Estamos bem em crer, que quem nos lê, pouco ou nada saberá sobre os Hikikomori. Nós próprios, que andamos sempre em cima dos acontecimentos, ainda há uns dias também disso nada sabíamos, todavia, agora que já sabemos, estamos dispostos a humildemente partilhar esse nosso recentemente adquirido conhecimento com os nossos leitores.
Os nossos leitores mais espertos, hão de estar neste momento a dizer de si para consigo, que sabem perfeitamente o que é um Hikikomori, contudo, nós vamos já dizer-lhes que não, ou seja, que esqueçam, pois um Hikikomori não é um novo e exótico prato de sushi. Ainda assim, foi uma boa tentativa de quem nos lê, um tanto ou quanto ao lado, mas certamente esforçada.
Talvez pensassem que era fácil, que tinham um bonsai no canto da sala, iam a um restaurante japonês de vez em quando, dominavam a comida toda com os pauzinhos, inclusivamente o arroz, que é mais solto, e pronto, só por causa disso, já eram grandes especialistas em cultura japonesa. Nem pensem em tal, desenganem-se, pois não é assim tão simples perceber o Japão.
Em síntese, se quiserem saber o que é um Hikikomori, vão ter mesmo de nos ler. E não, também não é uma arte marcial, desistam, pois estão a fazer confusão com o Kung-fu, que mais a mais veio da China e não do Japão.
Talvez entre quem nos lê, haja alguém que neste momento foi a correr pesquisar à Wikipédia para ver o que é um Hikikomori. Nós só podemos lamentar tal facto. Que tristeza! À Wikipédia? A sério?
Vamos lá então falar como deve ser, um Hikikomori é quem se isola em casa. Em certo sentido, é um eremita moderno. É gente que evita qualquer contacto presencial com outros. Passam o tempo ao computador, mandam vir comida de fora, não falam com ninguém ao vivo e a cores e raramente saem do seu quarto.
No Japão estima-se que quase um milhão de jovens vivam nestas condições, sendo que o Ministério da Saúde desse país, teve mesmo de criar um vasto programa para tentar combater este tipo de comportamentos, que parece ter tendência para o aumento.
Sociologicamente, os Hikikomori provém quase todos da classe média e são sobretudo do género masculino. As suas idades situam-se fundamentalmente entre os 19 e os 40. A idade média de um Hikikomori no Japão é de 31 anos.
As autoridades japonesas antecipam um grande problema a partir do ano 2030, pois será nessa data que parte significativa dos progenitores dos Hikikomori começará a envelhecer e depois a morrer.
Trazemos aqui este assunto, porque nos últimos tempos este fenómeno ultrapassou as fronteiras do Japão, estendeu-se pela Europa e Estados Unidos e, claro está, chegou também a Portugal.
No último mês foram várias as notícias nos órgãos de comunicação social, que nos deram conta de estudos, que constatam haver já 1,2% de Hikikomori entre a população nacional.
Segundo esses mesmos estudos, teme-se que nos próximos tempos esses números venham a aumentar consideravelmente.
Tal e qual como no Japão e noutros lugares, trata-se sobretudo de jovens acima dos 20 anos de idade, porém, há também gente mais velha, incluindo quem já tenha ultrapassado a barreira dos sessenta.
Provavelmente, quem nos lê, estará já a maldizer os computadores, os tablets e os smartphones por este estado de coisas, contudo, sabe-se que a origem do problema não está nas tecnologias, mas sim a montante destas.
Os Hikikomori começaram a surgir no Japão na década de 70, por essa razão, há muito que os japoneses começaram a estudar esse fenómeno. O que descobriram foi que as tecnologias só potenciam o problema, mas que a sua raiz primeira é outra.
O que os estudiosos japoneses identificaram como sendo as principais causas para este distúrbio são razões “culturais”, mais concretamente, a tendência que existe na sociedade japonesa das últimas décadas para o conformismo, para a superproteção das crianças e jovens pelos pais e também um sistema educativo altamente rígido e rigoroso.
Conformismo social, superproteção das crianças e jovens e um sistema educativo rígido, são estes os três fatores que levaram ao aparecimento dos Hikikomori no Japão. Os computadores, tablets e smartphones só vieram depois, ainda que, tenham vindo a agravar a situação.
Um dos maiores estudiosos deste fenómeno chama-se Drº Takeo Doi, sendo a sua principal obra relativamente a este assunto, o livro “Anatomia da Dependência”, que está traduzido em várias línguas, mas não em português. Abaixo a imagem da capa da edição japonesa.
Analisemos nós um a um, três dos fatores que o Drº Takeo Doi e outros estudiosos apontam como sendo as causas para o aparecimento de tantos Hikikomori. Comecemos pelo conformismo.
Em termos genéricos, o conformismo mais não é do que agir de modo a que tudo fique tal e qual como está. Pouco importa se tudo pode ser melhor, para um conformista está muito bem assim e não se fala mais nisso.
Quando uma sociedade é conformista, isso significa que a larga maioria dos que a constituem não gostam de experiências, ou seja, defendem convictamente a tese, que se sempre se fez assim, não há agora razão para se fazer diferente.
