Examinámos a fotografia acima e verificámos que é uma imagem da cidade de Nova Iorque, captada no ano de 1970. Trata-se do local onde se cruzam a famosa 5th Avenue, uma das mais caras ruas do mundo, e a 110th Street, que se situa em East Harlem.
Fazer um exame tem sempre algo que se lhe diga. É preciso estudar muito, isso é certo, mas também se necessita de ter um pouco de sorte. “Do you feel lucky punk?”, foi o que perguntou Clint Eastwood a um malfeitor no filme “Dirty Harry” de 1971, apontando-lhe uma arma ao rosto.
Na película, Clint interpreta o personagem de um policia, Harry, que logo para abrir as hostilidades anda pela ruas aos tiros, faz capotar um automóvel e deixa tudo num alvoroço.
Harry, nesse corrupio todo disparou tiros à farta e fica então defronte do já referido delinquente. Este último tem uma arma à mão, e a decisão que tem de tomar, é se a vai ou não tentar usar. A questão é simples, ou bem que Harry já disparou cinco tiros e já não tem mais balas no carregador da pistola, ou bem que só disparou quatro e ainda lhe resta uma.
Parece uma conta de subtrair muito fácil de se fazer, mas é na verdade uma questão difícil. É como aquelas perguntas que por vezes saem nos exames, das quais se diz que têm rasteira.
Se o delinquente não esteve com extrema atenção aos números, ou seja, à quantidade de tiros disparados por Harry, a única hipótese que tem é arriscar uma resposta. Falhando, isso custa-lhe a vida, acertando, pega na sua arma e safa-se, sendo o Harry que se lixa.
Será que valerá mesmo a pena arriscar, pensará o malfeitor. É por isso que Clint lhe pergunta “Do you feel lucky punk?”
Aquilo de que essa cena do filme nos fala é muito claro, resumindo-se do seguinte modo: há momentos na vida, em que, ou bem que se sabe a resposta correta, ou bem que falhando-se, é-se imediatamente liquidado com balas de chumbo, sejam estas metafóricas ou reais. No fundo, é como num exame, quando não se dá as respostas acertadas, o mais provável é chumbar-se.
A Nova Iorque retratada no filme “Dirty Harry” é a do início da década de 70. Uma cidade completamente decadente onde nada parecia funcionar. A recolha do lixo não é feita, as taxas de criminalidade atingem índices altíssimos, o desemprego é enorme, o trânsito não escoa, os negócios imobiliários estão parados e por todo lado há falências e gente arruinada.
Essa Nova Iorque da década de 70 e princípios da de 80, era o pesadelo da América. Era a negação viva do “American Dream”. Foram muitos os que retrataram esse ambiente urbano absolutamente disfuncional, como por exemplo, a célebre série televisiva “A balada de Hill Street”.
Em Portugal a série, cujo título original era “Hill Street Blues”, passou na RTP 1. No Brasil passou na Rede Globo e o título que lhe deram foi “Chumbo Grosso". Não deixa de ser curioso, que a palavra chumbo e seus derivados vá continuamente aparecendo quando há forças que querem restabelecer a ordem. Talvez seja uma coincidência.
Mas enquanto uns iam tentado impor a lei e a ordem pela força, a cidade de Nova Iorque foi-se lentamente renovando através da criatividade. Na verdade, dada a imensa crise da cidade, existiam muitos espaços vazios ou até abandonados no seu centro. Uns quantos tiveram então a ideia de os usar para pintarem, esculpirem, abrirem bares e fazerem festas.
Os espaços onde antes funcionavam armazéns ou indústrias leves estavam agora desocupados, uns ficavam nos pisos superiores, os lofts, outros situavam-se nos pisos inferiores, no “underground”. Vai daí, como as rendas eram muito acessíveis, quase ao desbarato, muitos desses espaços foram transformados em galerias de arte, em ateliers e em discotecas.
