Há filmes que, mesmo sendo curtos, são belos. Ao dia de hoje temos uma breve e sucinta obra cinematográfica, que consegue dizer-nos muitas coisas, e fala-nos profundamente e ao mesmo tempo de assuntos tão diversos como o Portugal rural, a descolonização, o fascismo, as relações entre pais e filhos, o amor, o casamento, e ainda de destino e redenção.
Dir-se-ia que um filme que tal faz é uma espécie de milagre. É esse o caso da pequena película de Miguel Gomes, “Redemption”. Não dura mais de vinte minutos, e quem a quiser ver do princípio ao fim, pode fazê-lo na RTP Play, através do seguinte link:
Neste momento, quem quer que seja consciente, deixa de nos ler, não perde mais tempo connosco, e vai antes ver o filme. Ainda assim, nós vamos continuar a escrever, na esperança de que ninguém nos leia, e que, ao invés, clique no link acima, e veja vinte e poucos minutos de grande cinema.
Sabendo nós, que quem preferiu continuar a ler-nos em vez de ir ver o filme de Miguel Gomes ou bem que é inconsciente, ou bem que tem uma insensata fé de que escreveremos algo de interessante. Vamos então continuar exclusivamente para esses a divagar acerca de “Redemption”.
Como já terão adivinhado, quer pelo cartaz acima, quer também pelo nosso título, o filme divide-se em quatro partes diferentes. No filme há quatro histórias inventadas, que de seguida vamos explicitar.
No dia 21 de Janeiro de 1975, numa aldeia de Trás-os-Montes, uma criança, Pedro Passos Coelho, escreve aos seus pais que vivem em Angola, para lhes dizer que Portugal é um país triste.
No dia 13 de Julho de 2011, em Milão, um homem já idoso, Silvio Berlusconi, recorda-se do seu primeiro amor, ao tempo em que ainda era uma criança.
No dia 6 de Maio de 2012, em Paris, o antigo presidente francês Nicolas Sarkozy, em vésperas de perder o poder, diz à sua filha bebé que nunca será um pai de verdade.
No dia 3 de Setembro de 1977, em Leipzig, na extinta República Democrática Alemã (RDA), uma noiva, Angela Merkel, debate-se mentalmente com uma música de uma ópera de Wagner, que não lhe sai da cabeça.
O filme de Miguel Gomes é todo feito com excertos de outros filmes, sejam eles documentários ou ficções. Tem também imagens de arquivos históricos e vídeos amadores de famílias em férias, em festas de casamentos ou simplesmente em divertidos piqueniques.
Comecemos pela primeira parte, na qual a criança Pedro Passos Coelho, por segurança, foi enviada pelos pais para casa de seus tios, situada numa aldeia em Trás-os-Montes. Pedro tinha crescido em Angola, mas em 1975 a colónia estava prestes a declarar a independência e o clima geral era agitado, como é próprio dos períodos revolucionários.
Os pais de Pedro ficaram em Luanda. Ele escreve-lhes para lhes dizer que tem saudades de África e da vida alegre, calorosa e feliz que por lá fazia. As suas primeiras palavras são as seguintes: “Papá, mamã, sei que temos de sair daí, só por sermos portugueses e aí já não ser Portugal. Portugal é muito triste e vai ser sempre assim”.
Na aldeia transmontana onde Pedro agora vive com os tios, os rapazes da terra riem-se dele e chamam-lhe nomes feios. Ele sabe, e citamos, que os outros meninos são pobres e burros, e que por isso deles nada vale a pena esperar, há que lhes perdoar as ofensas.
Em síntese, ao contrário do que sucedia em África, faz frio, chove, neva e a vida é dura por terras de Trás-os-Montes.
A imagem acima é de um filme de 1973, “Falamos de Rio de Onor”, realizado por António Campos. O realizador filmou o Portugal rural e interior dos anos 60 e 70 do século XX e deixou-nos imagens únicas de hábitos ancestrais, da organização comunitária nas aldeias e das condutas associadas à propriedade e às práticas agrícolas e pastoris.
Miguel Gomes usa no seu filme de 2013 “Redemption”, imagens do filme de 1973 de António Campos, “Falamos de Rio de Onor”. A determinada altura da carta que a criança Passos Coelho escreve aos pais, informa-os que tem uma nova professora primária e que ela veio de Lisboa, qualifica-a como sendo uma “hippie”.
