Neste décimo oitavo capítulo da nossa série de verão “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”, e apesar do título, não vamos falar-vos de Paris, a chamada cidade luz. Vamos sim falar-vos de sombras e escuridão. Que isso desde já fique claro.
Paris é conhecida como a cidade luz devido a três razões, a primeira tem a ver com uma decisão de Louis XIV, o Rei Sol, que em 1667 ordenou que se instalassem lanternas nas ruas principais e que pelas noites as janelas das casas estivessem iluminadas com velas e lâmpadas a óleo. Era uma medida destinada a reduzir a criminalidade.
Paris ficou também associada à luz por ser o berço e pátria do Iluminismo, um importante movimento filosófico, cultural e científico nascido no século XVIII. Paris tornou-se por esse facto um farol do conhecimento e da criatividade, irradiando ideias inovadoras que iluminaram toda a Europa e o resto do mundo.
A terceira razão para Paris ser a cidade luz, é porque foi das primeiras a adotar a luz elétrica para iluminar os espaços públicos. Logo no início do século XIX, ruas, avenidas e monumentos brilhavam durante a noite.
A eletricidade foi também rapidamente adotada para iluminar teatros, cafés, salões de baile e as vitrines de muitas lojas, tendo assim dado a origem à “La bohème”, aos “Les Grands Magasins” e à “Belle époque” e, por consequência, ao mito de Paris.
Em Paris, no verão de 2022, no colorido Centre Pompidou, esteve patente uma exposição toda ela feita de negrume e escuridão, o seu título era “Le reste est ombre”.
O edifício do Centre Pompidou é alegre, com formas divertidas e pleno de cores vivas. O seu interior é banhado pela luz natural que entra pelas enormes janelas envidraçadas. Acedendo-se ao seu topo, tem-se a mais desafogada vista de Paris, toda ela inteira sob a luz do sol. É também lá no alto, que se realizam desde há muitos anos as melhores e mais importantes exposições de arte moderna e contemporânea do mundo, vale a pena ir ver.
No Centre Pompidou há ainda um museu de cuja coleção fazem parte muitas obras de arte icónicas, daquelas que todos conhecem. Há uma imensa biblioteca e auditórios onde há ciclos de cinema dedicados aos grandes cineastas de sempre, e também concertos, dança e teatro.
Tem igualmente cafés e restaurantes, e na praça que fica em frente, há continuamente espetáculos de rua e imensa gente que se senta ou que passa e segue o seu caminho.
Dizíamos nós, que no verão de 2022 esteve patente no Centre Pompidou a exposição “Le reste est ombre”, mas não nas luminosas salas lá do alto, com as suas vistas desafogadas, e sim numa sala cá de baixo, escura e encerrada em si mesma, sem vista para lado nenhum. A dita exposição era dedicada a três artistas portugueses, ao cineasta Pedro Costa, ao fotógrafo Paulo Nozolino e ao escultor Rui Chafes.
O facto de a exposição ter sido num lugar sombrio e fechado, não significa que estivéssemos perante uma qualquer desconsideração feita aos nossos compatriotas artistas, nada disso, foi antes uma escolha. Pretendeu-se desse modo criar uma espécie de ilha de escuridão, uma entidade isolada de tudo o resto.
Abaixo uma imagem da exposição “Le reste est ombre”, onde no chão se vislumbra uma escultura de Rui Chafes e na parede uma fotografia de Paulo Nozolino.
Quando entravámos na exposição “Le reste est ombre”, os nossos olhos estranhavam e imediatamente tudo nos aparecia como desfocado. Essa sensação mantinha-se ao longo de todo o percurso, pois os constantes contrastes entre luz e sombra, não permitiam que os nossos olhos se habituassem ao espaço. No entanto, e paradoxalmente, tudo tinha uma fantástica nitidez e parecia como que envolto num halo.
Era paradoxal, ou seja, existia uma incerteza sobre o que estávamos a ver e, ao mesmo tempo, desprendia-se uma absoluta nitidez do que víamos. Quando estamos perante algo que simultaneamente nos provoca um estranho assombro e contraditoriamente nos é completamente familiar, estamos diante daquilo que Sigmund Freud designou como Das Unheimliche.
A palavra "unheimlich" em alemão é traduzível por "inconfortável", "inquietante" ou "estranho". É o oposto de "heimlich," que significa "familiar" ou "confortável." Por consequência, unheimlich poderia ser em português qualquer coisa como "uma inquietante estranheza estranhamente familiar”. Em síntese, é como se de repente um estranho nos entrasse pela casa adentro e nós já há muito o aguardássemos.
Das Unheimliche é o que o une Pedro Costa, Rui Chafes e Paulo Nozolino, ou seja, as suas obras mergulham num mundo noturno que fica longe da plena luz, seja ela eléctrica ou a do sol. Um mundo que é também longínquo da total racionalidade que o Iluminismo pensava ser possível de atingir.
É um mundo de sonhos e pesadelos, onírico, onde quase nada se consegue dizer com palavras, o coração das trevas, um local habitado por fadas, duendes, lobos maus, bruxas, castelos assombrados, terríveis monstros e heróis, como aqueles das histórias infantis.
