Na imagem acima vemos uma obra da dupla de artistas Sara e André intitulada “Couple-in-Waiting”, obra que faz parte da coleção do Museu do Chiado. Talvez estejam mascarados de fantasmas, ou talvez estejam simplesmente escondidos. Em qualquer dos casos, o certo é que esperam e que os seus rostos estão disfarçados e encobertos.
Por alguma razão, esta obra da dupla Sara e André trouxe-nos à memória um verso de uma canção:
Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar
Não é preciso esperarmos pelo Carnaval para vermos máscaras de fantasmas ou outras, pois quotidianamente não há quem as não use. No dia a dia, há máscaras de todos os tipos, umas divertidas e outras nem por isso. Mas não é só a título individual que as gentes usam máscaras, há também disfarces coletivos que são usados por todo um país.
É difícil ver o verdadeiro rosto de Portugal nos discursos oficiais, nas cerimónias institucionais, nos jornais e nas TV’s. Temos a forte sensação, que em todas essas ocasiões, o que vemos é uma confusa e intricada mascarada que esconde e cobre a real face do país.
Abaixo uma obra de 1913 de Santa-Rita Pintor, que pode ser vista no Museu do Chiado.
Passeamos pelas ruas e avenidas das nossas cidades, lemos os poetas nacionais de outrora e os de agora, entramos nas mais ancestrais igrejas da pátria e em edifícios de arquitetos portugueses de vanguarda, escutamos fados antigos e modernos, contemplamos obras de arte que marcaram a História de Portugal e outras que são nossas contemporâneas e, ouvindo, lendo e vendo tudo isso, concluímos que nada disso faz parte do menu político-mediático que diariamente nos é servido por políticos, por jornais e TV’s.
O verdadeiro rosto do país, ou seja, aquele que se expressa nas suas ruas e avenidas, na sua poesia, na sua arquitetura, na sua música e na sua arte, está velado e dissimulado, encontra-se oculto por detrás da imensa mascarada político-mediática que nos dão no dia-a-dia.
Vendo os noticiários e ouvindo os discursos políticos, o que vemos e ouvimos a cada instante é um rol de inconsequências sem fim, ditas aos gritos. É como se o país estivesse continuamente a ser arrastado para um terrível abismo de consecutivos escândalos temporários misturado com superficialidades várias.
Vemos diariamente uma torrente de casos, confusões e divergências, de que passados uns tempos já ninguém se lembra, pois que entretanto surgiram outros embaraços e desentendimentos, que rapidamente hão de também ser esquecidos para se passar aos seguintes e assim sucessivamente.
Perante isto, temos a sensação de que não há nada a fazer, que neste país a única coisa que nos resta é escondermo-nos debaixo de um lençol e esperarmos que um qualquer milagre divino nos salve do abismo.
Abaixo uma obra do maior pintor romântico português, Francisco Metrass. Data de 1856 e pode ser vista no Museu do Chiado, o seu título é “Só Deus”.
Ao contrário de uma máscara que confunde, cobre e disfarça, uma obra de arte é um espelho que nos mostra um rosto verdadeiro. É primeiro o espelho do artista que a cria. Espelha também a alma de quem a contempla e vê nela algo de si próprio. É igualmente um espelho, porque é sempre um reflexo da sua época. Por fim, é ainda um espelho porque representa um povo, a sua história e a sua cultura, sendo em tudo isso que este texto se vai centrar.
O Museu do Chiado em Lisboa tem a maior coleção de arte portuguesa desde o século XIX até a atualidade. É portanto um local imprescindível para sabermos quem somos como povo e que tempo é esse, o que vem decorrendo desde meados do século XIX até aos dias de hoje. Em resumo, é um sítio para vislumbramos o nosso verdadeiro rosto.
Aprenderemos muito mais sobre a nossa identidade nacional, sobre a nossa história e atualidade, as nossas frustrações, anseios e desejos, e sobre o nosso verdadeiro rosto visitando o Museu do Chiado, do que vendo mil horas de notícias e passando outras mil a ouvir discursos políticos.
Entremos então no Museu do Chiado e comecemos por olhar o rosto do poeta Antero de Quental, num retrato pintado em 1889 por Columbano Bordalo Pinheiro.
Columbano Bordalo Pinheiro parece ter pressentido no rosto de Antero de Quental, que dois anos depois ele se suicidaria. A figura de Antero é um símbolo de toda uma geração. Quando o retrato foi realizado o poeta estava doente, completamente deprimido e desiludido com o rumo do país. Em tempos tinha alimentado vastas esperanças para a nação, mas sentia agora que tudo tinha sido em vão.
