Como saberá quem habitualmente nos lê, nós somos doentes crónicos, pois há muito que nos foi diagnosticado um síndrome de contradição. Se toda a gente, tal e qual como as ovelhas de um rebanho, vai para um lado, nós, só para contrariar, seguimos imediatamente na direção oposta.
Em certo sentido, podíamos ter como lema uns célebres versos de José Régio que rezam assim:
“Vem por aqui”- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
…Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!
O nosso estado de saúde é tão grave, que não raras vezes dizemos algo, para logo em seguida, só para nos contrariarmos a nós próprios, dizermos imediatamente qualquer coisa de contraditório com o que acabámos de dizer.
Enfim, o síndrome de contradição é uma condição difícil, da qual sofremos e que com ela muito penamos, mas que ainda assim, lá a vamos tentando levar com a dignidade possível, ou seja, com a única que nos resta.
Vem isto a propósito das festas de Santo António, durante anos gostávamos delas, mas neste momento não. Quanto mais populares elas se tornam e maiores multidões atraem, tanto mais nós embirramos e nos pomos do contra.
Houve um tempo em que a noite de Santo António era a mais longa do ano, no entanto, agora, surge-nos como uma igual a qualquer outra, só que com mais barulho, e em que por causa disso, se dorme pior. O que dantes tinha graça, é nos dias de hoje uma enorme maçada.
Talvez haja quem diga que envelhecemos e que a cidade também mudou. Nada disso é mentira, pois onde antigamente víamos nas festas de Santo António gente que conhecíamos desde pequenos, observamos atualmente uma multidão de desconhecidos que como rebanhos desgovernados se movem interruptamente de um lado para o outro pelas ruas sem irem propriamente a lugar algum.
Nos tempos que correm, nem sequer nos atrevemos a misturar-nos com essas imensas multidões, pois temos a vaga sensação que estamos rodeados de andróides que se movem automaticamente sem sentido nenhum, nem obedecendo a nenhuma vontade própria.
É como se alguém algures tivesse escrito num teclado de computador “hoje a noite é de diversão”, depois carregasse no botão do “enter” e instantaneamente milhares passassem a agir em conformidade numa sequência sem nexo: abrir programa, divertir, sardinha, beber, marchar, guardar foto, partilhar, virar à esquerda, copiar, guardar foto, partilhar, subir, divertir, marchar, sardinha, beber, virar à direita, guardar foto, em frente, partilhar, sardinha, copiar, beber, marchar, divertir, descer, sardinha, não guardar, terminar programa, encerrar.
Certamente que esta nossa negra visão das festas de Santo António não corresponderá à realidade, pois terá havido quem com vontade e espontaneamente se divertiu, comeu e bailou, porém, como hoje o sol brilha no céu e o dia está luminoso, preferimos ver o lado escuro das coisas.
Como já repararam, estamos acometidos por uma intensa crise de síndrome de contradição, e por essa razão, afirmamos com uma grande convicção, que dantes é que era bom, que agora é tudo uma treta.
Viajemos ao passado. Foi no dia 5 de junho de 1932 que o jornal Notícias Ilustrado publicou uma foto com o primeiro sorriso de Salazar, anunciando nessa mesma data e edição, o início de um concurso de marchas populares de Lisboa.
Talvez quem nos lê desconheça, mas as marchas populares foram uma tradição inventada pelo Estado Novo. A notícia que à data dava conta disso, e que transcrevemos com a ortografia original, dizia assim: “O povo, com todo o pitoresco da sua ingenuidade e com o calor da sua alegria expontânea, vai festejar a noite de Santo António; prepara os seus arcos alegóricos, marca as suas dansas e apresta-se para se apresentar no grande concurso."
Segundo um historiador atual que se dedicou a estudar estas coisas, “As marchas populares constituem um exemplo singular de folclorização, ambicionam instalar uma tradição lisboeta, mas paradoxalmente recorrem, num momento inicial, a elementos pretensamente folclóricos de proveniência exógena (rural), e só depois reforçam os traços directamente associados à cidade".
Coube a um realizador de cinema de então, Leitão de Barros, a concepção e organização dessa nova tradição popular. A ideologia subjacente às festas e às marchas era a de que cada bairro de Lisboa, afinal mais não seria que uma vila ou uma aldeia, daí nasceu o chamado bairrismo alfacinha.
O bairro na cidade seria portanto um local equivalente a muitos outros locais que havia por todo o país rural. Alcântara, Alfama, a Graça, a Madragoa, a Mouraria e outros que tais, seriam iguais às vilas e aldeias de Portugal, e assim sendo, também teriam as suas típicas tradições, como por exemplo, os ranchos, as danças, as vestes e os petiscos.
O regime do Estado Novo não queria cá cosmopolitismos nem urbanidades, e muito menos gente que vivesse modernas vidas citadinas, queria sim pessoas tradicionais, humildes e simples, que habitassem a cidade de modo idêntico ao que habitavam o campo.
