Como terão reparado, na imagem, há alguém que anda pelo telhado. Não o devia fazer pois é perigoso e além disso os telhados não foram feitos para se caminhar por cima deles. O homem é François Truffaut e não estava ali a fazer nada de útil, como por exemplo, a mudar as telhas ou a desentupir o algeroz, subiu simplesmente ao telhado para ver a cidade de uma outra maneira, de uma perspetiva inabitual. Truffaut era um bocado rebelde, mas não é de nada disso que hoje vos vamos falar.
Aqui há uns tempos, não muito distantes, até mesmo bem recentes, constatámos com espanto, que já escrevemos para este blog mais de quatrocentos textos. Ao dia de hoje, pretendemos assinalar esse marco. Melhor dizendo, não propriamente o número quatrocentos, mas antes sim “o mais de quatrocentos”.
Quem nos lê poderá questionar-se sobre o porquê de assinalarmos “o mais de quatrocentos” textos, e nada termos dito aquando dos quatrocentos certos, nem tão-pouco dos duzentos ou dos trezentos. Perante tal, talvez o leitor conclua, que provavelmente nós não gostamos dos chamados números redondos ou certos, contudo, a verdade é que conclui mal.
Com efeito, não temos nenhum sentimento em particular, relativamente aos números certos ou redondos, não gostamos, nem deixamos de gostar. Temos igual indiferença sentimental perante os números incertos ou não redondos. Em síntese, tanto nos faz como nos fez.
Nem toda a gente é assim, há por exemplo, quem só por sentir a proximidade de um número redondo ou certo, delire imediatamente de contentamento. É o caso de quem adquire um qualquer produto por 99,99€, e fica satisfeitíssimo por o ter adquirido por um valor inferior a 100€. Só por isso, já considera que conseguiu uma autêntica pechincha.
Em sentido oposto, também há quem entregue uma nota de 100€ para pagar os mesmos 99,99€, e depois diga com desprezo e desdém dirigindo-se ao vendedor, “deixe estar assim, que não é necessário dar troco”.
Há também quem nas escolas fique muito feliz por chegar à lição n.º 100, mas isso a nós, nada nos diz. Não deliramos nem desprezamos ou desdenhamos dos números certos e dos que deles se aproximam, o mais certo é nem sequer repararmos nisso, pois não somos sensíveis a tais regularidades.
O nosso principal ponto, é que não somos fetichistas numéricos, por consequência, nem nos entusiasmámos quando há longo tempo fizemos vinte anos, nem nos deprimimos ao completarmos cinquenta. Tal como, em finais do século passado, não aguardávamos pelo ano 2000 com particular expectativa.
A bem dizer, o ano 2000, não foi muito diferente do de 1999, nem do de 2001. De igual modo, quando fizemos vinte anos a vida não foi distinta de quando tínhamos dezanove ou vinte e um, e por fim, ter quarenta e nove ou cinquenta e um, na verdade tanto nos dá.
Assinalar como marcos os números certos e redondos não é a nossa onda, pois há muitas outras formas diferentes de fazer contagens. Nisso estamos absolutamente de acordo com o que nos ensina um poeta português do nosso tempo. Um que nos diz assim:
Nem uso relógio
Há tanta forma de contar o tempo
Um cigarro dura cinco
minutos
Uma noite de sono oito
horas
Um amor, um
amor
Uma vida uma
vida.
Após todo este longo intróito, que terminou coroado por um belo momento poético, voltemos então ao nosso tema, ou seja, “o mais de quatrocentos”, neste caso em específico, de textos.
Voltamos mas para contrariar tudo o que antes dissemos. A verdade é que tínhamos mesmo a intenção de assinalar o texto n.º 400, assim todo ele redondinho. O caso é que nos distraímos, e quando demos por isso, já íamos mais à frente. Consequentemente, tivemos de inventar toda a dissertação anterior, para fazer de conta que não gostamos de números certos. Na realidade gostamos, adoramos, até nos pelamos todos só de ver uns quantos zeros à direita.
Portanto agora é que é mesmo à séria, assumimos que vamos mesmo assinalar o nosso texto n.º 400, apesar de por esquecimento, já irmos um tanto ou quanto mais à frente.
No fundo, é como quando nos olvidamos da data de aniversário de alguém e só lhe damos os parabéns uns tempos depois, são coisas que acontecem entre marido e mulher, pais e filhos, amigos e conhecidos e ninguém se vai chatear por causa disso.
Mas dito isto, perguntará quem nos lê, mas porquê o quatrocentos. Como já hão de ter reparado, quem nos lê faz muitas perguntas, mas não faz mal, que nós estamos cá para as responder.
Queremos assinalar o nosso texto n.º 400 por conta de uma expressão francesa, “faire les 400 coups”. A expressão remonta ao século XVII, quando o Rei Louis XIII decidiu tomar a cidade de Montauban. Fê-lo bombardeando-a com 400 tiros de canhão. Contudo, a coisa correu-lhe mal, pois os tiros saíram todos ao lado, tendo a operação militar resultado num enorme fracasso e num vergonhoso embaraço.
Daí para a frente, em França, “faire les 400 coups” tornou-se sinónimo de asneira da grossa, ou seja, de tontice ou parvoíce. Com o passar do tempo, a expressão foi evoluindo e passou sobretudo a estar associada a malandragens, a traquinices, à desobediência e àqueles que vivem fazendo o que muito bem lhes apetece e não recebem ordens de ninguém.