Lutou durante a vida inteira por ideias novas e foi um crítico feroz das instituições amorfas e das tradições paralisantes que sufocavam Portugal e o afastavam da modernidade e da Europa. No entanto, aquando do retrato feito por Columbano, já Antero se tinha dado por vencido. Ele, como toda a sua geração, concluíram de um modo amargo que Portugal não tinha remédio possível.
O retrato de Antero por Columbano diz-nos algo de essencial acerca de nós como povo, ou seja, que outrora como agora, não raras vezes, os mais entusiastas e brilhantes dos nossos compatriotas são totalmente derrotados pelo imobilismo, pela inação e pelo torpor característico de certos setores da população. O deprimido Antero, mesmo tendo vivido no século XIX, é um nosso contemporâneo.
Se Antero é do transacto século XIX e também nosso contemporâneo, o mesmo sucede com a Cervejaria Leão D’Ouro, estabelecimento fundado em 1885, que fica ali mesmo ao lado da estação do Rossio em Lisboa, e que atualmente continua a abrir diariamente a porta à clientela desde o meio-dia até às onze da noite.
Vem isto a propósito de uma outra obra fundamental da coleção do Museu do Chiado, o famoso retrato de “O Grupo do Leão”, também ele pintado por Columbano Bordalo Pinheiro. Trata-se de um conjunto de convivas que à data se juntavam para comer e beber na referida Cervejaria Leão D’ouro.
Faziam parte do Grupo do Leão alguns dos mais importantes artistas portugueses de finais do século XIX. Vemos representados na pintura gente como José Malhoa, João Vaz, Silva Porto, e o irmão de Columbano, o célebre ceramista e caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro (o segundo sentado a contar da direita).
No centro da composição, de bandeja na mão, o empregado de mesa, de seu nome Manuel Fidalgo. Não deixa de ser inusitado, que seja precisamente o serviçal a ocupar o lugar central do quadro. Ao longo de toda a História da Arte, o lugar central de uma composição sempre foi o mais significativo, tendo sido ocupado por figuras divinas, por santos, por altezas reais e por heróis históricos ou mitológicos, mas não por empregados de mesa.
O facto de Columbano colocar o Manuel Fidalgo bem no centro de quadro em grande destaque, pode muito bem ser interpretado como tendo tido uma intenção um tanto ou quanto sarcástica. Columbano insinuava assim que as tertúlias de artistas e intelectuais em que se discutiam altas ideias e graves teorias seriam muito interessantes, mas no fundo o que importava aos convivas é que lhes fosse servida farta paparoca acompanhada boa pinga.
Columbano que se auto-retratou em pé à direita do quadro, mesmo atrás do empregado, usa uma cartola e parece até estar de saída do convívio. Como se dissesse para consigo mesmo, que tais forrobodós não eram para si, pois que ele possuía um espírito mais polido e refinado que os restantes, uma vez que já tinha passado umas boas temporadas em Paris, sítio muito mais cultivado e sofisticado do que qualquer outro em Portugal.
Columbano era pouco sociável e tinha súbitas fúrias e pequenas teimosias de solitário. Era fechado em si mesmo e dado a análises exaustivas e a dissecações cruéis do que observava. Em 1881 partiu para Paris com uma bolsa de estudos secretamente concedida pelo rei consorte, D. Fernando II. Na capital francesa Columbano expunha nos “salons” e era apreciado pelo público e pela crítica. Quando regressou a Lisboa, quer os críticos quer o público, mostraram-se-lhe menos favoráveis.
No fundo, Columbano pensava que Portugal era um sítio para farras e patuscadas, e que mesmo os artistas, críticos e intelectuais, na verdade não eram muito diferentes do rústico Zé Povinho, o célebre personagem criado pelo seu irmão, o caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro.
Abaixo um auto-retrato de Columbano pertencente à coleção do Museu do Chiado, no qual o artista assume uma pose altiva que pretende acentuar a sua elegância e distinção.
Na verdade, Columbano sentia-se um desterrado em Portugal, sendo um outro caso em que se pode aplicar a expressão outrora como agora, ou seja, tal como no século XIX, também nos dias de hoje há muito quem pense que da lusitana pátria só pode esperar incompreensão e desdém e, por consequência, creia que o melhor é pôr-se andar daqui para fora.
