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On the road (8): a América dividida



Basta ver uma qualquer reportagem dedicada às eleições norte-americanas num telejornal de qualquer canal nacional, para se ouvir dizer, como se isso fosse uma grande novidade, que a América está dividida.

A América não está agora dividida, esteve-o sempre, faz parte da sua natureza. Em Portugal parte-se quase sempre do princípio que há um consenso, que estamos todos do mesmo lado, razão pela qual, se ouve frequentemente dizer “os portugueses” querem isto, “os portugueses” pensam aquilo, como se “os portugueses” quisessem e pensassem todos a mesma coisa.

Já na América não é esse o caso, nem nunca o foi. Há nela um lado excessivamente conservador e puritano, havendo igualmente um lado liberal e libertário, é entre estes dois extremos que a América sempre se moveu, numa constante tensão entre dois polos.

Logo uns dos primeiros grandes acontecimentos após a fundação da nação americana, ainda nem um século tinha passado, foi uma violenta e particularmente sangrenta Guerra Civil (1861-1865).

A Guerra Civil norte-americana opôs o sul ao norte, sendo que uma das principais causas para esse conflito, teve que ver com o facto dos estados de sul se quererem separar dos Estados Unidos da América, uma vez que não aceitavam que o esclavagismo fosse abolido em todo o país.

A divisão foi profunda e não é líquido que todas as feridas que resultaram desse conflito, mais de um século e meio passado, estejam completamente saradas. A Guerra Civil norte-americana mudou o modo como a humanidade vê a guerra, pois que foi um dos primeiros conflitos armados a ser amplamente fotografado.


Durante séculos as guerras eram retratadas em pinturas e esculturas como momentos de grande heroísmo e de retumbantes triunfos, já as imagens fotográficas que nos jornais se viam da Guerra Civil norte-americana, tinham pouco de heróico e de triunfal, o que na verdade se observava era uma carnificina sem fim, e mortos e feridos por todo o lado.

Dois dos maiores clássicos de sempre do cinema norte-americano dão-nos a ver as tensões presentes nesse grande conflito entre duas facões da mesma nação. O primeiro desses clássicos é de “Birth of Nation” de David W. Griffith.

É um filme de 1915 e apesar de ser considerado uma obra-prima da sétima arte, existem nele cenas que levantam muitas dúvidas quanto à sua legitimidade, como por exemplo, uma em que o realizador encena uma sessão parlamentar, na qual a maioria dos membros da assembleia são negros, aproveitando então para os ridicularizar e, por contraste, enaltecer a civilidade dos brancos.

A dita cena é uma nítida ação de propaganda em favor da supremacia branca, havendo ainda ao dia de hoje muitas e ferozes discussões, acerca se de um filme que difunde ideias racistas, se pode dizer que é uma obra-prima do cinema. Aqui fica, essa cena de “The Birth of Nation”:



O outro grande clássico cinematográfico que nos fala da Guerra Civil é “E tudo o vento levou”. A história divide-se em duas partes, começa por nos mostrar as gentes sulistas como grandes senhores com belas mansões, e proprietários de escravos que são retratados como se fossem bons amigos dos patrões, que gostam de os ajudar e de os servir. Sabe-se que na realidade não era nada disso o que se passava, mas na ficção era assim.

Depois na narrativa chega a guerra, e os sulistas veem-se a si mesmo como grandes heróis, ou seja, como os paladinos de uma civilização requintada, em que cada um tem o seu lugar e todos vivem em paz e harmoniosamente.

Scarlett O'Hara, a personagem principal, é filha de uma família rica e prestigiada, e a herdeira predileta dos valores sulistas. Muito naturalmente casa-se com um bravo soldado sulista, também ele filho das melhores famílias, que luta honradamente contra os exércitos vindos do norte.


Com o desenrolar da guerra, o sul é derrotado, o esclavagismo abolido e as famílias ricas e prestigiadas ficam praticamente arruinadas. A segunda parte do filme centra-se na reconstrução do pós-guerra.
É nesta fase da história, que Scarlett O’Hara faz das tripas coração e tenta voltar a erguer o património que a sua família possuía antes da guerra. Neste entretanto, o seu marido, o heróico combatente, falece.
Sozinha na vida, descobre Rhett Butler, que sempre por ali andara, mas que de digno e de herói nada tinha. Rhett era um jogador e um sedutor, de reputação um tanto ou quanto duvidosa, sabia como se havia de safar. A sociedade sulista achava-lhe graça, mas os seus modos desenrascados pouco condiziam com os dos grandes senhores sulistas.