O Portugal interior, ancestral e quase primitivo, pouco tem que ver com a capital, Lisboa. Não o tem agora, e muito menos o tinha dantes, nas décadas de 60 e 70 do século XX.
O realizador António Campos, que desapareceu em 1999 com 76 anos de idade, registou para a posteridade a vida dessas gentes distantes, as suas crenças e costumes e o que pensam da vida.
Em boa verdade, os filmes de António Campos deveriam ser elevados à categoria de património nacional. Obras como “Vilarinho das Furnas” de 1971, ou o já referido “Falamos de Rio de Onor” são um autêntico espelho das origens da nação que ainda ao dia de hoje somos, e que não raras vezes, temos tendência a esquecer.
António Campos foi um homem que se manteve à margem das tertúlias lisboetas.
"Era um clássico, não era uma pessoa que estava dentro das modas do seu tempo, do Cinema Novo, não estava integrado nessas correntes", opinou Catarina Alves Costa, que em 2009 dirigiu um documentário acerca da vida e obra do realizador.
O documentário de Catarina Alves Costa intitula-se “Falamos de António Campos”. Aqui ficam os primeiros cinco minutos, nos quais se podem ver as agrestes terras de Trás-os-Montes e as duras vidas que por lá se vivem, tanto dantes como agora:
Miguel Gomes fez muito bem em recordar-nos no século XXI, essas terras telúricas e arcaicas através das imagens muitos anos antes captadas por António Campos. Mas para retratar Trás-os-Montes, Miguel Gomes recorreu a um outro filme antigo, “Máscaras” de Noémia Delgado, realizado em 1976.
Aqui fica o início desse outro filme, “Máscaras”, que nos mostra um mundo ancestral, que vem lá do fundo dos tempos, mas que continua presente, disfarçado sobre outras formas, bem no meio de nós:
Passemos agora à segunda parte do filme “Redemption”. O local da história agora é Milão, e o personagem principal é Silvio Berlusconi. Estamos em 2011 e Silvio, já com avançada idade, recorda-se dos seus tempos de menino, que se deram à saída da guerra.
Benito Mussolini, o governante à época, tinha sido um leal aliado de Hitler. Contudo, tanto o regime nazi alemão como o fascista italiano foram clamorosamente derrotados. Nesse contexto, Mussolini foi executado sumariamente por militantes antifascistas no vilarejo de Giuliano di Mezzegra, no norte de Itália.
O corpo de Mussolini e de alguns dos seus apoiantes próximos, foram depois levados para Milão, onde ficaram expostos numa praça imensa diante de uma multidão enfurecida, que gritava insultos e lhes atirava pedras e outros objetos.
Os corpos foram pendurados de cabeça para baixo numa viga de metal, e aí permaneceram durante o tempo necessário para que toda a gente presente os injuriasse e assim se libertasse e redimisse dos anos de raiva e dor acumulada.
Miguel Gomes mostra-nos essas imagens e, ao mesmo tempo, a voz do personagem Silvio Berlusconi, relata-nos que nessa época, era ele uma criança, foi desafiado pela rapaziada lá do bairro a atirar pedras contra uma pequena fábrica familiar vizinha e a gritar “fuori fascisti”. Coisa que ele fez.
O dono da pequena fábrica era um entusiasta apoiante de Mussolini, por consequência, no fim da guerra, acabou por ter de partir, fugindo para uma outra localidade, para longe de Milão, para um lugar em que ninguém o conhecesse.
Só que, o dono da fábrica era também o pai da pequena Alessandra de nove anos, o primeiro amor da vida de Silvio. A pequena Alessandra saiu assim para sempre da existência do menino Silvio, que, muitos anos mais tarde, já velho, a evoca como a sua mais terna recordação.
A segunda parte de “Redemption” centrada em Silvio Berlusconi, termina com imagens do clássico filme “Miracolo a Milano”. Na cena final dessa película, por uma qualquer magia inexplicável, as gentes boas da cidade sobem aos céus, montados numa mera vassoura e tendo sob si a catedral de Milão e a imensa praça que diante desta se estende.
Em certa medida, o que Miguel Gomes fez foi redimir ficcionalmente Pedro Passos Coelho e Silvio Berlusconi, por ambos em crianças terem sido envolvidos em circunstâncias históricas extremas e traumatizantes, podendo isso, de algum modo, explicar os adultos amargos em que depois se tornaram.