Num filme de 1989 de Pedro Costa, “O Sangue”, os personagens deambulam por locais incertos que podiam ser num qualquer sítio deste mundo. Reconhecemos alguns como sendo-nos familiares, como por exemplo, o Aquário Vasco da Gama, contudo, são ao mesmo tempos lugares escuros que em tudo nos parecem estranhos e sombrios, quase tenebrosos.
Reconhecemos também familiares bairros periféricos e campos dos arrabaldes da cidade, todavia, em “O Sangue” esses mesmo lugares em nada se assemelham aquando neles passamos ou passeamos banhados pela diurna luz do sol, aqui fica o trailer:
Não sabermos onde estamos quando estamos num local que conhecemos perfeitamente, é admitir que todos os lugares albergam em si sombras, sonhos, pesadelos, lendas, histórias e mitos, e que também em todos eles há fadas, duendes, lobos maus, bruxas, castelos assombrados, terríveis monstros e heróis escondidos.
Tal e qual como na nossa mente, nesses lugares há um jogo de luzes e sombras, passagens entre o consciente e o subconsciente, pontos em que nos perguntamos onde estamos.
Abaixo uma escultura de Rui Chafes intitulada “Onde estou?”
Esses pontos situados algures entre a luz e a sombra, são percursos diferentes dos comuns e habituais. Como dizia Dante no início de “A Divina Comédia”, no meio do caminho da nossa vida, encontrei-me numa selva obscura, cuja via não era direta (Nel mezzo del cammin di nostra vita, mi ritrovai per una selva oscura, che la diritta via era smarrita).
Em resumo, esses pontos entre a luz e a sombra são aqueles em que o que nos era familiar subitamente se nos tornou estranho, em que a luz que nos alumiava se fez sombra quando não escuridão, e sabemos que estamos a atravessar um lugar que desconhecemos onde nos vai levar, donde virá a luz, e quem lá vamos ter por diante.
Abaixo uma imagem de uma escultura de Rui Chave, “Travessia”.
Voltemos ao filme de Pedro Costa, “O Sangue”. Nele não raras vezes os personagens fogem e correm. No fundo, é como se quisessem fugir das zonas escuras, ao negro que se confunde com o branco, à luz que se mistura com a sombra e ao familiar que é ao mesmo tempo estranho. Essas zonas incertas são lugares que os atormentam, sítios indefinidos que estão dentro de si, no seu subconsciente, mas que estão igualmente em tudo o que os rodeia, por isso correm e fogem.
No fotograma abaixo de “O Sangue”, a personagem feminina, Clara, corre ao encontro de Vicente, o personagem principal. Os seus nomes não são fruto do acaso, pois é Clara quem traz luz a Vicente, cujo nome evoca o santo do mesmo nome, padroeiro de Lisboa, cujo corpo, segundo reza a lenda, deu à costa da cidade acompanhado de escuros corvos depois de ter sido lançado ao tenebroso mar.
Não por acaso, há uma conhecida fotografia de Paulo Nozolino, que também colaborou em “O Sangue”, em que igualmente se corre e foge. Não por acaso, o lugar da fotografia também podia ser qualquer um, desde que fosse um sítio em que alguém, sabe-se lá quem, quisesse correr e fugir de si próprio e do que o rodeia.
Quem corre e foge por vezes contorce-se por fora, e mais ainda por dentro. Também isso podemos ver em “O Sangue”. Clara, a luz, e Vicente, a escuridão, são amantes. Porém, o modo como se encontram, beijam e abraçam é sempre um tanto ou quanto violento, como se quisessem com os seus corpos manifestar um contraste entre a luz e a sombra, entre o que se diz e o que fica em silêncio. De algum modo, quando se encontram os planos misturam-se e confundem-se o primeiro, que é nítido e consciente, com o que está lá no fundo, que é desfocado e vegeta no subconsciente. Em resumo, o amarem-se é uma forma de luta.
Aqui fica uma imagem, que demonstra bem que para alguns, a luta continua, antes, agora e sempre.
Se quisermos reparar bem na imagem acima de “O Sangue”, não será difícil nela vermos afinidades com uma escultura de Rui Chafes na imagem abaixo, que se intitula “I am like you”. Ou seja, sou como tu, também me contorço contigo por dentro e por fora, no meu subconsciente, e com tudo o que me rodeia.
Se hoje em dia alguém quiser ver a escultura de Rui Chafes que em português se chama “Sou como tu”, mais não tem que fazer do que ir até à Avenida da Liberdade em Lisboa e olhá-la, é aí que há longos anos está instalada.
Como vos tínhamos dito no início deste texto, não íamos falar de Paris. Assim sendo, terminamos agora de falar acerca daquilo que não quisemos falar.
A título didático, um vídeo em que Pedro Costa nos explica quem somos, luzes e sombras.
Também a título didático, mas igualmente informativo, aqui fica o “site” oficial de Rui Chafes, para quem quiser saber onde, em Portugal e no mundo, pode ver as suas esculturas:
Por fim, uma fotografia de Paulo Nozolino, no caso um tríptico, só porque sim.
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o décimo nono capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”.
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