Consequentemente, vestindo trajes típicos da região do Minho, o bairro de Campo de Ourique venceu a primeira edição das Marchas Populares. Para além do prémio principal, havia também distinções para a "Alegria" e para o "Pitoresco", características que, para além da ruralidade, o sistema político igualmente valorizava e divulgava. Em síntese, o povo queria-se festivo e sorridente.
Em pouco tempo, Lisboa apropriou-se das festas e das marchas e começou a promovê-las como símbolo de uma identidade local que misturava o rural com um poucochinho de urbano.
O cinema nacional das décadas de trinta e quarenta ajudou a compor a história. Primeiro com “A Canção de Lisboa”, de Cotinelli Telmo (1933) e, mais tarde com "O Pátio das Cantigas”, de Francisco Ribeiro (1941).
Aqui chegados, e plenamente imbuídos do nosso síndrome de contradição, podemos concluir sem margens para dúvidas que a tradição, o pitoresco e a alegria das festas e marchas de Santo António é uma farsa, uma invenção de um regime ditatorial.
Já agora, fique-se também a saber que os casamentos de Santo António foram uma iniciativa impulsionada pelo jornal Diário Popular, que teve o seu início em 1958. Desde os véus das noivas, aos sapatos dos noivos, passando pelas mobílias e eletrodomésticos, tudo era patrocinado por estabelecimentos e marcas comerciais, que viram nesse evento uma excelente oportunidade para publicitarem os seus produtos.
Na edição abaixo do Diário Popular podemos constatar que a Parreirinha do Rato ofereceu aos noivos seis jantares, a Livraria Torrens contribui com onze livros técnicos, a Cosex Lda. deu sessenta lindas gaiolas e que o cabeleireiro Fernando Costa doou duas “mises”.
Para levarmos o nosso síndrome de contradição mais adiante, ficam todos a saber que o Santo António foi canonizado pelo papa Gregório IX a 30 de Maio de 1232, como Santo António de Pádua, cidade do norte de Itália onde está sepultado e onde faleceu a 13 de junho de 1231.
Sabe-se que o santo nasceu em Lisboa e que foi educado no seio de uma família rica e nobre para ser um ilustre cavaleiro. Como com certeza também sofria do síndrome de contradição, preferiu antes a pobreza, a introspeção e a simplicidade, tendo por isso ingressado na então recém criada Ordem Franciscana.
Deixa de lado a riqueza e o conforto, mas também o seu nome de baptismo, que era Fernando. Contrariando toda a sua família, adota o nome de António em homenagem ao eremita Santo Antão, e dedica toda a sua vida a pregar as escrituras.
Reza a lenda que estando um dia Santo António a pregar aos habitantes de Rimini em Itália, estes, fartos de o escutar, viraram-lhe as costas. As gentes de Rimini estavam saturadas que o santo as andasse sempre a contrariar com as suas pregações.
Sem desanimar, Santo António vai até à beira da água, onde o rio se encontra com o mar, e chama os peixes para o escutarem, já que os homens não o querem ouvir. Dá-se então o milagre: multidões de peixes aproximam-se com a cabeça fora de água em atitude de escuta. Os habitantes de Rimini ficaram tão impressionados que imediatamente se converteram.
Foi em 13 de junho de 1654, faz precisamente hoje 370 anos, que em São Luís do Maranhão no Brasil, o Padre António Vieira num sermão disse assim: “…quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão.”
Numa outra passagem do sermão de Santo António aos peixes de Padre António Vieira ouviu-se o seguinte: “A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. […] Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”
Mas mais à frente, acrescenta também: “Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar? Vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer."
Não queremos ser chatos, mas a propósito desta última passagem do sermão aos peixes de Padre António Vieira, lembrámo-nos de toda a agitação sem rumo nem sentido das atuais noites das festas de Santo António, nas quais toda a gente anda para cima e para baixo como sardinhas em lata.
“Do androids dream of electric sheep” é um romance de ficção científica de Philip K. Dick. Nele conta-se a história de andróides que ganharam vontade própria e começaram a questionar-se sobre a sua razão de ser e porque agem como agem.
Antes todos agiam automaticamente, moviam-se sem se perguntarem porque o faziam, iam e vinham sem se questionarem, obedecendo cegamente ao programa que lhes foi instalado, no entanto, por um erro de cálculo começaram a pensar.
O livro deu origem ao filme “Blade Runner”. O personagem principal da narrativa é Rick Deckard, cuja função é eliminar andróides que se puseram a pensar e a ter vontade própria. Se pensam e agem por seu mote, é porque estão avariados. Rick leva a sua missão a sério, todavia, apaixona-se por uma andróide, Rachel, que lhe parece mais humana que todos os humanos que ele conhece.
Rachel pensa, não se limita a ir em frente como as ovelhas de um rebanho, talvez por isso, no filme, Rick foge com Rachel para um outro lugar.
Aqui fica um tema da banda sonora de “Blade Runner”, não é uma marcha popular, mas ouve-se muito bem:
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