Mas Miguel Gomes fez mais, redime também imagens cinematográficas de um Portugal rural e hoje mais esquecido que nunca, trazendo-as para o nosso tempo. De igual modo, lembra também através de imagens históricas, o quão terrível foi o tempo do fascismo italiano, algo que, parece também ter sido olvidado neste nosso século XXI.
Na terceira parte do filme, o personagem central é Nicolas Sarkozy, que se dirige à sua filha bebé, explicando-lhe porque nunca será um pai de verdade. Na realidade (ficcional), o antigo presidente francês parece procurar redimir-se por antecipação do que mais tarde, quando a filha crescer, esta eventualmente venha a sentir por ele.
Todas as imagens que acompanham a voz de Sarkozy a dirigir-se à filha bebé, são de vídeos familiares com pais a brincarem com as suas crianças. Ao terminar Sarkozy diz o seguinte: “Para mim, o fim começou há muito tempo, há tanto tempo que já não posso lembrar-me dos detalhes”.
Sarkozy apresenta-se portanto a si mesmo como um homem marcado pelo destino, por um fim que vem lá muito de trás. É alguém que procura redimir-se, justificando-se e alegando que carrega consigo uma qualquer fatalidade, que o faz ser como é desde sempre.
Mas é sim na quarta parte do filme, quando o personagem principal passa a ser Angela Merkel, que o destino parece assumir um papel primordial. Toda esta quarta parte está envolta na música de Richard Wagner (1813-1883).
Angela Merkel, no dia do seu casamento, em 3 de Setembro de 1977, debate-se mentalmente com a música de uma ópera de Wagner, que a parece perseguir. Angela teme que essa magnífica e avassaladora melodia a prejudique, e a acabe por afastar do seu marido e do compromisso que tem com o seu país, a extinta RDA. A música que a persegue é a da ópera “Parsifal”.
Parsifal é um herói mitológico, o símbolo maior do cavaleiro sem mácula, o eleito de Deus, que graças à sua pureza e perseverança, vence todos os inúmeros obstáculos com que se depara e leva a cabo a mais difícil e penosa das tarefas, conquistar o Santo Graal. Parsifal reúne em si muitas das características de Cristo, sendo que a principal, é o seu destino ser o de redimir a humanidade. Ouçamos um pouco:
Angela Merkel também se via a si mesma como uma redentora da RDA, sendo que, pensava no seu casamento não apenas como uma união de duas pessoas, mas sim como algo que iria contribuir para o glorioso futuro da república socialista e para o triunfo final da classe trabalhadora, ou seja, o seu casamento seria mais uma etapa no caminho para os míticos “amanhãs que cantam”.
No seu filme “Redemption”, Miguel Gomes usa excertos de um filme intitulado “Vivre en paix en RDA”. Uma película de 1974, que se inicia numa sala de aula de uma escola nos arredores da Karl Marx Stadt.
O filme tenta demonstrar que, ao eliminar o capitalismo, é possível fazer imensos progressos no caminho do bem-estar para todos, e que a RDA e os outros países do bloco de leste, eram o garante da paz mundial graças à sua política ofensiva de coexistência pacífica. No filme há uma aluna chamada Angela.
Uns anos depois, já Angela Merkel tinha concluído que a RDA era irredimível. Mais uns anos depois, e já Angela Merkel era chanceler da Alemanha capitalista e estava a aplicar cortes e pesadas sanções e restrições orçamentais aos países europeus que “viviam acima das suas possibilidades”. Os amanhãs que cantam, a luta dos trabalhadores e a vitória da classe operária, o Santo Graal comunista era coisa do passado para Merkel.
Após o primeiro casamento de Merkel terminar em divórcio em 1982, ela voltou a casar-se em 1998 com Joachim Sauer. Já agora, e a título de informação, Sauer em alemão significa amargo ou mal-humorado. O casal todos anos vai ao Festival de Música de Bayreuth, evento que se dedica exclusivamente à apresentação das óperas de Richard Wagner.
E com isto chegamos ao fim. Se porventura alguém nos leu até este momento, voltamos a recordar que o importante é o filme de Miguel Gomes. Aqui fica o trailer:
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