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De Arroios a Alvalade, uma visita transdisciplinar através de histórias que vão desde as ciências às artes

 


Imaginemos que queremos fazer uma visita de estudo que misture vários saberes, ciência, arte, literatura, história, geometria e outras coisas mais. Imaginemos ainda que não queremos ir muito longe, nem andar por lugares que distem bastante uns dos outros, muito pelo contrário, queremos antes sítios próximos. É a esse exercício de imaginação, que agora nos vamos dedicar.

Há sítios em Lisboa que toda a gente deseja visitar, como por exemplo, a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos ou o Castelo de São Jorge. Também não falta quem queira descer à Baixa ou subir ao Bairro Alto. Os que querem deambular por lugares típicos e tradicionais como Alfama, a Mouraria ou a Bica são igualmente bastantes. E há ainda os que visitam museu conhecidos, como o da Gulbenkian, o de Arte Antiga ou o CCB. Nós hoje não vamos fazer nada disso.

O que nós hoje propomos é um roteiro diferente, ou seja, irmos por Lisboa em visita de estudo a sítios aos quais os turistas nada ligam, e a que poucos habitantes locais dão o devido valor, mas que nos são próximos. Traçámos um percurso, que é o de uma certa Lisboa moderna, que se inicia ali pelos anos 30 do século XX e se prolonga até à década de 70. 

Podíamos ter ido pela cidade inteira, mas preferimos não nos dispersarmos e centrarmo-nos unicamente numa certa zona, pois desse modo, tudo o que há para ver está próximo, basta que caminhemos um pouco.

Assim sendo, comecemos então pelo Mercado de Arroios, que foi o percursor de todos os mercados modernos do nosso país. Tem uma organização concêntrica em sintonia com o desenho urbano e o edificado que o circundam. Foi projectado pelo arquitecto Luiz Benavente e em tempos foi considerado o melhor de Portugal, pois possuía condições que em mais nenhum lado existiam.

Observe-se a foto aérea abaixo do mercado, à data da sua inauguração, em 1942. É muito provável que os então habitantes do bairro, tenham pensado que bem no centro do quarteirão, tinha subitamente aterrado um OVNI.



Do que não há dúvida, é que há muito a aprender com a história do Mercado de Arroios, seja relativamente à complexa geometria da sua arquitetura, seja no que concerne às condições sanitárias e às novas técnicas de comércio que ali se estrearam, seja também no que ele simbolizava para as gentes comuns de há décadas, a saber, um primeiro arrojo de modernidade e uma audaz ruptura com o passado.

É certamente um edifício excelente para se perceber que não há mal nenhum em ser-se audacioso, muito pelo contrário, pois o extremo conformismo e o insistir-se em fazer-se como sempre se fez, são das principais causas de estarmos continuamente “atrasados”, quando comparados com os países mais desenvolvidos. 

Em resumo, é um bom sítio para se educar para a cidadania, para se pensar sobre o consumo, para se falar de alimentação, para se vislumbrar em concreto conceitos geométricos, para se conhecer a história local e também, e porque não, para se desenvolver a criatividade artística, a sensibilidade estética e o pensamento crítico. 

Aqui fica mais uma fotografia do Mercado de Arroios, desta vez do seu interior.



Não muito longe do mercado, a cerca de cinco minutos a pé, fica a Alameda Dom Afonso Henriques. Se nela estivéssemos numa visita de estudo, tínhamos tantos temas dos quais falar, que até teríamos dificuldade em começar. 
Já que teríamos de iniciar a conversa por algum lado, talvez a iniciássemos pela Fonte Luminosa. A esse propósito, se quiséssemos falar de mitologia e de literatura, centraríamos a conversa nas diversas figuras alegóricas que aí existem, ou seja, no tritão montado num cavalo marinho, nas treze nereides e nas quatro tágides. 