Uma outra obra icónica do final do século XIX é uma escultura cujo título é precisamente “O Desterrado” de Soares dos Reis. A escultura em mármore pode ser visitada no Museu Soares dos Reis no Porto, em gesso pode ser observada no Museu do Chiado em Lisboa.
Soares dos Reis nasceu em Vila Nova de Gaia em 1847, com vinte anos foi estudar para Paris onde esteve durante algum tempo e onde obteve um bom reconhecimento, depois esteve uma temporada em Roma, local no qual o seu trabalho também era apreciado.
Dito isto, regressa a Portugal, e mais especificamente ao Porto, e foi acolhido pelos seus conterrâneos com aplausos e admiração. Recebeu várias honrarias oficiais das academias do Porto e de Lisboa e, para além de se dedicar ao trabalho como criador, empenhou-se em ser professor e na renovação do ensino da escultura em Portugal, sendo nesse capítulo que tudo lhe começou a correr mal.
Dado o imobilismo, a inação e o torpor característico de certos setores nacionais, os seus esforços para renovar o ensino da escultura esbarraram com a oposição de muitos. Esses tais, para que tudo se continuasse a fazer como sempre se fez, não hesitaram em difamar publicamente a sua obra e os seus créditos de todas as formas possíveis.
Impotente perante a incompreensão e o descrédito lançado contra a sua arte, e incapaz de ultrapassar a obstrução sistemática aos seus esforços de inovação como docente, aos 41 anos de idade, suicida-se. Deixou escrita a seguinte mensagem: “Sou cristão, porém, nestas condições, a vida para mim é insuportável. Peço perdão a quem ofendi injustamente, mas não perdoo a quem me fez mal.”
Foi a propósito do destino de Soares dos Reis, mas também do de Antero de Quental, que o grande filósofo espanhol Miguel Unamuno escreveu um texto célebre sobre a nossa nação de que citamos um trecho: “Portugal é um povo triste, e é-o até quando sorri. A sua literatura, incluindo a sua literatura cómica e jocosa, é uma literatura triste. Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida. A vida não tem para ele sentido transcendente. Desejam talvez viver, sim, mas para quê? Mais vale não viver.”
O estado depressivo de muitos em finais do século XIX explicava-se por duas razões. A primeira era a consciência de que o país era pobre, inculto e estava irremediavelmente atrasado por comparação com as nações desenvolvidas da Europa, a segunda relacionava-se com o ultimato inglês que impôs a Portugal uma humilhação e fez ver a toda a gente como éramos um povo insignificante e que não contava para nada no contexto internacional.
Em síntese, um país que tinha a imagem de si mesmo como sendo grandioso e como tendo dado novos mundos ao mundo, verificava de um modo abrupto que estava condenado a ser arcaico e subdesenvolvido.
Ao transitarmos para o início do século XX, a situação não melhora. Há revoltas e contestações contra a situação, mas o ambiente geral é soturno. Há uma obra no Museu do Chiado que nos transmite bem essa sensação, “Nocturno” de 1910, um quadro pintado por António Carneiro (1872-1930).
Após 1910 e a implantação da República cresceu uma vontade de modernidade, artistas como o muito conhecido Amadeo de Sousa-Cardoso ou o Eduardo Viana são belos exemplos disso mesmo. Parecia que o país estava farto de vegetar na sua ancestralidade e que queria recompor-se, seguir em frente, lamber as suas feridas e acompanhar o resto do mundo ocidental rumo ao progresso, artístico e não só.
Veja-se por exemplo o quadro abaixo de Eduardo Viana, “A Revolta das Bonecas” de 1916, que também faz parte da coleção do Museu do Chiado. As cores e as formas usadas pelo pintor mostram-nos que estávamos em pleno século XX, e que para ele as referências eram o que se fazia de novo e de original em Paris, Londres ou Nova Iorque. Havia uma nova alegria no ar, Portugal parecia poder vir a ter, finalmente, um rosto moderno.
Essa brisa de modernidade foi tão intensa, que ainda é atualmente reconhecida. O prestigiado Museu Guggenheim de Nova Iorque inaugurou recentemente uma exposição temporária, para a qual requisitou obras de Amadeo Sousa-Cardoso e também a pintura de Eduardo Viana, “A Revolta das Bonecas”. Aqui fica a notícia:
Todavia, por intensa que fosse, foi breve essa aragem de liberdade e de cosmopolitismo que prometia dar um rosto moderno a Portugal. Passado pouco tempo, a nação atolou-se novamente nos seus imobilismos e atavismos.
