Neste décimo quinto episódio desta série de verão “Como fazer turismo sem sair de casa”, vamos voltar-vos a falar de viagens e dos males que estas podem causar, sobretudo a senhoras respeitáveis, sejam elas jovens ou já de uma “certa idade”.
O escritor inglês E.M. Forster (1879-1970) foi autor de dois célebres romances, que quando foram adaptados ao cinema obtiveram um grande sucesso de público e de crítica: “Quarto com vista sobre a cidade” e “Passagem para a Índia”.
Ambos os romances nos falam de respeitabilíssimas senhoras inglesas que partiram de viagem. Num caso para Florença, no outro para a Índia. Também em ambos os casos há uma mulher jovem, que é a principal protagonista da história, e uma segunda mais madura, que a acompanha.
Comecemos pelo “Quarto com vista sobre a cidade”. No início do século XX, Lucy, a jovem, viaja para Florença para passar a temporada estival acompanhada por Charlotte, a sua prima, a mais madura.
Lucy queria conhecer o calor e o odor de Itália e ver de perto as pinturas e esculturas que só conhecia das enciclopédias. Deixaram-na ir, mas desde que levasse consigo a prima Charlotte como sua tutora. Na pensão onde ficam hospedadas conhecem outros hóspedes, entre eles os Emersons, pai e filho.
Lucy começa a dar-se com George Emerson, o filho, que é um bom moço, mas tem umas ideias um tanto ou quanto fora do comum, pois que é dado a filosofias. Apesar do tempo quente que se faz sentir na cidade toscana, os dois realizam frequentes passeios por Florença, pelas suas “piazzas e palazzos”, e também pelas igrejas, “giardini” e museus.
Lucy e George observam com deleite os sensuais corpos esculpidos na pedra, assim como as castas virgens pintadas na tela. Em Florença os grandes mestres pintores e escultores da Renascença estão por todo lado, dobra-se uma rua, passa-se uma esquina e subitamente, numa praça qualquer, aparece-nos uma obra de arte. Como por exemplo, o escultural Perseu exibindo a cabeça cortada de Medusa na Piazza della Signoria.
Um dia George rouba um beijo a Lucy. Charlotte, a prima, que apareceu nesse preciso instante, fica tão escandalizada e atribuiu uma tal gravidade ao assunto, que decide abortar a estadia em Florença e voltar imediatamente a Inglaterra. Lucy contraria-a, argumenta, mas acaba por conformar-se e regressar.
Passada a temporada de verão e mais uns tempos, George regressa também a Inglaterra e vai viver para próximo de Londres, onde reencontra Lucy. Ela entretanto tinha ficado noiva de Cecil, um jovem sério, adequado e empenhado em constituir família.
Lucy e George voltam a conviver e o moço tenta novamente roubar um beijo a Lucy. Ela começa por o afastar, mas os dias vão passando, George insiste, a coisa desenvolve-se e Lucy acaba por romper o noivado com Cecil. O escândalo é grande e a sua reputação de boa menina fica arruinada, quer entre a sua própria familia, quer entre a vizinhança.
Lucy acabará por casar com George e ambos voltam a Florença para iniciar uma outra viagem cujo destino é incerto, pois não se sabe bem como vão viver, de quê e onde.
Na nossa opinião, ou muito nos enganamos, ou Lucy teria feito muito melhor em nunca ter ido viajar, sobretudo para Florença, que desde dos tempos em que era governada pelos Médici, que é uma terra com fama de pecaminosa e que faz despertar os sentidos e aguçar os apetites.
Ainda se Lucy tivesse ido viajar para Fátima, para Lourdes, ou a um outro qualquer destino pio, vá que não vá, agora ir logo para Florença, valha-nos deus! Mais valia ter ficado no recato do lar. Razão teve a prima Charlotte em vir-se embora, contudo, já foi tarde, o mal estava feito.
Por causa da viagem a Florença, Lucy não casou com o sério e adequado Cecil, perdendo assim uma vida inteira de alegrias caseiras. Coitada da moça, mas na verdade, é nisto que dá andar a viajar.
Se Florença faz despertar os sentidos, o que se há de dizer da Índia? A Índia ainda é pior, pois perturba a mente e não só faz despertar os sentidos, como os exalta numa escala cujos padrões são muito distintos dos do ocidente. Logo para começar, é tudo muito picante.
Só para vos darmos um exemplo do que é a Índia, comecemos a nossa viagem com uma visita a um conjunto de templos religiosos: Khajuraho.
