Depois
de termos longamente passeado pelos imensos Estados Unidos durante treze textos
nas últimas duas semanas, voltamos a dedicarmo-nos neste blog a temas e
assuntos mais do nosso calibre, daqueles comezinhos, assim de trazer por casa,
como por exemplo, o tempo.
Ultimamente
muito se tem falado da disciplina de Cidadania. A nós, neste momento, não nos
apetece entrar nessa controvérsia, contudo, cremos que teria o seu interesse
ensinar crianças e jovens a serem bons cidadãos, e isto relativamente a um
aspeto em concreto, a saber: como se fazer conversas de circunstância nas
ocasiões em que estas são indispensáveis, como é o caso de quando se fala
acerca do tempo que faz, indo-se num elevador ou estando-se numa qualquer sala
de espera.
Há
quem qualifique tais conversas como sendo de chacha, mas a nosso ver, essa é
uma qualificação pejorativa e injusta, para algo que devia ser considerado um
dos pilares da civilização. Com efeito, saber conversar-se com um qualquer
alguém, a quem nada de significativo temos para dizer, é um dos mais
importantes sinais de civilidade e de urbanidade que se pode ter.
A
nosso ver, a arte de falar sem se dizer nada de relevante, deveria ser uma
matéria estruturante da disciplina de Cidadania, pois desse modo,
promover-se-iam as boas e corteses relações entre todos, e a sã convivialidade
entre vizinhos e conhecidos, e até mesmo entre estranhos.
Nesse
contexto, não há tema mais propício para uma conversa de circunstância com um
vizinho, conhecido ou estranho, do que o tempo, ou seja, se chove ou faz sol,
se está quente e abafado ou um tremendo briol.
Há
quem diga que falar do tempo é uma perda tempo, mas não é essa a nossa opinião.
Só gente ignorante é que dirá que falar do tempo é perder tempo. Para responder
a tais gentes, poderíamos logo começar por refletir entre a diferença existente
entre a língua portuguesa e a inglesa.
Repare-se
no seguinte, na língua inglesa há uma clara distinção entre falar do “weather”, ou seja, do clima, e falar do
tempo que passa, ou seja, do “time”.
Já em português, a palavra tempo tanto serve para nos referirmos ao clima como
aos minutos, às horas, aos anos, aos séculos ou aos milénios.
Imaginem
que vão num elevador ou se encontram numa qualquer sala de espera e, de repente,
entra uma senhora desconhecida, digamos uma velhota. Nisto, a dita estranha
mete conversa connosco e diz-nos melancolicamente: “Que tempo este!”
Tendo
nós escutado o desabafo da velhota e tendo ele despertado a nossa curiosidade,
é muito natural que questionássemos a criatura e lhe pedíssemos um
esclarecimento: “Estará porventura a senhora através da palavra tempo a
referir-se à chuva que cai lá fora e ao elevado valor da humidade relativa ou,
ao invés, a sua consideração versa sobre a decadência e a imoralidade da época
em que atualmente vivemos?”
Como
é evidente, perante uma tal questão, a desconhecida idosa ficaria imediatamente
impressionada com a nossa agudeza sintática e semântica e, a partir daí,
certamente que a conversa evoluiria para outros aspetos morfológicos e lexicais
relacionadas com o termo tempo.
Não
seria inclusivamente de descartar a hipótese, de que com o normal decorrer da
conversa, se abordassem também alguns temas e conteúdos filosóficos. Com
efeito, sendo esse o contexto, não seria improvável que fossem trocadas umas
quantas ideias acerca da noção de tempo na obra “Kritik der reinen Vernunft” de
Immanuel Kant ou, quem sabe, se efectuassem umas tantas considerações relativas
à obra maior de Martin Heidegger, “Sein und Zeit”.
Abaixo
uma imagem de uma edição original de “Sein und Zeit”, em português, “Ser e
Tempo”.
Feitas
as contas, uma mera conversa com uma velha sobre o tempo num elevador ou numa
qualquer sala de espera, pode subitamente transformar-se numa profunda reflexão
gramatical e quiçá filosófica, sobre a temporalidade e acerca do modo como esta
condiciona e fundamenta a existência humana.
Em
conclusão, como vemos, só os ignorantes é que dizem que falar acerca do tempo é
uma perda de tempo, pois o facto é que, partindo de uma simples constatação se
está de chuva ou se faz sol, pode chegar-se a vastas e transcendentes reflexões
gramaticais e existenciais.
Abaixo
o quadro de René Magritte “O Tempo Transfixado”.
No entanto,
ao falarmos do tempo nos dias que correm, existe um risco que dantes não havia.
Há uns bons anos, entrava-se no elevador num quente dia de verão e dizia-se ao
vizinho: “Ufa, que isto está cá um calor”. Ao que o nosso interlocutor
responderia amavelmente: “Isto só se está bem é na praia”. Ao que nós
responderíamos de volta: “Sim, tem toda a razão”.