Talvez nesse ponto desse para se trocar umas ideias sobre Camões e os Lusíadas, pois afinal de contas, foram as tágides que inspiraram o homem. Mas com nereides, tritões e cavalos marinhos, era certo que se poderia falar abundantemente de oceanos, de mares e de água, fosse a conversa desenvolvida num sentido literário e mitológico, ou num puramente científico. Em boa verdade, poderia ser simultaneamente desenvolvida em ambos os sentidos, em estilo transdisciplinar.


Desde a Fonte Luminosa, até ao centro da Alameda, distam apenas uns quantos passos. Nesse breve percurso, avistamos lá ao alto o Instituto Superior Técnico. Jorge Calado foi aí professor durante décadas, e sendo um eminente e muito competente docente de ciências, mais concretamente de química, não foi por isso que deixou de discorrer longamente nas suas aulas sobre arte. 

São muitos os seus escritos em que cruza arte e ciência. Destaque-se um, “Haja Luz”. Nesse livro Calado conta-nos uma história em que a química se entrelaça com as outras ciências, mas sobretudo com a literatura, a música, as artes visuais, o cinema e a filosofia.
O químico Humphry Davy aparece-nos ao lado do poeta Samuel T. Coleridge, a pintura de René Magritte é invocada a propósito de Louis Pasteur, a atriz Marilyn Monroe é associada ao carbono, o escritor Jules Verne e o músico Jacques Offenbach celebram o oxigénio, e o fotógrafo Sebastião Salgado retrata a sufocante alquimia do enxofre. E tudo se inicia com o músico Joseph Haydn, e a sua oratória, A Criação.

Neste livro Jorge Calado é transdisciplinar, mostrando-nos claramente que entre as artes e as ciências há afinidades sem fim. Há outras obras suas em que também o faz, mas “Haja Luz” parece-nos ser aquele em que melhor nos explica que a ciência é útil, divertida, perigosa, bonita, estimulante, frustrante, e indispensável, tal e qual como o é a arte. É um escrito inspirador que ilumina o nosso caminho.



Ainda sem sairmos do centro da Alameda Dom Afonso Henriques, temos num dos seus lados, o antigo Cinema Império. Hoje em dia o edifício é usado como templo religioso, mas tal não é relevante para o que nos importa, pois o que há a destacar, é que ele foi projectado pelo arquitecto Cassiano Branco. 

O nome de Cassiano Branco não é suficientemente conhecido, no entanto, marcou decisivamente a paisagem de Lisboa e não só. Foi o autor de dezenas de edifícios de habitação por toda a capital, assim como do extinto Cinema Éden na Praça dos Restauradores, da Junta Nacional do Vinho ali para os lados do Marquês de Pombal, bem como o da Cervejaria Portugália à Almirante Reis. 

No resto do país foi responsável por obras tão emblemáticas como o Portugal dos Pequenitos em Coimbra, o Coliseu do Porto e o Grande Hotel do Luso. Abaixo uma imagem do Cinema Império nos seus tempos áureos.



É difícil haver um único português, que nunca se tenha deparado com um edifício desenhado por Cassiano Branco, mas apesar disso, não serão assim tantos os que conhecem bem o seu nome ou quem ele foi. 
Estar-se na Alameda em visita de estudo a olhar para o antigo Cinema Império e a falar-se de Cassiano, é um modo de reparar a injustiça histórica que é, poucos saberem quem foi o homem que desenhou os espaços que acolheram grande parte das fantasias de todos.
Acolheram-nas na infância quando fomos de visita ao Portugal dos Pequenitos, acolheram-nas na adolescência e juventude quando íamos ver filmes ao Éden ou ao Império, acolheram-nas quando fomos embalados por melodias em concertos no Coliseu do Porto, isto para já não falarmos, de que também as acolheram quando íamos à Cervejaria Portugália fazer um bocado de conversa e beber uns copos.

