Dantes, a magna questão que no nosso título levantamos, era de resposta pronta, a saber: um professor serve para ensinar, está claro! Neste momento, para a mesma exata pergunta, já não há uma réplica certa e óbvia, pois agora, antes de a tal questão se retorquir, é preciso um pouco refletir.
Mas o que terá entretanto sucedido, para que onde dantes havia uma resposta simples e clara, tenham emergido na atualidade umas quantas dúvidas e hesitações sobre o que se dizer?
Em tempos não muito distantes, um docente era quem quase em exclusivo estava encarregue de disseminar o conhecimento, no entanto, neste nosso presente, há muitos outros a assumiram também a função de transmissores do saber. É com estes que os professores têm agora de concorrer e, por consequência disso, para que serve um professor hoje em dia já não é tão evidente como o foi outrora.
É certo que há séculos inventaram a imprensa e os livros passaram a ser impressos aos milhares, tendo o conhecimento ficado ao alcance de muitos mais do que antes estava. Muito depois disso, vieram a rádio, o cinema e a TV, tendo assim o conhecimento adquirido outros modos mais abrangentes e imediatos de ser divulgado. No entanto, nada no passado provocou uma revolução tão grande no acesso ao conhecimento, como o advento da internet.
A partir do momento em que surgiu a internet, o conhecimento está disponível para qualquer um num segundo e, para além disso, qualquer um acredita poder ser ele próprio um transmissor de conhecimentos.
Mesmo quem nunca tenha lido um único livro, não possua nenhuma qualificação ou saber específico, ainda assim, pode vir fazer uma carreira de sucesso como YouTuber ou Influencer e, desse modo, doutrinar milhares, para não dizer milhões.
É este o atual contexto dos docentes. Bem pode um pobre professor explicar detalhada e esforçadamente aos seus discentes que a Terra é redonda, o que é uma vacina ou como funciona a democracia, que se porventura os alunos acreditarem mais no que encontram nas redes sociais do que no docente, todas essas lições de pouco valerão.
Umberto Eco já há uns quantos anos sugeriu o seguinte: “No futuro, a educação terá como objetivo aprender a arte do filtro. Já não fará falta ensinar onde fica Katmandu ou quem foi o primeiro rei da França, porque isso se encontrará em toda parte. Por outro lado, terá que se pedir aos estudantes que analisem quinze sites para determinar qual é para eles o mais confiável. Haverá que lhes ensinar a técnica da comparação"
Abaixo uma caricatura de Umberto rodeado pelos seus muitos livros.
Em 2018 Umberto Eco escreveu um pequeno texto para um congresso internacional de docentes, do qual transcrevemos a posterior passagem: “Em criança, o meu pai não sabia que Hiroshima ficava no Japão, que existia Guadalcanal, tinha uma vaga ideia de Dresden e só sabia da Índia o que havia lido nos livros de aventuras do Sandokan. Eu, que nasci na época da guerra, aprendi estas coisas através da rádio e dos noticiários diários. Os meus filhos viram na televisão os fiordes noruegueses, o deserto de Gobi, como as abelhas polinizam as flores, o que é um Tiranossauro Rex. Uma criança de hoje sabe tudo sobre o ozono, sobre os coalas, sobre o Iraque e o Afeganistão. Talvez uma criança de hoje não saiba exatamente o que são células-tronco, mas já ouviu falar delas, enquanto no meu tempo, nem mesmo o professor de ciências sabia algo sobre isso. Dito isto, para que servem hoje os professores?”
A resposta à questão de Umberto Eco está plasmada na citação anterior do mesmo autor, ou seja, um professor serve para “ensinar a técnica da comparação”. Viajemos a esse propósito até ao berço da civilização ocidental, ao local onde nasceram as artes e letras, as ciências, as olimpíadas, a filosofia e o pensamento, regressemos à Grécia antiga.
A Grécia resulta da agregação das suas muitas cidades-estado, sendo que, algumas delas tinham hábitos, costumes e formas de ser e viver completamente diferentes, como por exemplo, Atenas e Esparta.
Atenas era uma agitada cidade comercial. O seu porto, o Pireu, era um dos maiores do Mediterrâneo. Já Esparta estava cercada por montanhas e isolada no fértil vale do rio Eurotas, gozava de autossuficiência agrícola, mas o seu comércio era débil. Atenas estava sempre cheia de gente vinda de fora dela, que ou vinham de passagem, ou vinham para ficar. Em Esparta os estrangeiros eram mal recebidos e periodicamente expulsos. Atenas era uma grande potência naval, a força de Esparta estava no seu exército. Os atenienses embelezaram a sua cidade com esplêndidos templos e soberbas estátuas. Esparta parecia uma aldeia mal-amanhada que crescera em demasia.