Foi tendo em atenção esse sentido da expressão, que em 1959 François Truffaut realizou um filme que se viria a tornar um clássico da sétima arte, “Les 400 coups”. A película conta-nos a história de Antoine Doinel, um rapaz de Paris, que com 14 anos, se insurge contra o autoritarismo dos seus professores e continuamente desdenha das regras que a sua família lhe impõe. Falta com frequência às aulas para ir ao cinema, e passa muito mais tempo a passear pelas ruas e a conversar com os amigos do que a estudar.
Antoine também gosta bastante de ler, tem uma admiração absoluta pelos livros do grande escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850). No entanto, na escola, não foi pelo facto de ser um grande leitor, que foi considerado um melhor aluno, ali unicamente interessava aos professores se sabia ou não a matéria.
Na verdade, a história do filme é autobiográfica, tendo sido inspirada nas próprias experiências de François Truffaut, entre o final da sua infância e o início da adolescência.
A nossa cena favorita de “Les 400 coups”, é uma na qual se mostra uma aula de Educação Física. Para os saudosistas do antigamente, vale a pena ver como eram as coisas nesses velhos tempos, em que os jovens adoravam ir à escola, eram respeitadores para com os professores e cumpriam todas as tarefas que lhes eram propostas:
Ora bem, neste momento, já quem nos lê terá percebido, que assinalamos o nosso texto n.º 400, em virtude de uma das inspirações primeiras deste blog ser o filme “Les 400 coups”.
É-o por várias razões, mas sobretudo por ter sido o filme inaugural de uma outra forma de fazer cinema, distinta de tudo o que até então se fazia. “Les 400 coups” foi o filme fundador daquilo que posteriormente se designaria como a Nouvelle Vague.
A Nouvelle Vague foi uma revolução, libertou o cinema das suas amarras. Trouxe os filmes para a rua, pois antes tudo era filmado no interior de estúdios.
Na rua não havia cenários, havia sim avenidas com gente a passar, movimento e agitação, assim como surpresas e imprevistos. Nada estava tão completamente controlado como quando tudo era feito tão-somente dentro de um estúdio, mas exatamente por essa razão, o cinema pareceu então estar e ser mais real e vivo do que alguma vez tinha sido.
A Nouvelle Vague trouxe também uma outra linguagem narrativa. Jean-Luc Godard, um outro grande fundador desse movimento, disse assim um dia: “Uma história deve ter um princípio, um meio e um fim, mas não necessariamente por esta ordem.”
A característica mais marcante desta corrente, foi a intransigência para com os moldes estabelecidos e o desejo de não fazer como sempre se fez, só porque foi assim que sempre se fez. Arriscaram, erraram, tentaram e inventaram, e foi fugindo ao que era certo e seguro, que sem dramas e com grande descontração, mudaram o cinema para sempre.
Este blog dedica-se a temas educativos e à escola, mas nunca se refere à matéria, a não ser muito de vez em quando, e de um modo um tanto ou quanto depreciativo. Tal e qual como a Nouvelle Vague, acreditamos que é na rua que está a educação, sendo por essa razão, que queremos a rua pela escola adentro e vice-versa.
As salas de aula sem rua, são tal e qual como os estúdios, ambientes previsíveis e controlados, onde só acontece aquilo que já se sabe de antemão que vai acontecer, e em que o inesperado ou não planeado, é sempre uma contrariedade, quando não um drama.
Dir-se-ia que para muitos, a escola perfeita seria aquela em que tudo decorre tranquilamente tal como o previsto, e nada de desacautelado sucede, ou seja, há quem almeje viver num lugar onde haja algo de equivalente à paz dos cemitérios.
Indo, ou deixando a si vir a rua, as salas de aula ganham imediatamente uma nova vida, deixando de ser só mera matéria. Indo, ou deixando a si vir os jardins, as praças e mercados, as obras de arte e os museus, os teatros e os cinemas, os monumentos, as árvores e os rios, e também as gentes que continuamente andam para cima e para baixo nos seus afazeres, a escola rejuvenesce a cada dia.
O sítio donde vêm os grandes ensinamentos, aqueles que são imprevisíveis e surpreendentes, situa-se fora da escola, na rua. À primeira compete-lhe saber convidar a entrar ou então ir de visita. Fechada em si, sempre a dar matéria, é que não deve ficar.
Se nos pedissem para definir o que é uma escola, poderíamos enumerar quatrocentas coisas diferentes: os escritores, os poetas, os filmes, as plantas, as nuvens, os lagos, os continentes, a bola, as árvores, as esculturas, as pinturas, os palácios, os castelos, as estátuas, as canções, os vulcões, as casas, os arquitetos, os artistas, os sapateiros, as flores, os bichos e por aí afora. Uma coisa que não enumeraríamos certamente, era a matéria, pois que esta mais não é do que todas estas coisas e muitas mais, só que como se estivessem mortas.
Uma vez Jean-Luc Godard definiu o cinema, foi num trailer. Nele dizia assim: “uma mulher, um homem, a Itália, um Alfa-Romeo, o music-hall, uma estátua grega, um revólver, um quarto de dormir, um beijo, a casa de banho, um louco, um velho, o mar, a ternura, a vingança, o sofrimento, um passeio, um livro, um barco, o sol…”
Há quem diga que é o mais belo trailer alguma vez feito:
Aqui chegados só nos resta acabar, o n.º 400 está assinalado. Findamos com um poema acerca das coisas que vale a pena aprender, dessas que andam pelas ruas e não morrem nas páginas de um manual escolar transformadas em mera matéria:
Coisas que nunca tivessem ocidente. Crianças
que nunca envelhecessem. Rios
que não desaguassem. Coisas
sem o engodo de crescer
em direção à morte.
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