Khajuraho é um imenso complexo religioso e foi classificado como Património da Humanidade pela UNESCO. Atualmente contém apenas 25 dos 85 templos originalmente construídos entre 900 d.C. e 1130 d.C.
Quer no exterior, quer no interior dos templos, podem-se vislumbrar dezenas de milhares de esculturas de homens e mulheres a entrelaçar os seus corpos em explícitas cenas amorosas e orgiásticas. Os deuses, que também estão presentes, observam-nos com benevolentes feições.
Uma vez que já estamos dentro do contexto, concentremo-nos agora no romance de E.M. Forster “Passagem para a Índia”. A história inicia-se com a viagem de duas senhoras inglesas a esse país, onde o filho de Mrs. Moore e noivo da jovem Adela, exerce as funções de magistrado.
Uma vez lá chegadas, resolvem ignorar o comportamento colonial típico dado aos locais pelos ingleses e estabelecem uma relação de amizade com um médico indiano, o Dr. Aziz.
Aziz serve-lhes de guia e leva-as a passear pelos locais mais interessantes e pitorescos da região. Até que um dia vão de visita às famosas grutas de Marabar.
As grutas de Marabar são um sítio místico, associado a ancestrais rituais. Em síntese, não são um local cuja penetração seja muito aconselhável a uma “lady”. Tanto assim é, que a senhora Moore tem logo um ataque de claustrofobia mal entra, o que a força a regressar ao exterior. No entanto, incita Adela e Aziz para que vão mais fundo e continuem a visita.
Antes de continuar, Aziz sai para fumar um cigarro. Quando retorna, não encontra Adela. Pouco tempo depois vê-a a correr desalmadamente, toda despenteada e completamente perturbada. O que se terá passado? Ninguém sabe. Presume-se que ao penetrar tão fundo na caverna, Adela entrou em contato com energias primordiais e que isso a terá desorientado. Não estava habituada, coitada.
O incidente é muito comentado e o certo é que Aziz é acusado e preso, ficando a aguardar julgamento por tentativa de estupro. Para a consternação do seu noivo e de todos os seus amigos ingleses, Adela inocenta Aziz em tribunal.
Os colonos britânicos são assim obrigados a desdizerem-se e a retirar a acusação a Aziz, situação que nada apreciam. Os indianos carregam o homem inocentado para fora do tribunal sobre ombros, festejando histericamente a sua libertação.
Adela fica sem ninguém com quem contar, pois os ingleses consideram-na uma traidora. Na sequência disso, ela rompe o seu noivado e abandona a Índia.
Mais uma vez, foi a vontade de viajar que estragou tudo. Adela tinha pela sua frente um promissor futuro como esposa de um magistrado com boas perspectivas de subir na carreira e de repente, deita tudo a perder. Digam lá se não valia muito mais à Adela ter ficado sossegada em casa?
Para terminarmos esta nossa viagem à Índia com escala em Florença, recuamos agora quinhentos anos, ao tempo em que decorre a narrativa de um livro de Salman Rushdie intitulado “The Enchantress of Florence”, em português “A Feiticeira de Florença”.
“A Feiticeira de Florença” conta-nos a vida de uma bela princesa oriental caída em desgraça na sua terra e por isso obrigada a viajar pelo mundo. O que fazia sempre acompanhada por uma igualmente bela serva, a quem chamava Espelho.
A princesa é uma mulher detentora de poderosos feitiços. Vinda numa falua lá de Istanbul, consegue instalar-se na Florença do Renascimento, a cidade dos Médicis, e aí ser tratada como se fosse uma santa.
No início realiza milagres, fascina os homens e apazigua os ciúmes das mulheres, mas o tempo desgasta a sua magia e leva à desgraça de todos os que devotadamente a seguiam com amor. Caída novamente em desgraça, volta a partir.
Por conseguinte, viaja para outras paragens, pois é uma mulher que procura ser senhora do seu próprio destino. Acabará por chegar à exótica Índia, à cidade de Fatehpur Sikri, a capital das mil e uma noites onde estava instalada a magnífica corte do Imperador mongol Akbar. É aí que se desenrola o resto da história.
O neto de Akbar e também imperador, de seu nome Xaabudim Xá Jeã, haveria de mandar construir o mais conhecido monumento da Índia, o Taj Mahal. Um mausoléu que foi erguido como um tributo de amor à sua bela esposa persa, conhecida como Muntaz Maal, ou seja, “O Ornamento do Palácio”, que faleceu ao dar à luz.
E é com a esplendorosa vista do Taj Mahal a partir do rio, que terminamos mais este episódio de “Como fazer turismo sem sair de casa”, desta vez com uma escala.
Comentários
Enviar um comentário