Foi num desses lugares, que aconteceu aquilo a que posteriormente se convencionou chamar “The Most Influential Dance Party In History”. Cumprir-se-á pelos próximos dias, mais um aniversário desse momento, pois foi em 14 de fevereiro de 1970, que um humilde rapaz de 25 anos, de seu nome David Mancuso, teve a brilhantes ideia de abrir uma discoteca, “The Loft”.
A novidade era total, foi aí que se inventou o conceito de discoteca. Antes havia boites, clubes noturnos, salões e tudo o mais, onde grupos de baile ou pequenas orquestras animavam o serão. Um sítio onde se fosse só para se dançar, exclusivamente ao som de discos, isso é que não havia. Foi uma revolução.
A revolta dos que querem dançar, é uma expressão que traduz perfeitamente o que se passou. Entre os que queriam dançar ao som dos discos pela noite afora, aqueles em cujo esse desejo tinha mais intensidade, eram os negros e os gays. Inicialmente, foi para esses e no seu seio, que nasceu o chamado Disco-Sound.
Muito antes das bandas que atualmente imediatamente associamos ao Disco-Sound, como por exemplo, os Bee Gees ou os Village People, havia músicos e cantores que compunham temas, que expressavam a vida, a cultura e as preocupações da comunidade negra e da dos gays. Expressavam-no no ritmo, nas letras e nas melodias, mas também através da dança.
Vejamos um exemplo de um dos momentos iniciais do Disco-Sound. O tema intitula-se “The Love I Lost” e é interpretado por Harold Melvin & the Blue Note. Se forem ver o vídeo que abaixo vos deixamos, verificarão que os diversos elementos da banda ainda se movimentam de um modo estereotipado, com uma coreografia muito encenada. Contudo, perceberão também que o vocalista, Teddy Pendergrass, que rapidamente se separaria da banda, ensaia já movimentos mais libertos e arrisca tons e vocalizações que o distinguem claramente dos restantes intérpretes do conjunto.
Mas, o mais notório, é que todo o público dança e fá-lo de um modo ágil e livre, como até então ninguém fazia. Se juntarmos a isso o facto da letra do tema não falar de um amor feliz, coisa muito mais agradável e comercial, e sim de uma separação sem regresso possível, está dado o tom para a revolução que foi o Disco-Sound.
Quando há uma revolução, ela ocorre sempre de uma forma transversal, ou seja, os seus efeitos fazem-se sentir por todos os lados e, ao mesmo tempo, atravessam e cruzam os mais diversos pontos. Por consequência, o que estava aqui passa para ali, o que estava acoli vai para acolá. Tudo se transforma e se altera, e o que antes estava separado e estanque, muda de lugar e passa então a estar misturado com todo o restante.
Como é evidente, tal consideração aplica-se a todas as revoluções políticas e sociais. Pensemos por exemplo, na maior e mais influente de todas, a Revolução Francesa. Subitamente, a realeza e a nobreza deixaram de o ser, o clero mudou de lugar na escala social e o povo ascendeu, passando a estar representado em todas as assembleias e locais onde se tomavam as decisões. Em síntese, nada ficou como dantes, tudo se misturou e as mudanças foram absolutamente transversais.
Há quem não goste de revoluções, estarão no seu direito, mas é um modo tacanho de se pensar. Há milénios a descoberta do fogo foi uma revolução, assim como o terá sido a invenção da roda e da escrita, outro tanto o terão sido sido a descoberta da América, a pintura de Picasso ou a música dos Beatles.
Em resumo, são inúmeras as invenções, descobertas e criações que poderemos designar como tendo sido autênticas revoluções, entre estas, podemos também contar o Disco-Sound.
Uma coisa que é importante perceber-se, é que o Disco-Sound não era só alegria, euforia e dança. Era também uma espécie de música de intervenção. Muitas das letras falavam também de direitos e liberdades, como por exemplo, as das mulheres negras.
