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Descolarização? O que foste tu dizer, ó Ernesto!


Quem é o Ernesto e o que terá ele dito, é a questão que se impõe. Ernesto é um rapaz de uns sete anos, que após o primeiro dia de aulas, chega a casa e declara enfaticamente ao pai e à mãe o seguinte: “Não voltarei à escola porque na escola ensinam-me coisas que eu não sei”.


Dadas as circunstâncias, o pai, a mãe e o próprio Ernesto vão à escola reunir-se com o professor para resolver a situação. Trocam-se ideias, discute-se a necessidade da escolarização, fala-se disto e daquilo e no fim vão todos à sua vida, presumindo-se que, de algum modo, o Ernesto inevitavelmente há de aprender, a ler e a contar mesmo sem ir à escola.


O Ernesto de que aqui vos falamos é um personagem de um conto escrito em 1972 pela célebre autora francesa Marguerite Duras (1914-1996). O conto intitulava-se “Ah! Ernesto!”. Dez anos depois, o casal de cineastas Jean-Marie Straub e Danièle Huillet adaptaram o dito conto ao cinema e realizaram uma curta-metragem à qual deram o título “En rachâchant”.


O filme dura sensivelmente sete minutos, e está disponível on-line para quem o quiser ver, com legendas em português e tudo:


Qual é o significado do conto de Duras e do filme de Straub e Huillet é coisa que não sabemos dizer, todavia, sabemos que por volta dos anos 70 do século XX havia uma corrente de pensamento que fazia muito sucesso por terras de França, que consistia num projecto utópico de “descolarizar” a sociedade.


O maior representante desse movimento de “descolarização” da sociedade foi Ivan Illich (1926-2002), um imenso pensador, cuja obra mais famosa foi escrita em 1971, “Sociedade sem escolas”.



A ideia de Ivan Illich nada tem que ver com a propagação da ignorância ou com o ensino doméstico, o seu ponto é outro e até oposto a estes dois. Para Illitch o sistema educativo mais não é do que uma estrutura burocrática, hierarquizada e manipuladora, cuja principal função é o controlo das mentes, e que urge desmantelar.


Segundo Illitch, a escola tem como hábito instituído a negação da expressão individual, fazendo com que os alunos estejam sujeitos a currículos extensos e repetitivos, lecionados à pressa, e de um modo completamente superficial. Não há possibilidade de aprofundar verdadeiramente qualquer tema, nem de atender aos interesses específicos de cada aluno.

Por assim ser, a escola é inevitavelmente um local de desigualdades e conflitos, pois há de existir sempre quem se adapte melhor aos seus procedimentos e supostos ensinamentos, quem se adapte pior e quem não se adapte de todo. Em síntese, a escola estimula a competição e as consequentes rivalidades que daí surgirão.


Para Illitch, o facto de a escola ser obrigatória só agrava a situação, pois quem não consegue interessar-se pelos conteúdos curriculares arrasta-se durante anos sem nada aprender e, quando por fim, vai à procura de um trabalho, não possui qualquer habilidade ou saber que lhe seja útil.

Mas se porventura abandonar o ensino antes de concluír a escolaridade obrigatória, ainda terá maiores problemas, pois toda a sociedade está concebida de modo a que sejam exigidos diplomas, certificados e certificações escolares para se aceder a um emprego minimamente qualificado.

A ideia de Ivan Illitch assenta numa utopia, a de que crianças, jovens e adultos aprendem espontaneamente todos uns com os outros, e que se houver uma rede de bibliotecas, museus, cinemas, teatros, laboratórios e oficinas que todos possam frequentar livremente, a aprendizagem se fará e o conhecimento avançará sem qualquer necessidade de escolas.


Illitch era um enorme optimista e acreditava na disponibilidade de todos para autonomamente aprenderem e ensinarem. Viver, ver, ler, ouvir, pintar, escrever, passear e conversar são as ferramentas que fazem com que o conhecimento avance e o saber se expanda, manuais, professores, testes, exames e currículos só atrapalham e aprisionam.

