O título deste texto é uma espécie de trocadilho entre “há que anos” e “Cannes”, admitimos que alguns não o considerem particularmente brilhante, mas isso já nós calculávamos, pois não há quem consiga agradar a gregos e a troianos.
Em qualquer dos casos, sejais vós gregos ou troianos, o importante é perceber que o título desta nossa prosa vem no contexto do prémio que, há uns poucos dias, foi atribuído pelo júri do Festival de Cannes, ao cineasta português Miguel Gomes pelo seu novo filme, “Grand Tour”.
O festival existe desde 1946 e nunca Portugal tinha tido um prémio tão bom, apenas houve recompensas para uma ou outra curta-metragem ou para um pequeno filme de animação, distinções menores, quando comparadas com esta. Um galardão de tal dimensão e importância para o cinema nacional, como o desta ocasião, aconteceu pela primeiríssima vez. Não é que antes já não tivesse havido filmes portugueses que o mereceram, contudo, por isto ou por aquilo, nunca tal tinha sucedido.
O inédito prémio para um português, foi atribuído na categoria de melhor realizador. Ainda não é a Palma de Ouro, ou seja, o prémio de topo em Cannes, mas anda lá bem perto.
Só para se compreender a grandeza do feito, vamos enumerar os míticos nomes de uns quantos grandes cineastas, que ao longo dos tempos venceram o dito prémio: François Truffaut, Andrei Tarkovsky, Martin Scorcese, Wim Wenders, Pedro Almodóvar, Sofia Coppola, Ingmar Bergman, Nanni Moretti e David Lynch.
Abaixo um cartaz do festival, no caso, o do ano de 2015.
É certo que os Oscares de Hollywood são mais populares que os prémios do Festival de Cannes. As televisões, as redes sociais e os jornais adoram-nos, todavia, muitos dos filmes aí premiados não são lá essas coisas, e passados uns tempos, já ninguém se lembra deles.
Só por curiosidade científica, fomos à Wikipédia consultar a lista dos vencedores do Oscar de Melhor Filme dos últimos dez anos. Constatámos que não vimos nenhum deles e que nem sequer fazemos a menor ideia acerca do que são.
Provavelmente não vemos televisão suficiente, nem vamos com a necessária frequência a centros comerciais, há de ser por isso, que andamos tão desinformados a respeito dos filmes que nos últimos tempos saíram em triunfo dos Oscares de Hollywood.
Mas se querem saber, não queremos saber. Os Oscares não nos interessam para nada, já o Festival de Cannes interessa-nos bastante. Com efeito, da lista de filmes que ao longo dos anos o festival galardoou, muitos contam-se entre os nossos favoritos de sempre, sendo que deles já falámos bastante em anteriores textos deste blog.
Não raras vezes, os filmes premiados em Cannes acabam por ficar na história da sétima arte e ninguém mais os esquece. Vejamos uns quantos exemplos, os nossos preferidos: La Dolce Vita de Fellini, O Leopardo de Visconti, Les Parapluies de Cherbourg de Jacques Demy, Taxi Driver de Scorsese, Apocalypse Now de Coppola, Paris Texas de Wim Wenders e Pulp Fiction de Tarantino, isto para só referir uns poucos e não sermos exaustivos.
Abaixo um cartaz do festival, no caso, o do ano de 2023.
Nós gostamos tanto dos filmes de Miguel Gomes, ponto. Mas dito isto, gostamos muito mais de dois deles, um é “Aquele querido mês de Agosto”, o outro é “Tabu”. Gostamos também de outros quantos, mas esses dois em específico, têm um lugar especial no nosso coração.
O nome do filme “Aquele querido mês de Agosto" foi inspirado no título da canção “Meu querido mês de Agosto”, do cantor popular Dino Meira. A história acompanha os espetáculos da banda de baile "Estrelas do Alva" durante um verão.
A banda atua nas festas e feiras de aldeias do interior norte do país, onde se encontram muitos emigrantes portugueses em gozo de férias. A narrativa segue também os encontros e desencontros amorosos entre os elementos da banda, os jovens filhos dos emigrantes e as gentes da terra.
Há igualmente um filme dentro do próprio filme. A equipa de filmagem filma-se a si mesma nesse meio rural do interior, a tentar fazer um filme para o qual, para sua completa surpresa, não foram disponibilizados nem meios financeiros, nem técnicos suficientes, nem atores.
A equipa de filmagem pensa em desistir da rodagem, mas acaba por decidir improvisar com os poucos meios que possui. Põe-se a filmar o que vê à sua volta, ou seja, as festas e feiras das aldeias. Como atores usa a população local e a música fica a cargo da banda de baile “Estrelas do Alva".
E pronto, foi assim que nasceu o filme “Aquele querido mês de Agosto", cuja história da sua própria realização está relatada no filme, dir-se-ia ser uma espécie de autoretrato. No fundo, o filme concretizado é o resultado de um filme que nunca chegou a ser realizado, ficção e realidade misturam-se e fica-se sem saber qual é qual. Ainda bem. Ser ou não ser, eis a questão.
Aqui fica o trailer:
O outro filme de Miguel Gomes de que muito gostamos chama-se “Tabu”. Trata-se de uma história passada pouco antes do início da guerra colonial, fala-nos sobre a passagem do tempo e das coisas que desaparecem e só existem como memória, fantasmagoria e imaginário. No fundo, são e não são. Ser ou não ser, eis a questão.
A história passa-se a três tempos. No primeiro, o Prólogo, um narrador lê-nos um texto poético e vagamente filosófico onde se fala de África, de um explorador intrépido e de uma linda dama que habita na selva acompanhada por um crocodilo. É uma espécie de lenda, parte realidade, parte ficção.
Num segundo momento, Paraíso Perdido, três mulheres idosas, Aurora, Santa e Pilar, moram no mesmo andar de um prédio de apartamentos em Lisboa, estamos no ano de 2012.
Aurora é uma octogenária reformada. Santa a sua misteriosa criada cabo-verdiana. Pilar uma vizinha, católica e voluntária em grupos de solidariedade social.
Aurora adoece, sente-se às portas da morte. Pede que procurem Gian-Luca Ventura, um velho homem, um antigo colono, que mora agora algures na Amadora.
No terceiro tempo, Paraíso, temos um flashback da vida de Aurora numa antiga colónia portuguesa. A época é o início da década de 60. Aurora é ainda jovem e vive numa fazenda perto da montanha Tabu com o seu marido.
Possui um pequeno crocodilo de estimação, que se passeia pela opulenta casa como um banal animal doméstico. Um dia o bicho fugiu, Aurora encontra-o em casa de Gian-Luca Ventura, um vizinho. Conhecem-se e depressa se envolvem numa relação intensa e apaixonada. Tudo acaba mal e acabam para sempre por ser afastados à força um do outro.
Antes disso, Aurora e o marido davam grandes festas para as quais convidavam os portugueses das redondezas, entre eles Gian-Luca Ventura. A cena que vos deixamos é de uma dessas festas.
Cena essa, na qual o realizador Miguel Gomes optou por usar uma canção da banda americana The Ramones, que na realidade só foi composta muitos anos depois da época em que decorre a ação.
E com “Baby I Love You”, terminamos este nosso texto dedicado a Miguel Gomes e ao cinema português.
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