Que não nos acusem de sedentarismo por causa da nossa série “Como fazer turismo sem sair de casa”. Esta série combate muito a sério o imobilismo, só que à sua maneira, ou seja, fazendo com que cada capítulo faça justiça ao título, e que mesmo não se saindo do lar, nem se necessitando de bagagem, se possa sonhar com uma viagem.
Estamos recolhidos na nossa habitação, mas não se pense que isso é péssimo. Pelo contrário, tem sido de grande préstimo. Evita-nos que andemos por aí aos papéis feitos vagabundos, a dormir em pensões e hotéis, mas permite-nos à mesma sonhar com viajar pelo mundo, conhecendo-o desse modo a fundo.
Dito isto, voemos então em sonhos para o destino deste décimo sétimo capítulo: Istambul.
Era um vez um poeta irlandês, de seu nome Yeats, que já em avançada idade, decidiu deixar a chuva, a humidade, o vento e o frio da Irlanda, e partir à aventura para a quente e vibrante Istambul. Cidade milenar, que no tempo dos gregos antigos se chamou Bizâncio e na época romana foi Constantinopla.
Quando Yeats, o dito poeta, lá aportou, escreveu um dos seus mais conhecidos e belos poemas, ao qual deu o título “Sailing to Byzantium”. Percorrendo a cidade, o poeta foi apanhado desprevenido pelo seu fulgurante esplendor e pela sua extrema sensualidade (Caught in that sensual music). Ficou perturbado.
Lamentou-se então por já não ter a juventude e o vigor de outrora, por ser agora tão-somente um velho que a pouco e pouco se ia abeirando da decrepitude (An aged man is but a paltry thing).
A frase inicial do poema “Sailing to Byzantium”, que foi escrito em 1928, teria longa posteridade. “That is no country for old men”, a referida frase, deu título a um filme de grande sucesso, “Este país não é para velhos”. O filme é uma adaptação de um romance de Corman McCarthy com o mesmo título, cujo êxito também foi considerável.
Nos telejornais nacionais, a frase “este país não é para velhos” é frequentemente usada a propósito das baixas reformas e das más condições dos lares para a terceira idade. Contudo, ou muito nos enganamos, ou estamos em crer que quem a usa, não fará a menor ideia de que cita o início de um poema de W.B. Yeats dedicado à grandeza e opulência da antiga Bizâncio, essa cidade a que atualmente chamamos Istambul.
Bizâncio foi uma cidade fundada pelos antigos gregos em 685 a.C. Viria posteriormente, ou seja, uns bons séculos depois, a ser conquistada pelos romanos, mais concretamente no ano de 196 d.C.
A sua prosperidade e magnificência são inigualáveis. Nenhuma outra cidade é banhada por tantos mares: o Mediterrâneo e o Egeu, o Negro e o Mármara. Nenhuma outra cidade se estende por dois continentes: Europa e Ásia.
A sua localização no preciso ponto onde o oriente e ocidente se encontram, fizeram com que o imperador romano Constantino em 330 d.C. a designasse como a nova Roma e a renomeasse, passando o seu nome a ser Constantinopla.
O império romano, a partir desse momento, ficou com duas capitais, Roma propriamente dita e Constantinopla, designada desde aí como a capital do Império Romano do Oriente, também conhecido como o Império Bizantino.
Em 1453 a cidade caiu nas mãos dos invasores turcos e tornou-se a capital de um outro império, o otomano, passando então a chamar-se Istambul.
Estando os assuntos históricos tratados, vamos agora falar-vos de outros temas igualmente prementes, como por exemplo, sobre o sexo dos anjos. Serão os anjos meninos ou meninas?
Em Constantinopla, precisamente em 1453, o ano da sua queda às mãos dos turcos, decorreu um importante concílio, que reuniu as mais altas autoridades eclesiásticas e civis da época, e cujo objetivo era debater se os anjos teriam ou não sexo.
Constantinopla era nesse tempo uma cidade há muito convertida ao cristianismo e era aí que se realizavam os concílios para debater as mais complexas questões teológicas. A acalorada discussão acerca do sexo dos anjos levou longos meses e concentrou em si todas as atenções.
Enquanto isso, uma verdadeira guerra estava a ser travada ali mesmo ao lado. Na batalha final, a cidade acabou por ser tomada pelos turcos e o Império Bizantino teve o seu fim. A conclusão do concílio? Não se descobriu se os anjos afinal tinham ou não sexo.
Como os leitores já adivinharam ou previamente já sabiam, vem desse concílio a expressão “discutir o sexo dos anjos”. Uma outra expressão que teve origem nesse mesmo concílio, é a que se refere a “questões bizantinas” (ou “bizantinices”).
A expressão “questões bizantinas” (ou “bizantinices”), que ainda hoje é usada, designa discussões de assuntos irrelevantes, bizarros, inúteis ou inoportunos.