A propósito de Cassiano Branco é possível falar de tudo, o tema é praticamente inesgotável. Em 1991 o cineasta experimental Edgar Pêra realizou um pequeno filme de vinte cinco minutos intitulado “A Cidade de Cassiano”, nele vemos fachadas, portas, janelas, varandas, chaminés e as múltiplas formas com que Cassiano as desenhou. Ver-se e saber-se estar atento a tais pormenores, é um modo diferente de conhecer a cidade e, mais do que isso, uma excelente maneira de se educar o olhar.


Subindo a avenida à beira da Alameda Dom Afonso Henriques, de seu nome Guerra Junqueiro, são não mais do que cinco ou seis minutos de caminho, até chegarmos à Mexicana, estabelecimento que é uma pastelaria, mas que também serve refeições.



O melhor da Mexicana não são os bolos, mas sim o seu interior. Perfis de linha quebrada e tectos de ângulos não rectos, dão ao lugar um ar exótico. Acrescente-se a isso, os painéis cerâmicos do imenso ceramista português, o mestre Querubim Lapa. Por fim, há também um passarinheiro, ou seja, uma gaiola enorme com uma árvore lá dentro e com pássaros a sério.

Estando lá dentro, é impossível não percebermos que estamos num espaço raro, acerca do qual muito há para dizer. Beneficiamos ainda de uma vista privilegiada para a ampla praça em frente, cujo nome é de Londres, mas que esteve para se chamar Praça do México (daí o nome Mexicana), e que depois não o foi, por misteriosas razões diplomáticas. 

A propósito da Mexicana seria possível convocar imensas matérias, que vão desde a cerâmica à política, passando pela geometria e a história, e também pela biologia e, porque não, pela culinária. Abaixo, uma imagem do passarinheiro.



Saindo da Mexicana mas ficando na Praça de Londres, se nos voltarmos para norte, temos por diante dois edifícios contrastantes. O da direita foi desenhado pelo nosso já conhecido Cassiano Branco, o da esquerda é da autoria de Sérgio Gomes. São sensivelmente da mesma época, contudo, e mesmo assim sendo, são completamente distintos. Abaixo vemos os dois, lado a lado:



Ambos têm a sua história, mas a que das duas é mais engraçada, é a relativa ao edifício projectado por Cassiano Branco, ou seja, o da direita. Após uma longa carreira, Cassiano estava farto que as autoridades e as gentes continuamente  lhe dissessem que ele era demasiado moderno e a que a sua obra não exaltava suficientemente os valores da portugalidade, pois usava uma linguagem arquitectónica excessivamente moderna e cosmopolita. 

Vai daí, Cassiano não teve com meias medidas e pensou de si para consigo, ai é tradicionalismo que querem, então tomem lá disto. Encarregue de projetar o edifício de habitação para a Praça de Londres deu-lhe então para ser comediante. 

Desenhou esse prédio com um telhado em forma de pagode chinês pondo-lhe em cima umas enormes chaminés algarvias. Distribuiu umas quantas janelas ao estilo do tempo de D. João V pela fachada, inventou portadas próprias do Palácio de Mafra, acrescentou-lhe beirais das Beiras, galos de Barcelos, um cata-vento e no topo, a coroar a obra, uma esfera armilar.
O resultado final é uma completamente desconexa mistura. À época não houve muito quem tivesse percebido a piada, mas quem o conhecia, sabia que Cassiano se riu por dentro e se sentiu vingado. Queriam tradição, pois aqui a tem, terá dito Cassiano com ar malandro.

Mas vamos ao outro lado da praça, onde se encontra o edifício que atualmente alberga o Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social. Só esse facto já daria para uma longa conversa acerca de por quais razões é que existe esse ministério e quais as suas funções. Seria sem dúvida um tema cuja exploração poderia ser realizada no âmbito das ciências sociais, todavia, nós por ora vamos apenas focarmo-nos numa história.



O atual edifício do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social foi inicialmente concebido para ser o Hotel Vera Cruz, sendo à data da sua construção o prédio mais alto da Lisboa. A ideia original era que fosse o mais moderno hotel da capital, que os seus hóspedes pudessem beneficiar de todas as comodidades e de uma extensa e privilegiada vista.