Por Atenas e Esparta serem tão distintas, isto já para não falar das muitas outras cidades-estado helénicas, as comparações surgiram. Acrescente-se a isso, que a Grécia não estava muito longe nem da Pérsia nem do Egipto, razão pela qual, mais vastas comparações aconteceram.
De repente, os gregos aperceberam-se que diferentes regiões adoravam diferentes deuses, possuíam leis dispares e que as formas de se organizarem e governarem eram dissemelhantes em cada uma delas.
Como seria previsível, tudo isso fê-los pensar, o mesmo é dizer, interrogarem-se e fazerem comparações. Pelo facto de estarem num território que era o epicentro de tantas coisas diferentes e de as poderem comparar umas com as outras, foi precisamente aí que nasceram as artes e letras, as ciências, as olimpíadas, a filosofia e o pensamento.
Todas essas atividades, no fundo mais não eram do que tentativas dos gregos antigos para encontrarem respostas para questões que lhes surgiam, mediante as comparações que faziam.
A título de exemplo, imaginemos uma bela jovem helénica vagueando na brisa da tarde pelas vias de Atenas. Pelo caminho certamente que se depararia com diferentes edifícios. Sendo a jovem observadora e perspicaz, repararia que as colunas que sustentavam e adornavam os edifícios eram de três tipos distintos. Nesse sentido, faria comparações e certamente pensaria assim:
Nós como professores que somos, não nos importamos nada de transmitir os nossos conhecimentos à bela jovem helénica e de a ajudar a comparar e a distinguir os três tipos de ordens de colunas que existem:
a) A ordem dórica é a mais antiga e a mais simples. Não possui base e, geralmente, tinham estátuas de deuses ou heróis no topo. Esta ordem surgiu nas costas do Peloponeso e encontra-se sobretudo em templos dedicados a divindades masculinas.
b) A ordem jónica é oriunda da Grécia oriental. Possui um estilo detalhado, mais leve, fundamentalmente usado nos templos dedicados à devoção de divindades femininas. A base é larga e tem um fuste elegante. Apresenta duas volutas, uma de cada lado, ao alto.
c) A ordem coríntia possui o estilo mais decorado e trabalhado, isto comparando com as demais. O capitel apresenta uma grande exuberância decorativa, ornamentado com rebentos e folhas de acanto.
Assim como a bela jovem helénica necessita de comparar os três tipos de ordens das colunas, também a rapaziada de agora, para pensar e aprender, tem de saber da existência de sites na internet que se assumem como transmissores de conhecimento, mas que só servem para aumentar o ódio e a ignorância, assim como há outros que são excelentes. Em síntese, a rapaziada tem de comparar para saber separar o trigo do joio.
O mesmo sucede com os livros, os filmes ou os programas de TV. Há livros que jamais deviam ser escritos, filmes execráveis e programas de TV vergonhosos. Por outro lado, há livros que podem ser lidos mil vezes com proveito, filmes que nunca nos cansamos de rever e programas de TV que nos educam e expandem os nossos conhecimentos. Fazer comparações e ajudar os alunos a saber distinguir o que não presta e só faz mal, do que faz crescer e alarga horizontes, é a nobre tarefa que o futuro reserva aos professores.
Citemos mais uma vez Umberto Eco: “O que faz de uma aula uma boa aula não é que se transmitam fatos e dados, mas que se estabeleça um diálogo constante, um confronto de opiniões, uma discussão sobre o que se aprende na escola e o que vem de fora. É verdade que o que acontece no Iraque é noticiado na televisão, mas porque é que há sempre algo a acontecer nessa região do mundo desde os tempos da civilização mesopotâmica, e não o mesmo na Gronelândia, é algo que só a escola pode dizer. Os meios de comunicação de massa informam-nos de muitas coisas e também nos transmitem valores, mas a escola deve saber discutir a forma como se os transmitem e avaliar o tom e a força da argumentação do que aparece nos jornais, nas revistas e na televisão. (…) A informação que a Internet disponibiliza é imensamente mais ampla e até mais profunda do que a que está disponível a um professor, (…) de facto, a Internet faz quase tudo, exceto ensinar como pesquisar, filtrar, comparar, acreditar ou rejeitar toda essa informação.”
Aqui há uns dias passou na RTP 2 um documentário intitulado “Umberto Eco: A Biblioteca do Mundo”. É simplesmente maravilhoso assistir a excertos das palestras de Eco em universidades, onde disserta acerca do lugar do conhecimento nesta nossa era digital, ou, em momentos mais íntimos, vê-lo recordar a avó que gostava muito de ler e lhe transmitiu, na infância, a paixão pelas histórias, o mesmo é dizer, pelo saber.
Caso não saibam, para além de pensador e romancista, Umberto Eco foi professor toda a sua vida. O documentário “Umberto Eco: A Biblioteca do Mundo”, pode ser visto na RTP Play através do seguinte link:
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