Um claro exemplo disso, é o tema “Young hearts run free” de Candi Staton. A intérprete foi ela própria vítima de violência e abusos por parte do marido, razão pela qual se afastou dele e decidiu dar a voz a todas que como ela passaram pela mesma situação. Numa passagem da canção diz-se assim: “Who wants to live in, in trouble and strife. My mind must be free, to learn all I can about me…”
Que esta espécie de canção de intervenção, tenha sido uma dos maiores sucessos de sempre nas pistas de dança das discotecas nova-iorquinas e não só, é prova mais do que suficiente, que tudo estava a mudar:
Se atentarmos bem nas letras de um tema clássico do Disco-Sound, “I will survive” de Gloria Gaynor, percebemos que também nesse caso, se fala da independência das mulheres face aos homens. Num outro tema também muito conhecido, “Macho Man”, dos Village People, a letra como que redefine jocosamente os estereótipos da masculinidade.
Em síntese, a lição pedagógica que podemos retirar da história do Disco-Sound, é que na sua origem foi um movimento de inclusão. Inclusão para todos aqueles grupos sociais que nessa altura eram marginalizados, como as mulheres, os negros e os gays.
A revolta daqueles que queriam dançar concretizou-se no Disco-Sound. Mas esse som dá-nos ainda outras lições pedagógicas. Uma delas é que os DJ’s começaram a fazer misturas. Significa isto, que não se limitavam a pegar num disco isolado e pô-lo a tocar. Misturavam batidas, sons e ritmos de outros discos com o primeiro e colocavam trechos (samples) de variados temas pelo meio. Sendo que tudo isso, resultava em algo de completamente diferente do que até esse tempo existia, algo de muito mais divertido e excitante.
A partir de diversas músicas com a duração média de três minutos e meio cada, os DJ’s desconstruíam-nas e remontavam-nas, criando assim autênticas narrativas dançantes, que se prolongavam por horas, pela noite fora.
Pensemos num caso clássico. Larry Levan, que era à data o guru dos gurus dos DJ’s, conseguia cruzar como ninguém as melodias, batidas e ritmos de muitos e variados temas musicais. Os sons que nasciam na sua mesa de mistura, eram um exemplo do que é ser-se transversal. Nenhum tema era abordado isoladamente, todos confluíam numa narrativa musical e dançante.
No fundo, o que Larry Levan fez durante inúmeras noites, foi o equivalente ao que se faz em certas escolas, quando se põem as diversas matérias a dançar umas com as outras. A História, o Português, a Matemática, a Ciência, as Artes e muitas outras misturam-se e o que acontece nessa outra pista de dança que é uma sala de aula, é algo de transversal.
Vejamos a “Extended Mix” que Larry Levan fez com o tema “Ain’t no mountain high enough” para a sua discoteca “The Paradise Garage”:
Depois de todas estas muitas movimentações musicais, o certo é que Nova Iorque recuperou. Bairros como Soho, que nos anos 70 e início dos 80 estavam decadentes e semi-abandonados, são hoje o melhor exemplo do puro glamour, sendo que, para que tal sucedesse, muito contribuíram todos esses pioneiros do Disco-Sound com a sua vontade de incluir e misturar. Em conclusão, fizeram uma revolução transversal que atravessou a esfera musical, social e urbanística.
E pronto, aqui chegados, voltemos a Harry, o polícia interpretado por Clint Eastwood. Harry queria limpar Nova Iorque à força. Se não ia a bem, ia a mal. Na década de 70, “Dirty Harry” foi um estrondoso sucesso comercial em Nova Iorque e não só, pois havia muito quem como Harry exigisse que houvesse rigor, ordem e disciplina, caso contrário, chumbo neles.
A nós, Dirty Harry, não nos impressiona. Faz muito espalhafato, dispara para todos os lados, coloca quem apanha pelo caminho em situações limite em que, como num exame, respostas incorretas são fatais (Do you feel lucky punk?), mas feitas as contas é muito barulho para nada. A todo esse chavascal, preferimos antes o Disco-Sound.
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