O pior que pode acontecer a uma sociedade conformista, é que haja novidades, se está tudo em conformidade e estamos todos tão confortavelmente instalados, para quê ir-se mexer no que está bem? E mesmo que não esteja, tanto faz, pois tudo se há de arranjar, e mal ou bem, o que importa é irmos andando.
Assim sendo, é absolutamente compreensível que a juventude pense que a única coisa que lhe resta é adaptar-se ao que já há, que no fundo é uma outra forma de se dizer que o seu destino é conformar-se. Ideias novas e outros modos de agir e de ser, nas sociedades conformistas não são coisas bem-vindas.
Sendo os tempos de conformismo, é tolerável uma certa rebeldia juvenil, desde que, se manifeste apenas em calças rasgadas, cabelos despenteados e em uma ou outra resposta mais agreste. Tudo isso, ainda vá que não vá, mais do que isso, é que já não, nada de revoluções, nem de transformações, nem sequer de mudanças.
Consequentemente, aos jovens de hoje que querem um mundo distinto daquele onde cresceram, resta-lhes recolherem ao quarto, de nada lhes vale andarem zangados, o melhor mesmo é conformarem-se e fazerem como se diz num verso de uma antiga canção dos Oasis: “So I start a revolution in my bed”.
O segundo fator identificado pelos estudiosos como causa para haver tantos Hikikomori é a superproteção de crianças e jovens pelos seus pais. Com efeito, hoje em dia, a maioria dos petizes não pode ter a mais leve contrariedade ou arrelia, que imediatamente a mamã, o papá ou os dois juntos mais o avô e a avó, correm todos em socorro do menino.
A coisa chegou a um ponto risível, quando aqui há uns meses, os professores da Universidade Nova de Lisboa, e mais especificamente os da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, se viram obrigados a emitir um comunicado, para fazerem saber aos pais de alunos universitários e maiores de idade, que não mais responderiam às suas queixas e reclamações.
Com efeito, e ao contrário do que alguma vez tinha sucedido, havia inúmeras queixas e reclamações de pais relativamente a notas dos alunos, à falta de vagas para uma cadeira opcional e a muitos outros assuntos. Confrontado com essa inédita situação, o corpo docente decidiu pôr-lhe um fim e a todos informar que os alunos já tinham atingido a maioridade, e que assim sendo, se tinham algo a tratar com os docentes, eram os próprios que teriam de o fazer e não o papá ou a mamã. Aqui fica a notícia:
O terceiro fator, para além do conformismo e da superproteção, é a existência de um sistema educativo altamente rígido e rigoroso. Na verdade, no Japão estimula-se a competição desde a mais tenra idade.
Tudo começa logo nas creches, que devem preparar as crianças para entrarem nos melhores Jardins de Infância. Estes, por sua vez, devem treinar os alunos para os exames de admissão à escola primária, sendo que só os que obtém as melhores notas frequentarão as mais prestigiadas.
Depois, seguindo a mesma lógica, há também exames de admissão nos restantes ciclos de ensino. Uma vez chegado o momento de entrar para a universidade, são muitos os miúdos que, terminado o ensino secundário, passam um ano inteiro só a estudar, sem frequentar qualquer escola, para melhor se prepararem para os exames de acesso ao ensino superior.
Em resumo, todo o sistema educativo japonês se baseia numa regra simples: há vencidos e vencedores.
No já distante ano de 1996, preocupado com a alta competividade entre os alunos e com as consequências que daí poderiam advir, o Ministério da Educação do Japão decidiu que a pressão teria de ser menor. Vai daí reduziu os dias de aulas de seis para cinco por semana e retirou algumas disciplinas do currículo, substituindo-as por outras que desenvolvessem o pensamento crítico e a criatividade dos alunos.
Infelizmente, foram muitos os pais que a partir de então decidiram optar pelo ensino privado, onde a competição, o rigor e a exigência continuaram a ser exatamente as mesmas que antes existiam na escola pública.
O problema do Japão será muito mais denso do que o do ocidente, e porquê? Porque, claro está, a sua cultura foi abalada de um modo como não foi nenhuma outra.
E quem diz a sua cultura, diz os laços que formam uma comunidade.
Com efeito, a seguir à Segunda Guerra Mundial, do Japão tradicional pouco ou nada restava, razão pela qual, os valores e certezas que uniam toda uma nação desapareceram.
Aos nossos leitores que eventualmente queiram ser especialistas na cultura nipónica, muito para além de um vaso com um bonsai e de irem ao sushi, aconselhamos um filme do grande mestre Yasujiro Ozu que explica a origem disto tudo.
Em "Viagem a Tóquio", um casal de velhos vai à capital para visitar os seus filhos e netos. Contudo, quer uns, quer outros, têm os seus afazeres e pouca atenção lhes podem dar. O casal para lá anda sem saber o que fazer. No fundo, o que o filme nos revela é que a comunicação entre gerações já não é possível, a vida moderna não o permite. Todos gostam muito uns dos outros, mas desde que ninguém atrapalhe as vidas uns dos outros.
Em resumo, os valores comuns já não existem, cada um está isolado, palavra que, traduzida para japonês, é hikikomori.
Comentários
Enviar um comentário