Acreditem ou não, o facto histórico é que enquanto o imperador bizantino era morto juntamente com milhares de soldados cristãos, cedendo assim o seu lugar aos conquistadores turcos comandados por Maomé II, as autoridades religiosas discutiam sobre questões teológicas tão decisivas, como por exemplo, quantos anjos cabem numa cabeça de alfinete!
Istambul é a última das cidades da Europa e a primeira da Ásia, atravessa-se o estreito do Bósforo, que liga o Mar de Mármara ao Mar Negro, e uns minutos depois, na margem oposta, está-se noutro continente.
A Turquia é um país pertencente ao oriente, todavia, a maior e mais importante parte da sua mais conhecida e próspera cidade, que não é Ankara, a capital, mas sim Istambul, situa-se no continente europeu.
Os poderes turcos sempre olharam com desconfiança para essa luxuriante e sonhadora cidade, pois nunca lhes agradou que nela houvesse tanta sensualidade e uma tão “excessiva” liberdade.
Apesar de turca, Istambul dá-se ares de ser europeia, o que só lhe fica bem e é conforme à sua história. Por exemplo, o seu mais famoso monumento, Hagia Sophia, tem óbvias afinidades com o Panteão de Roma, razão pela qual, ao conquistarem Constantinopla, os turcos lhe acrescentaram uns minaretes, de modo a tentarem que esta se assemelhasse mais a uma mesquita e a sua herança ocidental fosse olvidada.
Por muito que a tenham ornamentado com símbolos do Islão, ao entrarmos no interior de Hagia Sophia, é impossível não repararmos como a sua cúpula é semelhante à do Panteão e como também aí a luz solar vem do alto e inunda todo o edifício.
Em síntese, é impossível não percebermos que Istambul é a porta do oriente, mas que ainda assim, a sua essência é em grande medida uma herança vinda de ocidente.
A herança ocidental de Istambul atravessou os séculos e permanece viva nos dias de hoje. O escritor Orhan Pamuk, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2006, é quem melhor atualmente a representa.
Os seus romances são um hino de amor à sua cidade de sonho, Istambul. Neles descreve infatigavelmente todos os seus aspetos: os diferentes tipos de bêbados, os vendedores de rua, os merceeiros, os saltimbancos, os músicos e os mendigos. Descreve igualmente a beleza dos bairros à beira mar, junto ao Bósforo, as tabernas, os boatos e os menus dos restaurantes.
Da sua janela Orhan Pamuk vê os navios no mar. Desde menino que os observa. Vendo-os, e sem de casa sair, sonha com incontáveis viagens por muitos outros lugares: “Em boa verdade, desde que me conheço, conto os barcos que atravessam o Bósforo de uma ponta à outra. Conto os navios-cisternas romenos, as fragatas soviéticas, os barcos de passageiros búlgaros, os taka dos pescadores provenientes de Trabzon, o elegante transatlântico italiano."
A Istambul de Pamuk é como um fascinante catálogo de coisas sonhadas e amadas. Num dos seus livros, “O museu da inocência”, conta-nos a história de amor entre Kemal, com 30 anos e menino rico da "haute bourgeoisie", e a bela Füsun, de 18 anos, uma sua parente afastada e pobre, que trabalha como vendedora numa loja de malas da moda.
Viveram um tempo imenso juntos, apaixonam-se e durante quarenta e poucos dias, encontram-se às escondidas num apartamento à hora do almoço. Kemal está noivo da filha de uma família da elite, Sibel, beldade pertencente à “jeunesse dorée” de Istambul.
Acabará por não ficar nem com uma nem com outra. Ambas se afastam dele. Füsun reaparece um ano depois, mas já casada. Kemal não abdica do seu amor e começa a frequentar a casa onde Füsun vive com com os seus pais e marido.
Surrupia da casa pequenos objectos, que de um modo ou de outro estejam ligados a Füsun. A pouco e pouco tem uma extensa coleção de objectos pessoais de Füsun e de muitos outros mais que lhe fazem lembrar dela.
Adquire o decadente apartamento onde se encontrava com a jovem vendedora e é aí que guarda vestidos, sapatos, talheres, um cão de porcelana, 4213 beatas de cigarro, isqueiros ou qualquer outra coisa que consiga recolher e tenha sido usada por Füsun ou lhe recorde todos os sítios onde estiveram juntos.
Ergue assim um museu, para um único visitante, o próprio Kemal. É um local para onde se retira para sonhar e cujo catálogo é todo ele dedicado à sua amada. Num lugar de destaque está o brinco que Füsun deixou cair quando ela e Kemal fizeram amor pela primeira vez.
O surpreendente é que esse museu, que antes só tinha sido sonhado na escrita de Pamuk, agora existe mesmo numa rua de Istambul. Pode-se comprar um bilhete, entrar e visitá-lo. Algo que nos faz desconfiar que talvez Istambul não seja apenas uma ponte entre oriente e ocidente, mas igualmente um local onde sonho e realidade podem trocar de lugar.
Comentários
Enviar um comentário