No entanto, devido a problemas financeiros, a construção foi interrompida quando a estrutura do edifício estava já completa. Os investidores desistiram do projecto e nada aconteceu durante bastante tempo. Em 1960, o Estado decidiu adquirir o edifício para o transformar no Ministério das Corporações e Previdência Social. 

Só a comparação entre a anterior designação, “Ministério das Corporações e Previdência Social”, e a atual, “Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social”, daria para uma tese, sendo um óptimo ponto de partida para se perceber como o país mudou muito desde meados do século XX até ao presente momento.

Mas sigamos em frente, deixemos a Praça de Londres e entremos na Avenida de Roma. Ao longo de toda essa avenida deparamo-nos com umas figuras escultóricas que encimam a porta de entrada de diversos prédios. Essas figuras são conhecidas na gíria popular como “As Entaladas”. 

Tais figuras escultóricas ganharam esse nome porque foram colocadas num espaço exíguo onde parecem sentir-se desconfortáveis. As posições em que se encontram, ou seja, agachadas, contorcidas, enroladas ou de cabeça para baixo, reforçam a sensação de aperto e asfixia.



“As Entaladas” são de meados do século XX e a sua temática gira quase sempre à volta da mulher mãe e esposa, em redor de elementos do imaginário mitológico, ou ainda tendo com temas os relacionados com o trabalho. 
Há umas poucas figuras masculinas que celebram o esforço e a rectidão, há também uns quantos fios de prumo, réguas e esquadros. Existem figuras femininas nuas, o que até pode causar alguma estranheza dada a moralidade conservadora propagada pelo regime de então. 



Seja como o for, o facto é que “As Entaladas” eram colocadas algo toscamente e de modo bastante desajeitado à entrada dos prédios, sem se atender a que quando se misturam várias disciplinas, neste caso a arquitetura e a escultura, deve tentar-se que entre elas haja harmonia.

A meio da Avenida de Roma, no cruzamento com a Avenida Estados Unidos da América, há um café, o Vavá, em que o esforço de harmonizar foi feito, pois nesse café tudo foi pensado de forma integrada. No interior do estabelecimento podemos contemplar belos painéis de azulejos de Menez (1926-1995), que foi uma grande  pioneira da pintura abstracta portuguesa. 



Podemos contemplar as obras de Menez nos melhores museus portugueses de arte moderna e contemporânea, mas podemos também fazê-lo no Café Vavá. Aqui fica uma imagem de dois clientes de antigamente, tendo por cenário os painéis de azulejos de Menez.



O Café Vavá está intimamente ligado à história do cinema português, pois era lá que se reuniam na década de 60, os realizadores que viriam a revolucionar a cinematografia nacional. Entre eles cabe destacar Paulo Rocha e a sua histórica película de 1963, “Os Verdes Anos”. 

A maior parte da ação desenrola-se entre a Avenida de Roma e a Avenida Estados Unidos da América, havendo igualmente cenas ali para os lados do Areeiro, bem como no Campo Grande e na Cidade Universitária. 
Quem queira conhecer a alma desses lugares, não pode deixar de ver o filme. Para além disso, a banda sonora é de Carlos Paredes, sendo que talvez não haja melhor melodia para se desenvolver uma sensibilidade estética e musical, do que a que ele compôs e executa em “Os Verdes Anos”.  Aqui fica o trailer:


A nossa visita de estudo já vai longa, mas vamos ainda determo-nos em mais um sítio, no antigo Cinema Alvalade, hoje City. No seu átrio há uma pintura mural de Estrela Faria de 1953. 
Nela se celebra o cinema como uma arte transdisciplinar, que não existiria caso nele não coexistissem a fotografia, o teatro, a música, a escrita, a cenografia, a dança, a história, a ciência e muitas outras coisas mais. É um belo e sugestivo fim para esta nossa visita de estudo.

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