É estranho pensar-se que houve um tempo anterior a este, em que se podia falar de tudo livremente e em público. Agora já não é tanto assim, é preciso muito mais cuidado com o que se diz, não vá alguém ficar chateado ou ofendido. Uns não gostam nem querem que se fale de certos assuntos, e outros querem e gostam, mas só desde momento que se diga as coisas certas.
Antes, mal ou bem, havia quem se pusesse a falar de homens, de mulheres e das relações entre ambos, nomeadamente, as de amor ou as sexuais e não havia problema. Hoje falar de tais coisas em público é arriscar-se a ser imediatamente crucificado.
Claro que não falamos de intrigas e mexericos, isso, agora como antes, é sempre tema. Falamos sim de fazer considerações sociais, políticas ou filosóficas sobre tais assuntos, isso é que é um perigo.
Há os mais conservadores e tradicionais que pretendem silenciar tais conversas porque acreditam que são assuntos exclusivos da esfera privada e não têm nada que ser falados para lá do lar. Há também os outros, os mais modernos e liberais, que possuem receitas certas e pensam saber o que é correto e o que é incorreto, pretendendo silenciar qualquer outra conversa, que não aquelas que sigam piamente o credo instituído.
Sendo este o atual contexto, temos de um lado os politicamente corretos e ativistas disto e daquilo que julgam e considerem retrógrado quem quer que possa não estar de acordo com as suas crenças, e temos do outro os tradicionalistas, para quem tudo o que se relacione com as relações entre homens e mulheres, é conversa para se ter somente em casa.
“Comícios de Amor” é um filme realizado em 1964 por Píer Paolo Pasolini. Trata-se de um documentário acerca do que são os homens e as mulheres e das relações que têm entre si. Pasolini viajou do norte ao sul de Itália, interrogando intelectuais, operários, camponeses, soldados, jovens, velhos e crianças fazendo-lhes a todos perguntas sobre a sexualidade.
Pasolini assume-se como repórter e vai para a rua e, com o seu microfone, questiona os italianos sobre as suas visões e convicções acerca do sexo e do amor.
Se olharmos para a maior parte das atuais reportagens televisivas, vemos que apostam tão-somente no sensacionalismo ou no sentimentalismo. Cada pessoa que aparece nas reportagens das televisões, está lá apenas para ilustrar o que é dito pelo repórter ou para servir de mero exemplo à narrativa apresentada.
De um modo completamente oposto, o filme de Pasolini é uma lição de autenticidade, retratando o povo como um labirinto plural de pessoas, de sensibilidades e de ideias.
Mas deixemo-nos de mais considerações e vamos ao filme propriamente dito. No excerto que deixamos mais abaixo, Pasolini está numa praia da Calábria, no sul de Itália. Questiona uma senhora já de uma certa idade, sobre qual é o lugar das mulheres. Seguidamente fala do mesmo exato assunto com uns quantos homens que por ali andam, que lhe dizem que o papel da mulher é ser mãe. É somente a isso que se deve dedicar e não a trabalhar.
Dizem-lhe ainda que, ao contrário do que sucede no norte de Itália, no sul as mulheres não devem ir sozinhas ao café ou ao cinema. Pasolini pergunta também a uma miúda ali presente, com os seus oito ou nove anos, se porventura concorda com o que está a ser dito, ao que ela lhe diz que não. Na sua opinião, os homens da Calábria querem que as mulheres sejam sérias e reservadas, apenas porque são ciumentos.
Depois, pergunta à senhora de uma certa idade e à miúda, o que pensam sobre o divórcio. As duas têm uma opinião radicalmente diferente uma da outra, é ver:
Numa outra sequência, Pasolini entrevista uma humilde família de agricultores, pai, mãe e filha, que habitam nos campos perto de Bologna. Pergunta à dona da casa, se acha que nas relações entre homens e mulheres era melhor como era antes, ou como o é na atualidade. A camponesa responde-lhe que antes era melhor pois havia mais pudor. Coloca a mesma questão à filha adolescente, que responde precisamente o oposto da mãe.
Pergunta ainda à jovem, se pensa que pode ter a mesma liberdade que um homem, ela diz-lhe que sim. Já o pai, perante a mesma questão, responde não. Que não é suposto a filha ser assim tão livre, deve ser um pouquinho menos livre que um homem, não muito, mas um pouquinho.
Pasolini vai depois ter com uma outra mulher, que estava a trabalhar nos campos, e pergunta-lhe se acha que há muita diferença no modo de fazer amor entre o tempo em que ela era jovem e o agora. Ela responde-lhe que antes era diferente, que quando jovem não conseguia fazer nada, tinha de estar sempre em casa fechada e vigiada, que agora sim é que é bom, que anda tudo por aí à solta.
Aparece ainda uma velhota, a quem Pasolini pergunta se havia mais liberdade no seu tempo de nova ou na atualidade, surpreendentemente ela responde que no tempo dela andavam mais livres.
Num bar de praia, Pasolini aproxima-se da proprietária, fica a saber que é casada há trinta e cinco anos e pergunta-lhe se o casamento resolve o problema do sexo, ela diz-lhe que sim. Questiona-a ainda se crê que o seu marido pensa como ela, ela diz-lhe novamente que sim.
Pergunta-lhe depois, se acredita que no geral todos pensam como ela, ou se a sua opinião apenas se aplica a si própria. Ela diz-lhes que se todos forem como o seu marido, é geral.
Pasolini vai depois para uma praia da Toscana e pergunta a uns quantos homens se o matrimónio resolve o problema do sexo. Um deles diz imediatamente que não. Apresenta como justificação da sua resposta, que o matrimónio é uma coisa um tanto ou quanto monótona.
Já um segundo homem que ouve a conversa, emite uma opinião diametralmente oposta à do primeiro, para ele o casamento é uma instituição sagrada, na qual o sexo é apenas um complemento e não o verdadeiramente importante.
Como já todos terão percebido, o filme tem a sua graça. Todos dizem abertamente o que pensam, e mesmo pensando coisas muito discordantes e sendo o tema sensível, ninguém se exime ou receia dizer o que tem para dizer, em síntese, eram outros tempos.
Para finalizar, deixamos-vos abaixo o link com o filme completo, com legendas em inglês. Dura uma hora e meia, acreditem que seja lá qual for a vossa opinião sobre tais assuntos, vale a pena ver:
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