Há por cá uns movimentos que dizem querer reconquistar a identidade de Portugal. Segundo os ditos, a pátria encontra-se em perigo, pois está a ser invadida por estrangeiros de origens distantes, que terão como objetivo proceder à substituição gradual da população nacional, ou seja, a de lusitana origem, por uma outra vinda sabe-se lá donde.
Tais movimentos usam abundantemente as redes sociais para defender e divulgar as suas teses, se assim lhes podemos chamar. Como estão convencidos que há uma maligna conspiração para não dar a conhecer a suposta gravidade da situação, decidiram eles próprios fazer reportagens pelas capitais de distrito do país, para propagandear o terrível risco que ameaça a pátria e as suas principais cidades. Querem acordar Portugal antes que seja tarde.
A esse conjunto de reportagens deram o seguinte nome: “A grande invasão”. Nós já vimos o trailer, e o que vos podemos dizer é que é mega-engraçado, é mesmo fartar de rir.
Provoca quase tantas gargalhadas como outras coisas que abundam nas redes sociais, tipo quedas aparatosas, pessoas a fazer caretas, gatinhos aos saltos, velhos e crianças que se engasgam ou entornam o prato da sopa, incidentes embaraçosos e mais umas quantas brincadeiras do mesmo género. Em síntese, vale a pena ver, é um bocado bem passado.
Mais abaixo temos uma imagem retirada do trailer, no qual o protagonista-repórter se passeia alegremente pela Rua do Benformoso em Lisboa. Para quem não sabe, a dita rua nasce perto da Rua da Mouraria e do Martim Moniz, vai subindo e desagua no Largo do Intendente.
O protagonista-repórter caminha pela rua na direção oposta à que nós descrevemos, começa perto do Largo do Intendente e vem descendo em direção ao Martim Moniz. Fez bem, não é que o declive seja muito inclinado, mas ainda assim, como diz o bom povo português, a descer todos os santos ajudam.
Pelo aspeto vê-se que é um homem decidido, os gestos são firmes e desde a indumentária ao modo resoluto de caminhar, é toda uma pose e atitude de quem sabe o que quer e tem ideias definidas sobre o mundo em seu redor.
Vê-se que não anda a dormir. Ou se anda e é sonâmbulo, pelo menos pela Rua do Benformoso abaixo parece ir acordado, isto muito embora vá a falar sozinho por ali afora. Enfim, fica a dúvida.
A primeira coisa que nos diz, logo para abrir a conversa é, e passamos a citar, “não, não é o Paquistão”. Cá está, confirma-se o que dizíamos, o homem tem realmente ideias definidas sobre o mundo em seu redor, de facto não é efetivamente o Paquistão o local por onde ele anda, pois esse país fica num continente longínquo, no caso, a Ásia. Nota-se que sabe de geografia e desconfia-se que afinal está acordado.
Mas como se a constatação que não está no Paquistão, não fosse por si só prova suficiente das ideias definidas que o homem tem sobre o mundo em seu redor, o protagonista-repórter sabe também, e gentilmente partilha connosco esse seu saber, que estamos no centro histórico de Lisboa.
Há que dizer que é uma coisa muito bem vista da sua parte, é algo que só alguém que está particularmente atento à realidade e não anda a dormir em pé poderia saber.
Logo depois de nos ter informado num tom assertivo que a rua por onde vai não se situa no Paquistão, mas sim em Lisboa, o protagonista-repórter diz-nos que estamos a dois minutos a pé do Castelo de São Jorge. Como diz o bom povo português, agora é que a porca torce o rabo.
Estávamos nós para aqui a elogiar o homem e ele sai-se com uma destas. Na verdade, para se ir da Rua do Benformoso ao Castelo de São Jorge a pé, em menos de vinte minutos não se vai, nem com muito boa vontade.
Vá lá um quarto de hora, mas menos do que isso é impossível, pois ainda por cima, o caminho é sempre a subir, e sendo esse o caso, os santos já não ajudam. Mais a mais que aí sim, o declive é bastante inclinado.
Em resumo, o homem está muito atento ao mundo em seu redor, mas conhece mal a capital do seu país e igualmente o percurso para um dos maiores símbolos da identidade nacional, a saber, o Castelo de São Jorge. Está mal.
O nosso conselho é que faça como um qualquer turista e peça indicações sobre o caminho a seguir a um habitante local, com toda a certeza que encontrará um paquistanês que por ali resida, que lhe poderá dar uma informação rigorosa sobre o percurso a efetuar e o tempo que demorará a chegar até ao castelo.
Um monumento que, diga-se de passagem, está no alto de uma colina, erguendo-se para o céu com um ícone da fundação da nossa nação. Foi mandado construir pelos mouros, como antes se chamavam, agora é mais árabes.
Aqui fica uma imagem da calçada que há para se fazer, caso ao castelo se queira ir. Como se vê, é uma coisa íngreme.
Um pouco depois, no trailer de “A grande invasão”, o protagonista-repórter diz-nos, e passamos novamente a citar, que há vinte anos ou dez anos (para ele tanto faz, mais ano menos ano vai dar ao mesmo, ainda é jovem), a Rua do Benformoso tinha negócios e pessoas portuguesas.
