Chegamos hoje ao décimo episódio de “Como fazer turismo sem sair de casa”. Os leitores não estranhem esta nossa insistência em permanecer na residência. Não a considerem uma impertinência, até porque para nós, estando em casa, temos tido uma férias de excelência.
Não creiam que passar férias no seu próprio domicílio, seja uma espécie de exílio, muito pelo contrário, é próximo de um idílio. Não há pressas, nem malas a fazer, refazer ou a desfazer. Nem precisamos de marcação de hotel ou necessitamos de passaporte, passar férias na nossa habitação, é uma grande sorte.
Posto isto, há quem diga veementemente que não é turista. Nem em casa, nem em sitio algum, que é sim um viajante. Há também quem considere tal atitude um tanto ou quanto pedante, mas pronto, pela parte que nos toca, adiante.
Quem se auto-intitula viajante, não quer visitar locais turísticos, daqueles com muita gente, mas sim viver uma aventura num local distante. Prefere portanto, um sítio inóspito, tipo um deserto ou um qualquer outro lugar incerto, assim quase secreto e que ainda não tenha sido descoberto.
Um dos “nec plus ultra” dos auto-designados viajantes, é percorrer a mítica Route 66, atravessando a América do Norte de ponta a ponta, de este a oeste. Não os invejamos, a esses intrépidos seres errantes. É certo que vão sempre em frente, para o mais longínquo ocidente, mas fazendo-o, perdem o melhor que a América tem, que a bem dizer, está a este, do lado nascente.
Se nos detivermos a pensar, verificaremos que a Route 66 se inicia em Chicago, no Midwest, sensivelmente a meio dos bons USA (íu-s-ei), e que finda em LA (el-ei). Consequentemente, a Route 66 não é efetivamente uma viagem “coast to coast”, de nascente a ocidente, sendo que, “the best of America”, como já dissemos, fica na costa este.
“The best” e o mais “sweet and sexiest” da América, claro está, é Manhattan, que como pelo mapa abaixo se constata, não faz parte da Route Sixty Six.
Dito isto, levanta-se uma questão, donde surgiu esta peregrina ideia, de viajar para a América e não ver New York? E como se isso não fosse bastante, preferir antes atravessar desertos ardentes, percorrendo uma extensa estrada de 3243 Km’s, muitos dos quais com tão mau asfalto, que ficamos praticamente doentes. Quem se lembrou de passar noites e noites seguidas em motéis completamente decadentes?
A ideia de fazer uma tal viagem e viver tão incómoda aventura, não terá porventura tido origem no filme “Easy Rider” (1969), no entanto, teve um gigantesco incremento a partir do momento em que essa película se tornou popular no mundo inteiro.
Como os nossos leitores já terão adivinhado, o enredo desse filme decorre na Route 66. Mas décadas antes de “Easy Rider”, durante a grande depressão, que se iniciou em 1929, muitos milhares de americanos percorreram então a Route 66. Fizeram-no para escaparem à miséria e à fome, em busca de melhores condições de vida a oeste, na “Sunny California”.
Fizeram-no por extrema necessidade e em paupérrima situação, como podemos ler no clássico livro de 1939, do nobelizado John Steinbeck, “As Vinhas da Ira”. A adaptação ao cinema desse livro foi feita logo no ano subsequente, em 1940. O filme é também ele um verdadeiro clássico, tendo sido realizado pelo oscarizado John Ford. Aqui fica a notícia desse acontecimento:
Ao contrário do que sucedeu na grande depressão, na época de “Easy Rider”, “in the sixties”, ninguém se fazia à estrada, à Route 66, por fome ou para escapar à miséria, mas sim porque lhe apetecia. Ou seja, porque se sentia entediado com a vida e procurava um caminho, qualquer que este fosse, que desse um sentido à sua existência.
Por consequência, seguia-se sempre em frente, continuamente para oeste, pois essa parecia ser uma boa direção e a melhor solução para quem queria viver sem destino certo.
Abaixo uma imagem de “Easy Rider”.
Imensa parte da mitologia que alimenta os auto-intitulados viajantes, ou seja, de todas aqueles que viajam, mas que se recusam ser considerados turistas, em certa sentido, provém de “Easy Rider”.
Entre os viajantes da Route 66 retratados em “As Vinhas da Ira” e os de “Easy Rider, há uma clara distinção, os primeiros viajavam para fugir da sua mísera condição, os segundos porque se aborreciam de morte e procuravam apenas partir numa qualquer direção.
Por um estranho alinhamento dos astros, o protagonista do filme “As Vinhas da Ira” foi Henry Fonda, e o protagonista de “Easy Rider”, décadas mais tarde, foi o seu filho, Peter Fonda.
Como os nossos leitores já terão intuído, não apreciamos grandemente quem nos diz ter alma de viajante, preferimos quem mais modestamente, se designa um simples turista, e fundamentalmente, quem turista é, sem do seu próprio apartamento sair.
Para aqueles que como nós escolheram fazer turismo sem sair de casa e querem conhecer a América, nada melhor que contemplar as obras de Edward Hooper, o pintor “of the American soul”.
Para vos pôr “in the mood” para essa viagem, deixamo-vos um pequeno vídeo com as suas obras. A canção que as acompanha foi composta pelo mais americano dos compositores, George Gershwin e intitula-se “I Loves you, Porgy”:
Comentários
Enviar um comentário