Para que a
conversa não esmorecesse, acrescentaríamos ainda: “O vizinho neste agosto por
acaso vai estar pela Côte d’Azur ou estará ao invés pela Riviera?”. Ao que o
vizinho retorquiria educadamente: “Com este calor, talvez passe antes a Saison
entre Carcavelos e Paço de Arcos, que diz que por lá é mais fresquinho”.
Neste
entretanto, o elevador chegaria ao destino e a agradável conversa terminaria
sem demais considerandos de parte a parte. Todos entrariam no seu lar contentes
com o bom momento passado no elevador e igualmente satisfeitos por residirem
num imóvel com uma tão simpática vizinhança.
Só que o
mundo mudou, sendo que, aos dias de hoje, se porventura entabularmos uma
conversa sobre o tempo no elevador, corremos o sério risco de algum vizinho nos
dar a seguinte resposta: “Isto deve-se tudo às alterações climáticas”.
Obtendo tal
resposta, o melhor a fazer é mudarmos imediatamente de assunto e perguntar pela
saúde ou pela família, ou então falar de política e de futebol. Mas é uma vã
esperança, essa a de tentarmos dar a volta à conversa, pois o certo é que
quando apanhamos com alguém, que diante de uma banal consideração sobre o
tempo, nos atira logo à cara com as alterações climáticas, sabemos que estamos
tramados.
Se
mostrarmos desinteresse pelo tema, há uma enorme probabilidade de nos acusarem
de sermos cidadãos irresponsáveis, de não querermos saber do futuro do planeta
nem das gerações por vir ou, pior ainda, de sermos negacionistas do clima.
Nem vale a
pena tentarmo-nos justificar e dizermos que até pomos o lixo no ecoponto, e que
usamos protector solar por causa do buraco do ozono, é inútil. A partir do
momento que nos fisgaram com as alterações climáticas estamos marcados, somos
culpados, passamos a ser um caso exemplar, um arquétipo de todos os que poluem
a terra, sujam os mares e envenenam o ar.
Abaixo uma
imagem do pintor inglês L.S. Lowry. O artista era um homem de Manchester. Não
era fino, sofisticado e elegante como os artistas de Londres. Possuía o rude
sotaque mancuniano e, por incrível que vos pareça, adorava as paisagens
industriais da sua cidade, as chaminés das fábricas e a atmosfera urbana feita
de fuligem e de fumo.
Mas
voltemos às conversas sobre o tempo. Tínhamos ficado no ponto em que íamos no
elevador, proferimos uma vulgar frase sobre o tempo, como por exemplo, está
calor ou faz frio, e o vizinho que nos acompanhava na viagem atirou-nos
imediatamente à cara com o sério e maçador tema das alterações climáticas.
A
nosso ver, esse putativo vizinho nada perderia, se porventura frequentasse umas
aulas de Cidadania, sobretudo umas cuja matéria fosse centrada na explicação
sobre o que são conversas de circunstância.
Vejamos
os três pontos que abordámos até ao presente momento, ou seja, o a,b,c das
injustamente chamadas conversas de chacha:
a)
Uma mera conversa de circunstância sobre o tempo (o clima) pode lenta e
naturalmente evoluir para uma conversa filosófica sobre o tempo (o dos relógios
e dos calendários). Veja-se o exemplo que antes apresentámos, em que uma
velhota diz “Que tempo este!”, e com base nessa alocução inicial, se parte
calmamente para uma reflexão sintática e semântica, seguindo-se posteriormente
para considerações filosóficas e existenciais acerca da obra de Heiddegger “Ser
e Tempo”.
b)
As conversas de circunstância sobre o tempo (o clima) podem manter-se como
sendo apenas de circunstância, não exigindo portanto nenhuma profundidade
lexical ou filosófica, mas isto só se os vários interlocutores abordarem
somente assuntos ligeiros, como por exemplo, se no calor de agosto irão a
banhos na praia de Carcavelos ou antes nas praias da Riviera.
c)
Há quem não saiba ser um bom cidadão, e perante uma conversa de circunstância
sobre o tempo (o clima), nos venha logo para cima, assim sem mais nem menos,
mesmo à bruta, com assuntos graves e sérios, como por exemplo, as alterações
climáticas.
Relativamente
aos pontos a) e b) nada mais há acrescentar, ambos configuram os normais
procedimentos para uma conversa de circunstância sobre o tempo, ou seja, ou bem
que a conversa evolui natural e tranquilamente para assuntos mais complexos, ou
bem que se mantém num tom leve e ligeiro.
O
problema como já se percebeu é o ponto c), quando se inicia uma conversa de
circunstância sobre o tempo num elevador, numa qualquer sala de espera ou em
algum outro sitio, e sem mais nem porquê, o nosso interlocutor introduz
bruscamente um tema sério e pesado, como as alterações climáticas.
