Nestas férias continuamos onde estávamos, no nosso lar. Na nossa morada estando e dela não saindo, vamos assim pelo mundo viajando. Tudo por junto, chegámos ao décimo segundo episódio de “Como fazer turismo sem sair de casa”. Hoje levamos-vos à Grécia, mas não num cruzeiro pela ilhas, claro está.
Porque não? Perguntais vós. Bom, primeiro porque custa muito dinheiro, e depois, porque ninguém aqui é marinheiro.
O país que hoje em dia se chama Grécia herdou as ruínas da civilização helénica, assim como o seu mar, a que na antiguidade os gregos chamavam Thalassa. Contudo, dificilmente terá herdado o espírito dos seus antepassados.
A Grécia atual é um país de religião ortodoxa e um membro da União Europeia. Terá tanto a ver com aquela Grécia clássica e antiga, que foi o berço da cultura e da civilização ocidental, como países como a Itália, a França, a Alemanha, a Espanha ou Portugal.
Tudo terá começado há milénios, no momento em que Páris, filho de um rei, movido por um irreprimível impulso, e depois de a ter seduzido, raptou a bela Helena levando-a consigo mar adentro até ao seu reino natal, Tróia.
Helena, esposa de Menelau, o Rei de Esparta, acabaria por ser o rosto que lançou mil navios ao mar. Todos os povos circundantes de Esparta se agregaram para auxiliarem Menelau e a irem resgatar, dando assim início à Guerra de Tróia, que duraria por dez anos.
Os povos que nessa empresa se agregaram, ficaram para sempre conhecidos como os helénicos.
Homero, que pode ou não ter existido, era cego, mas tudo via, escutava e recordava e foi assim que escreveu o relato dessa guerra em “A Ilíada”. Aí conta as aventuras e desventuras de homens que, de espada em punho, lutavam corpo a corpo e caíam em sangue às mãos uns dos outros. Nem a gregos nem a troianos faltava coragem e audácia e nenhum combatia com menos entusiasmo e ferocidade por a morte temer.
Mas entre todos, um havia que era diferente: Ulisses. Ele era o que não lutava corpo a corpo, que feria ao longe e matava à distância. Para tal servia-se de um arco e das respetivas flechas. Arma de que todos os restantes desdenhavam, pois o ódio que no peito traziam, exigia-lhes ser exaurido no ardor e no vigor da luta direta, olhos nos olhos com o adversário.
Ulisses não era assim, não agia movido por impulsos, nem respondia prontamente ao que sentia no peito, primeiro pensava. E ao pensar, ocorriam-lhe estratégias e ardis, como por exemplo o cavalo de Tróia.
O pensar de Ulisses fundou toda cultura ocidental: as suas artes e ciências. Tal como um artista tem de se afastar para ter uma melhor perspetiva daquilo que pretende representar, ou como um cientista ou um matemático têm que se abstrair do concreto para o poder esquematizar, assim Ulisses ganhava distância do que há em seu redor e antes de agir, retinha as setas, detinha-se, abstraia e dava um passo atrás para pensar.
Ulisses não se deixava levar pelo que imediatamente via, primeiro observava, analisava, colocava hipóteses, calculava e só depois disparava. Homero chamava-lhe o engenhoso, o paciente ou o prudente.
A narrativa da sua longa viagem de regresso à sua pátria, à cidade de Ítaca (a que era rodeada por mar), após findada a guerra de Tróia, foi também contada por Homero, que poderá ou não ter existido, em “A Odisseia”.
Que não haja confusões, Ulisses não era frio, cínico ou indiferente, o fogo que tinha em si era tão intenso como o dos restantes guerreiros, no entanto, ele sabia que a sabedoria vem mais das cinzas que do ardor.
Todavia, sabia ainda, que sem chama, a vida de pouco vale, é apenas uma espécie de meia-vida. Em síntese, sabia que não existe sabedoria, sem que antes tivesse havido calor e fulgor.
A sabedoria que nasce das cinzas, ou seja, o pensamento que surge do ganhar-se distância do fogo e que permite observar, analisar, abstrair e concluir, é a verdadeira herança helénica, aquilo que a Grécia antigo nos deixou.
Uma herança quase esquecida, pois há hoje quem ache que se pode ser “sábio” sem antes ter vivido ou ter experimentado o fulgor de um entusiasmo ou o ardor de um combate. Daí só resultam conhecimentos abstratizantes e vazios, e “saberes” absurdos e sem sentido.
As definições abstrusas e sem significado acompanhadas de fórmulas frias que pouco ou nada dizem. Perceber o que é um oceano sem nunca se ter banhado no mar, entender o que é um vulcão sem jamais ter sentido o calor de uma chama e compreender em silêncio o que são palavras, frases ou um verbo, é pouco ou nada saber.
Os gregos antigos construíram um templo no Cabo Sounion, a cerca de 65 Km a sul de Atenas. Dizem que é daí que se vê o mais belo pôr do sol do mundo.
A quem contempla o ocaso, acontece pensar no dia que finda ou até em tudo pelo que na vida já passou. O cair do sol não faz esquecer que ainda há pouco ele brilhava lá no alto com fulgor, pelo contrário, como que disso relembra. Ao fazê-lo, dá que pensar, permite refletir e ganhar distância sobre o que vemos e vivemos, tal e qual como na antiguidade os gregos faziam. Era essa a origem da sua sabedoria.
Os antigos gregos legaram-nos igualmente a filosofia, que em boa verdade mais não é, do que um nome para dizer tudo aquilo que já fomos dizendo. A filosofia é uma forma de sabedoria que nasce de se ter vivido com entusiasmo e fulgor e das cinzas que ficaram.
“A coruja de Atena só levanta voo ao anoitecer”, depois de tudo acontecer. Atena, que era a deusa da sabedoria fazia-se sempre acompanhar por uma coruja.
Como dissemos no início deste texto, a herança grega não está tanto nas ruínas cheias de turistas da Grécia atual, mas muito mais no modo de viver que inventou e nos legou, a sua sabedoria é não temer o combate, o entusiasmo e o fulgor, mas saber ganhar distância sem frieza nem cinismo para observar, refletir e pensar.
Terminamos com um poeta grego que viveu no Egipto, em Alexandria (cidade fundada pelo grego Alexandre o grande). O poeta chamava-se Konstantinos Kavafis e viveu entre 1863 e 1933.
Apesar de ter nascido mais de dois mil anos depois do apogeu da Grécia antiga, foi como se lá tivesse vivido toda a sua vida. A sua poesia tinha a sabedoria de quem sabe lidar com as cinzas, pois que antes soube sentir o fulgor.
“O sol da tarde”
Este quarto, como o conheço bem!
Agora aluga-se não só este, como também o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de corretores, de comerciantes, de Sociedades.
Ah…neste quarto nada me é estranho.
Junto à porta, aqui, estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
perto, a estante com dois vasos amarelos.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao centro, a mesa onde escrevia;
e as três grandes cadeiras de palha.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.
Devem estar em algum lugar essas pobres coisas.
Ao lado da janela estava a cama
o sol da tarde chegava-lhe até a metade.
...Uma tarde, às quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana apenas ... Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.
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