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Só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta

 


A frase que dá título a este texto, “Só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta”, é do escritor e pintor surrealista Mário Cesariny (1923-2006). Cesariny cresceu no coração de Lisboa, num velho prédio no Poço do Borratém, ali junto ao Martim Moniz, numa rua onde dantes havia umas tascas, que todos os dias serviam bacalhau assado e iscas fritas.

Desde cedo desprezou os manuais escolares e os professores, dava-lhe mais jeito ir para os cafés da Praça do Chile, que nesse tempo eram muito frequentados pelos cábulas da antiga Escola António Arroio e do Liceu Camões. A poesia veio depois.

Na primavera de 1947 Cesariny descobriu o surrealismo, partindo de imediato para Paris com intuito de ir conhecer alguns daqueles, que uns vinte e tal anos antes, mais concretamente em 1924, tinham fundado esse movimento artístico.

Cesariny foi o maior dos surrealistas portugueses, mas não é apenas nele que se centra este nosso texto, mas sim também no centenário do surrealismo.



O surrealismo foi fundado em Paris em 1924 por um grupo de intelectuais, artistas e escritores. Redigiram e fizeram publicar nos jornais um manifesto a explicitar as suas razões, dizendo-se influenciados por teorias psicanalíticas e reflexões marxistas. A coisa era séria e o grupo tinha regras, procedimentos, reuniões, actas, documentos e inclusivamente um presidente, que se chamava André Breton.

Desse grupo fez parte gente tão importante como os que se veem na fotografia abaixo, da esquerda para a direita: Tristan Tzara, Paul Éluard, André Breton, Hans Arp, Salvador Dali, Yves Tanguy, Max Ernst, René Crevel e Man Ray.



Como já vimos, o surrealismo chegou a Portugal mais de duas décadas depois de ter nascido em Paris, e claro está, que por cá, a coisa não teve tantas regras, reuniões e actas.
Um grupo de maduros, nos quais se incluía o Mário Cesariny encontrou-se para beber uns copos no café “A Cubana”, que se situava na Avenida da República, trocaram umas ideias, largaram umas larachas e umas quantas piadas, filosofaram um tanto e pronto, assim se fundou o Grupo Surrealista de Lisboa.

O mote do grupo era “escrever, pintar, desenhar colectivamente, rompendo com o individualismo progressista-burguês”. No entanto e surpreendentemente, os vários indivíduos que constituíam o Grupo Surrealista de Lisboa não abandonaram o individualismo e começaram coletivamente às turras uns com os outros, discutiram, separaram-se, voltaram a juntar-se e, feitas as contas, lá conseguiram organizar uma exposição dois anos depois, a primeira e única.

A dita exposição foi inaugurada a 19 de janeiro de 1949, no último andar de um prédio da Travessa da Trindade. Coincidentemente a esse evento, Mário Cesariny funda o Anti-Grupo Surrealista Português, que se opôs ferozmente ao Grupo Surrealista de Lisboa, que como se recordam, também tinha sido fundado pelo mesmo Cesariny.

A primeira exposição do Anti-Grupo Surrealista Português teve lugar na sala de projeções da Pathé Baby, junto à Sé de Lisboa. As exposições dos dois grupos provocaram nesse ano um enorme escândalo, e as pessoas comuns, ou seja todas aquelas que não se embebedavam, não estavam apaixonadas nem faziam poesia, diziam que os surrealistas eram malucos, uns autênticos doidos varridos. A isso Cesariny respondia que “só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta.”

Abaixo uma fotografia de Fernando Lemos, o maior dos fotógrafos surrealistas de Portugal.



Dissessem as pessoas comuns o que dissessem, o facto é que ambas as exposições foram um marco e influenciaram sucessivas gerações de artistas desde esse tempo até aos dias de hoje. Ainda em vida, mas já para o fim, Cesariny começou a receber imensas homenagens e condecorações oficiais, tendo-lhe até sido atribuída pelo Presidente da República a Grã Cruz da Ordem da Liberdade.

Aceitou prémios e condecorações, mas como compete a um bom surrealista, arrependeu-se. Numa entrevista dada ao Expresso, já perto do fim de vida, Cesariny teve o desplante de se dizer farto e irritado com a tanta atenção dada à sua obra.

Sofria de achaques e tinha problemas de saúde, no entanto, isso em nada diminuía a sua vontade de ser provocatório, tanto assim foi, que um dia, falando desse assunto disse assim: “Mas também deve ser muito chato ser um daqueles velhos cheios de saúde, não é?".

Deixemos Cesariny, mas não sem antes lermos um dos seus mais belos poemas:

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco



Há outros surrealistas portugueses, para além do Cesariny, entre eles conta-se o também poeta e artista Alexandre O’Neill (1924-1986), que estava nos copos no café “A Cubana” à data da fundação do Grupo Surrealista de Lisboa.

O O’Neill nunca chegou a ir à Paris, como o Cesariny foi, ficou-se pela vidinha de Lisboa. Um dos seus poemas foi certamente inspirado pelas tertúlias literárias e artísticas que havia por alturas de meados do século XX na capital. A avaliar pela sua poesia, nesses encontros a rapaziada falava de tudo, e não só de arte e literatura. Atente-se no poema, no seu surrealismo:

Que vergonha, rapazes! Nós praqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist’? Viii!»)
Que miséria meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado, com certeza…
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: – Ó Roque, com franqueza:
Você nunca quis ver outros países?
– Bem queria Sr. O’ Neill! E…as varizes?
 
Os surrealistas portugueses, mesmo sempre desavindos e nunca conseguindo estruturar-se como um verdadeiro grupo ou formar um movimento, ainda assim produziram vasta obra. Há até um museu dedicado ao surrealismo nacional. Fica em Famalicão.

O Museu da Fundação Cupertino de Miranda é uma instituição que tem por missão a construção do conhecimento sobre a Arte Surrealista portuguesa, integrando múltiplas vozes e olhares, para estimular o pensamento crítico e a criatividade.

A fundação produz inclusivamente vídeos didácticos para quem queira saber mais sobre os surrealistas nacionais. Aqui fica um, cujo título é “O que é o surrealismo?”



Foi ontem em Famalicão que foi inaugurada a exposição “Um Salto no Vazio”, que pretende assinalar o centenário do surrealismo. Exposição que daqui a uns tempos passará também por Lisboa e por Évora.

Ao olharmos atentamente para o cartaz da exposição percebemos imediatamente que ao contrário do que diziam as pessoas comuns, os surrealistas não eram malucos, nem doidos varridos, a nós parece-nos que sabiam muito bem ao que iam, é só olhar. Em síntese, como dizia Cesariny, “só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta”.

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