Scarlett e Rhett casaram e fizeram vida juntos, só que as nobres tradições e costumes do sul, aos quais ela era fiel, não eram para ele, razão pela qual, os desentendimentos entre ambos foram num contínuo crescendo.

Mesmo no fim do filme, Scarlett tenta tudo para que fiquem juntos, implora-lhe, pergunta-lhe o que vai ser dela sem ele, no entanto, é nesse mesmo instante que Rhett lhe dirige as seguintes palavras, que com tempo se tornariam imortais: “Frankly, my dear, I don't give a damn".

No fundo, tais palavras são uma metáfora de como a América ficou dividida e jamais o sul e o norte se reconciliaram completamente. Scarlett O’ Hara fecha a história com as não menos imortais palavras: “After all, tomorrow is another day”.



O conservadorismo sulista chocou de frente com o liberalismo do norte e, de algum modo, essas feridas ainda não cicatrizaram. Porém, uns bons anos mais tarde, entre 1920 e 1933, foi o puritanismo que quis impor a sua vontade ao resto da América, e daí surgiu a chamada Lei Seca, ou seja, a proibição do consumo de bebidas alcoólicas.

Senhoras muito tementes a Deus e acérrimas defensoras da moral e dos bons costumes, conseguiram levar a sua avante, proibir o consumo do álcool e fazer com que se instalasse o caos durante mais de uma década na América.



As consequências dessa lei foram desastrosas, e isto porque imediatamente se formou um imenso mercado negro e abriram bares clandestinos por todo o lado, os chamados “speakeasies”. Sabe-se que foi nesse tempo que nasceram certas organizações criminosas, as máfias, como a à época liderada por Al Capone, que ainda hoje prosperam, muito embora neste entretanto, tenham mudado de ramo de negócio.

Em síntese, mais uma vez, a América estava ao tempo completamente dividida, no entanto, após mais de uma década de caos, a situação era insustentável, a criminalidade tinha-se tornado parte do dia a dia e, para além disso, havia quem quisesse beber uma cervejinha.


O bom senso acabou por reinar e a Lei Seca por findar. Contudo, na década de 50, mesmo a seguir à Segunda Guerra Mundial, dá-se uma outra divisão profunda, que ficou conhecida como o Macarthismo.

O termo Macarthismo teve origem no nome do senador Joseph McCarthy. Entre 1950 e 1957 milhares de pessoas foram perseguidas, ficando esse tempo também conhecido como o período da “Caça às Bruxas”.

Milhares de americanos foram acusados de serem comunistas ou simpatizantes e tornaram-se objetos de agressivas investigações e de inquéritos abertos pelo governo. Os principais alvos das suspeitas foram funcionários públicos, gente do cinema, do teatro ou das artes, e ainda professores e sindicalistas.

Todos aqueles que fossem levemente suspeitos de terem simpatias esquerdistas, tornaram-se objeto de investigações e de invasão da sua privacidade, tendo muitos deles perdido o emprego e as suas carreiras destruídas.
Mais tarde acabar-se-ia por descobrir que muitos dos processos levantados em tribunal, o foram abusivamente e acabaram anulados, mas nesse entretanto já muito gente tinha tido a vida desgraçada.

Abaixo fica uma Ted Lesson, para quem de forma simples e lúdica quiser perceber o que foi o Macarthismo:



A Guerra Civil, a Lei Seca e o Macarthismo são três dos mais relevantes episódios da História norte-americana a mostrar-nos, que os Estados Unidos andam periodicamente divididos, mas o que o passado nos ensina, é que de uma coisa podemos estar certos, a América é também, agora como sempre, o país dos “Happy Endings”.

Nos anos 70 havia uma série televisiva chamada “All in the family”. Archie e Edith eram um casal e os personagens principais. Ele era um homem tradicional, que representava a América puritana e conservadora. Ela era uma mulher ingénua, que de quando em vez se deparava com coisas novas, com outras ideias e imagens, mas que lá por causa disso, não se atrapalhava.

Na cena abaixo, Archie e Edith estão numa sala de espera. Ela põe-se a ver revistas e, de repente, depara-se com um exemplar da revista “Playgirl”. A cena é um exemplo cómico da América dividida:


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