para sobreviver? Somos
solidários, no próximo fim de semana, quando formos ao supermercado, vamos doar
dois pacotes de arroz e um de esparguete. Há alunos que nada aprendem durante
anos sucessivos? Coitadinhos, vamos já fazer-lhes um plano de apoio e dar-lhes
condições especiais de avaliação. Em resumo, tudo ótimos paliativos.
Mas voltemos ao que Anna Pagès chama “A voz feminina”.
Esta deixa-se ouvir por aqueles que a sabem escutar, mas também para quem sabe
ver, sentir, compreender e ensinar. No fundo, essa voz, é a voz do amor.
O amor é uma forma de sentir e compreender que não
quer dominar, competir, classificar ou vencer, quer sim cuidar, estar atento e
comungar. Por exemplo, quem olha para uma obra de arte pode querer possui-la e
fazê-la sua. Tendo dinheiro para isso, pode adquiri-la para a exibir na sua
sala de estar como um troféu, colocando-a num lugar bem visível, de modo a que
esta grite para todos ouvirem que o seu proprietário é um vencedor.
Mas há quem olhe para uma obra de arte, a contemple e
se sinta em comunhão com o que nela observa. Há quem a contemple ouvindo “A voz
feminina”, ou seja, sentindo-a e compreendendo-a com amor.
Há quem olhe para a escola, para os seus alunos e
professores e aí mais não veja que um conjunto de performers, cujo destino é
trabalharem intensamente para chegarem ao topo. Ao topo das classificações, das
médias e dos rankings. Mas há também quem olhe, e sinta e compreenda a escola
com amor, ou seja, através desse conceito metafórico a que nos temos vindo a
referir: “A voz feminina”.
Há mais de dois milénios, na clássica Atenas, Sócrates, como era seu costume, convidou os seus discípulos e amigos para um banquete filosófico, um simpósio como então se dizia.
Nesse dia perguntou-lhes o que é o amor. Um Deus? Como
chega e como se vai?
Cada um dos convidados apressou-se a proferir uma
série de lugares comuns, um aborrecidíssimo e pretensioso blá-blá-blá. Em
síntese, todos tentaram demostrar a sua superioridade relativamente aos
restantes convivas e o quão sabedores eram.
Quando chega a vez de Sócrates, como sempre, este diz
que nada sabe. Até aqui tudo igual ao habitual. Sócrates dizia sempre que só sabia
que nada sabia, para depois argumentar com todos em seu redor e lhes
demonstrar, que eram afinal eles, que se julgavam muito sabedores, os que nada
sabiam.
Sócrates era o mestre absoluto neste jogo, feitas as
contas, ele que nada sabia, sabia mais que todos os outros cuja sabedoria era
falsa. Em resumo, nada sabendo, sabia mais que os restantes, pois que sabia que
nada sabia, enquanto os outros acreditavam saber algo.
Contudo, nessa ocasião, acrescentou algo de absolutamente surpreendente, ou seja, que o pouco que sabia sobre o amor, lhe fora ensinado por uma mulher, Diotima de Mantinea.
Com tal afirmação, a todos espantou.
Sócrates que nunca aceitava o saber de ninguém e
argumentava até o desfazer em cacos, disse que Diotima sabia o que era o amor e
“muitas outras coisas”. Ela ter-lhe-ia explicado que o amor não nasce do que
temos, mas sim daquilo que queremos ter e nos falta.
Foi a primeira vez que num diálogo filosófico apareceu
“A voz feminina”. Uma voz que sabe, mas cuja sabedoria é distinta de a de todos
os outros presentes no banquete. Não é uma sabedoria que queira dominar,
competir ou vencer, é antes uma sabedoria que nasce do amor ao mundo, às coisas
e às gentes.
Diotima representa a voz que falta a Sócrates, ou
seja, aquela que lhe orienta o desejo de saber. A novidade que Diotima traz, é
a de um saber que não se limita a acumular factos, matérias, técnicas e
conhecimentos.
Diotima não representa um saber baseado num sentir e
numa compreensão do mundo que quer dominar, classificar e vencer, mas sim um
sentir e uma compreensão do mundo baseado na atenção, no cuidado e no amor.
Como os nossos leitores já terão percebido, Anna Pagès
inspirou-se em Diotima de Mantinea. Quem quiser conhecer melhor esta autora
poderá ler alguns dos seus artigos em:
ou em:
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