Em
nosso entender, aqueles que abruptamente saltam de uma simples conversa de
circunstância para conversas intricadas, difíceis e complicadas, são aqueles
que beneficiariam enormemente em frequentar aulas de Cidadania cuja matéria se centrasse
na explicação sobre o que se espera de uma conversa de circunstância e acerca
do modo suave como esta é suposto evoluir, se porventura for caso disso.
Como
nós temos uma veia didáctica muito aguçada, vamos sugerir umas propostas
propedêuticas, para todos aqueles que não sabem ter uma conversa leve e ligeira
sobre o tempo, ou então uma que evolua lenta e naturalmente para assuntos mais
profundos e filosóficos, e logo à bruta saltam para temas fastidiosos e
azucrinantes.
Que
ninguém nos interprete mal, nós nada temos contra o falar-se e debater-se
assuntos relacionados com as alterações climáticas, cremos é que não é uma
temática própria para conversas de circunstância num elevador ou numa sala de
espera.
Todavia,
nós para além de termos uma aguçada veia didáctica, temos também uma artéria
pedagógica, por tal razão estamos sempre prontos para tentarmos fazer a
quadratura do círculo e apresentar as nossas propostas educativas de uma forma
transversal.
Assim
sendo, vamos cruzar arte com conversas de circunstância e com alterações
climáticas. O objetivo é que quem não se consegue impedir de falar de assuntos
sérios num elevador ou numa sala de espera, o faça de um modo mais interessante
para quem o ouve.
Voltemos
à situação de que antes falámos, vamos num elevador, encontramos um vizinho que
simpaticamente nos diz uma ligeireza qualquer sobre o estado do tempo, o
objetivo dele é só fazer conversa fiada, porém, nós inopinadamente atazanamo-lo
com as alterações climáticas. Neste cenário somos portanto nós quem não
consegue conter a verborreia, por consequência, o que fazermos?
A
solução é sermos transversais, se o vizinho disser que está frio, ao invés de
lhe atirarmos à cara de supetão com o tema das alterações climáticas, podemos
falar-lhe de arte. Imaginemos um diálogo entre vizinhos, no caso, o Manel e a
Maria.
Maria:
Chiça vizinho, que está frio!
Manel:
Por acaso a vizinha conhece a obra do Mestre Wenceslas,
um artista medieval da Boémia?
Maria:
Será aquele que pintou o palácio do bispo
de Trento em 1407, vizinho?
Manel:
É mesmo esse. Se a vizinha bem se
recorda, um dos frescos retrata umas quantas senhoras a atirarem bolas de neve
umas às outras. O caso é que a cena se passa numa época que ficou conhecida
como “A Pequena Idade do Gelo”, devido ao invulgar frio que fez.
Maria:
O vizinho não me diga uma coisa dessas…
Manel:
Ai digo sim.
Maria:
Está o vizinho a dizer-me que nesse tempo
já havia alterações climáticas?
Manel:
Ora nem mais vizinha. Pronto chegámos. Então
até amanhã e uma noite descansada.
Como
vemos, a breve conversa de circunstância no elevador, abordou transversalmente
temas como o frio que fazia na rua, as alterações climáticas e a arte medieval,
sendo que o mais importante é que tudo isso foi conseguido sem maçadas, nem
transições bruscas de assunto. Abaixo a imagem do fresco medieval do palácio de
Tento, executado pelo Mestre Wenceslas da Boémia.
Mas regressemos mais uma vez à mesma exata situação, para que concretizemos uma última proposta transversal.
Vamos num elevador, encontramos um vizinho que simpaticamente nos diz uma ligeireza qualquer sobre o estado do tempo. O objetivo dele é só fazer conversa fiada, em síntese, o contexto é exatamente o mesmo que o anterior, só que desta vez, em vez dos vizinhos serem o Manel e a Maria, são o Epifânio e a Francelina. O tema agora, relativo às alterações climáticas, é o degelo dos glaciares e a subida das águas dos rios e dos mares.
Epifânio: A vizinha já viu as poças que estão aqui por diante? Parecem oceanos. Tenho as botas todas encharcadas, capaz de me constipar...
Francelina: O vizinho porventura é um aficionado da pintura renascentista veneziana? Digamos de Canaletto, de Guardi, de Bellotto ou de Tiepolo?
Epifânio: Ó vizinha, se quer que lhe diga, nem sei o que lhe diga. Estou de tal modo amargurado com os pés todos molhados, que nem me sinto em mim.
Francelina: Se o vizinho for ver, vai verificar que tudo isto já estava anunciado nos grandes artistas venezianos, não só nos renascentistas, como até nos maneiristas.
Epifânio: A sério?
Francelina: Ora veja aqui uma pintura dessa época, espreite, espreite! Espreite aqui para o Canaletto!
Como vemos pela segunda vez, é perfeitamente possível ter uma conversa de circunstância e até incluir as alterações climáticas, sem se ser chato e maçador.
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