Citemo-lo a este propósito: “O sistema escolar repousa sobre uma grande ilusão, a de que a maioria do que se aprende é resultado do ensino. O ensino, é verdade, pode contribuir para determinadas espécies de aprendizagem sob certas circunstâncias. Mas a maioria das pessoas adquire a maior parte de seus conhecimentos fora da escola.”

A utopia educativa de Ivan Illitch baseia-se na crença de que a sã convivência é a base sob a qual a vida avança, o conhecimento se desenvolve e o progresso se amplia. Todavia, como quem nos lê já há de ter calculado, as suas ideias foram muitos discutidas e debatidas nas academias e nos jornais, mas nunca foram globalmente levadas à prática. Como é fácil de constatar, as escolas continuam a existir por todo o lado.


Mas dito isto, há um pormenor interessante, Ivan Illicht não despertou igual atenção em todos os países, por exemplo, em Portugal poucos lhe ligaram e é praticamente um desconhecido, contudo, em França, é ainda ao dia de hoje uma figura bastante conhecida. É com alguma frequência que televisões, rádios, revistas e jornais lhe dedicam reportagens.


Abaixo fica um link de um recente apontamento de reportagem da estação radiofónica France Culture, no qual em pouco mais de três minutos Illitch explica que a raiz do erro de tudo isto, foi quando se transformou a palavra educação e a palavra escolarização em sinónimos, coisa que de facto não são:



No início deste texto falámos do conto de Marguerite Duras “Ah! Ernesto!”, que para além de como já referimos ter sido adaptado ao cinema, foi também transformado num livro infantil, que obteve um grande sucesso comercial em França, havendo diversas edições com diferentes ilustradores e inclusivamente traduções em alemão e em inglês.




Um conto infantil no qual o personagem principal diz à mãe e ao pai “Não voltarei à escola porque na escola ensinam-me coisas que eu não sei” será educativo e pedagógico? Será ajuizado por parte dos franceses propagarem tais ideias nas suas crianças? Estarão doidos?

Na verdade essas são questões às quais não sabemos responder, o que sabemos é que em França o nível de escolarização é imenso, mas a avaliar pelo atual estado político do país, dir-se-ia que a educação não parece ser assim tanta.

Uma vez aqui chegados só nos resta terminar, mas antes disso, queremos recordar duas francesas que de algum modo encarnaram o espírito de um certo modo de viver francês: Anouk Aimée e Françoise Hardy. Ambas faleceram há pouco e ambas representaram o carácter contraditório de França, simultaneamente doce e melancólico.

Anouk Aimée será para sempre recordada pelo seu desempenho no filme “Un homme et une femme”, a história de um amor fulgurante nascido de encontros e conversas à porta da escola onde cada um ia esperar os respetivos filhos.
A história não teve um final feliz, como nos filmes de Hollywood, mas como afirmou o seu realizador, Claude Lelouch, o que na verdade queria era contar “une histoire d’amour comme il y en a dans la vie et non comme il y en a au cinéma.”

Em resumo, a utopia de amor dos dois foi tal e qual como a utopia educativa de Ivan Illicht, ou seja, suscitou conversas, troca de ideias, debates, discussões, encontros e desencontros, e mesmo não chegando a efectivar-se, ainda assim foi intensa e bela e por isso feliz, mesmo que plena de melancolia.



Françoise Hardy também não será esquecida, sobretudo por um dia ter cantado “Tous les garçons et les files”. A história da canção é simples, uma rapariga anda pelas ruas de Paris e verifica que todos os outros da sua idade vão acompanhados, sendo que apenas ela vai só.
Mais uma vez, a analogia com Ivan Illitch tem algum sentido, com efeito, também o pensador defendeu ideias que ninguém na realidade considerava que fossem exequíveis, e nesse sentido estava só. No entanto, mesmo que a sua utopia não se tivesse concretizado, ainda assim, a melodia dos seus ideais educativos a muitos encantou, tal e qual como o fez a canção de Françoise Hardy:

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