Se antes tínhamos ficado um tanto ou quanto desapontados por verificar que o homem não sabia o tempo que se levava a chegar ao castelo, agora recuperámos a confiança no senhor, pois percebemos que ele sabe perfeitamente a história dos lugares da cidade capital do seu país.
Com efeito, há dez, vinte e há muitos mais anos, toda aquela zona tinha negócios e pessoas portuguesas. Tinha até várias a cada esquina a fazer negócios de noite e de dia. Uma qualquer pessoa chegava a uma esquina e perguntava quanto era a uma outra pessoa, que já lá estava à esquina parada há horas à espera de fazer negócio. A pessoa que estava parada há horas à esquina respondia à acabada de chegar, que era tanto pelo serviço e mais tanto pelo quarto e pronto, o negócio fazia-se logo ali sem mais demoras.
Veio muito a propósito, o protagonista-repórter ter vindo lembrar esse período histórico dessa zona da cidade de Lisboa, que tantas saudades deixou a tantos. A bem dizer, a vocação dessa zona para o negócio, vem já do século XIX e está profusamente documentada na literatura da época e em muitos fados.
Assim sendo, um dos primeiros passos a dar para reconquistar o cariz nacional da Rua do Benformoso e das zonas adjacentes do Intendente e da Mouraria, é acabar com os recentes restaurantes de comida com caril e fazer regressar os ofícios tradicionais. O cariz histórico do sítio exige que volte ao lugar a mais antiga profissão de sempre.
Nós apoiamos a causa da reconquista das esquinas e até contribuímos com um slogan “Viva o cariz português, diz não ao caril e sim à meretriz”.
No seguimento do trailer, o protagonista-repórter fala-nos de uma bola de cristal e de como vai ser o futuro em Portugal, ou seja, igual ao presente da Rua do Benformoso. Ressalva no entanto, que tal só sucederá se porventura não travarmos a atual grande invasão.
Nós não queremos duvidar dos dotes divinatórios do homem, até porque sendo ele um habitué dessas zonas da capital, é provável que tenha entrado em contato com muitos dos bruxos, curandeiros e feiticeiros que exercem as suas artes pelo Intendente, Benformoso e Mouraria.
Por lá laboram o Doutor Tatou, o Mestre Silá, o Professor M’Bemba e o grande vidente Mamadou Karamba. Tudo gente de quem certamente o protagonista-repórter há de ter recolhido conselhos sobre o melhor modo de fazer previsões sobre o futuro de Portugal.
Mas dito isto, talvez valesse a pena olhar para o passado, mais concretamente para uma pintura do século XVI intitulada “Chafariz d’el Rei". O quadro retrata a Lisboa quinhentista e nele podemos constatar como era numerosa a população de origem africana na cidade à época. Se calhar a grande invasão já iniciou há cinco séculos, é uma hipótese plausível.
No quadro retratam-se uns quantos africanos que eram escravos, mas ao contrário do que habitualmente se pensa, havia também muitos outros que viviam e conviviam de igual para igual com a restante população.
Inclusivamente, existia até quem fosse de origem africana e tivesse sido armado cavaleiro. Era o caso de João de Sá Panasco, nascido no Congo em 1524 e falecido em Lisboa em 1567.
Panasco foi armado cavaleiro da Ordem Militar de Santiago da Espada por D. João III. Veio do Congo na condição de escravo, mas foi levado para a corte, onde ficando rapidamente conhecido e sendo muito apreciado pelos seus chistes, ditos e motes. Devido a ser um homem de humor vivo, obteve o alto apreço do rei e ambos tiveram uma relação de enorme cumplicidade.
Em consequência da sua notoriedade, João de Sá Panasco foi retratado na já referida obra “Chafariz de El-Rei”, quadro atribuído a um pintor holandês desconhecido, podemos vê-lo na parte inferior direita da pintura, com um requintado chapéu e montado no seu garboso cavalo. Leva vestes negras, nas quais se destaca nas costas a rubra cruz da Ordem de Santiago da Espada.
O protagonista-repórter de certeza que se esqueceu do Panasco e de todas as muitas outras gentes de sítios distantes que andam por Portugal, e mais concretamente por Lisboa, desde há séculos. É natural, o homem tem tanto que fazer, tantas capitais de distrito para ir, que por vezes se esquece de coisas importantes, como por exemplo, que a identidade nacional é desde sempre composta de gentes de muitas cores e lugares. Que essa multiplicidade é mesmo uma das características essenciais de Portugal, ou seja, faz parte de cada português.
Pronto, o homem esqueceu-se disso e pôs-se para aí falar de reconquistas, mas não faz mal, nós estamos cá para o lembrar, aqui vai:
- Ó homem acorda, lembra-te do Panasco que há ti.
Terminamos com um pequeno filme, sobre o quadro “Chafariz de El-Rei” e em como a Lisboa quinhentista era uma cidade global. São uns dois minutos que interessam, ao contrário dos mesmos poucos minutos, que dura o trailer da série (que essa então é que não interessa mesmo para nada) de “A grande invasão”:
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