Os setores mais conservadores tomaram conta do poder e queriam o país “orgulhosamente só”. Durante largas décadas, foi essa a máscara usada por um país que escondia o seu verdadeiro rosto, Portugal era então um sítio “onde a tristeza vil e apagada, se disfarça de gente mais activa”, como disse num verso Alexandre O’Neill.
O regime do Estado Novo insistiu em exaltar os valores e a grandiosidade da lusitana pátria, porém, quando detemos o nosso olhar sobre algumas das melhores obras de arte dessas primeiras décadas de ditadura, o que vislumbramos é uma intensa amargura e uma grande melancolia. Por detrás da máscara, o rosto verdadeiro expressava desolação e desconsolo. Veja-se por exemplo, um quadro de Mário Eloy de 1936, intitulado “Bailarico no Bairro”.
Apesar de um bailarico ser uma ocasião alegre e festiva, é por demais evidente que nesta obra de Eloy não o é. O espaço apresenta traços paranóicos, inquietantes e depressivos, no primeiro plano aparece-nos uma escadaria inútil e irracional, e observam-se enormes distorções da perspetiva. As figuras são desproporcionais relativamente ao casario e tudo está envolto numa total sensação de absurdo.
Numa outra pintura desses anos, “Lisboa e o Tejo; Domingo” de Carlos Botelho, pressentimos igualmente a melancolia, a dormência e a imobilidade de uma cidade triste, parada no tempo e absorta em si mesmo. As bandeiras nacionais que se podem observar abaixo no quadro, são um sinal de como era Portugal nesse tempo, um lugar onde quase todos usavam uma máscara para fingir que viviam no torpor de um eterno domingo, em que nada se fazia ou acontecia.
Apetece-nos citar novamente Alexandre O’Neill, que na estrofe inicial de um seu poema, retrata bem a pasmaceira que era essa época:
Os domingos de Lisboa são domingos
Terríveis de passar – e eu que o diga!
De manhã vais à missa a S. Domingos
E à tarde apanhamos alguns pingos
De chuva ou coçamos a barriga.
Se formos ao Museu do Chiado e contemplarmos estes dois últimos quadros que agora referimos, ou seja, “Bailarico no Bairro” e “Lisboa e o Tejo; Domingo”, constatamos que em ambos a cidade parece ser claustrofóbica. Isso é tanto mais estranho, pois que nos dois se avista o Tejo, no entanto, nem por se ver o rio diminuiu essa sensação de enclausuramento e de estarmos num espaço exíguo, que como nos amarra e nos limita os movimentos.
Após a revolução de Abril, uma vez instalada a democracia, os portugueses perceberam que grandiosas máscaras como a do “orgulhosamente sós” pouco ou nada valiam. Perceberam que eram meros disfarces ou fantasias, que serviam apenas para esconder e encobrir o atraso do país, assim como o seu torpor, imobilismo e inação. Descobriram igualmente, que cada um de nós poderia ser o que quisesse e/ou conseguisse ser.
No Museu do Chiado há uma obra de 1999, que aparentemente é incompreensível. O seu autor é João Tabarra e o título é “This is not a Drill (No Pain No Gain)”. Aqui fica:
Nos alvores da revolução de Abril e depois com a entrada de Portugal na União Europeia, existia a crença de que com luta, com esforço, dedicação, talento e trabalho, e vá lá um pouco de sorte, qualquer um poderia atingir os seus objetivos. Em 1990, data da obra acima “This is not a Drill (No Pain No Gain)”, tal crença já está um tanto ou quanto abalada.
Na imagem vê-se alguém que se esforça imensamente por subir na vida, contudo, constata que o caminho é altamente inclinado, e que para mais é feito de pedras, pedregulhos e calhaus. Como se não bastasse, a fada não é na verdade uma fada, não será certamente ela que nos concretizará os nossos desejos. A fada é apenas uma qualquer espécie de matrafona sem graça alguma.
O que esta obra de João Tabarra talvez pretenda significar, é que logo em 1990, já o país andava outra vez mascarado. Desta vez, Portugal não andava disfarçado da nação valente, imortal e grandiosa, que orgulhosamente só deu novos mundos ao mundo e era um império onde o sol nunca se punha, mas sim num esforçado e bom aluno da União Europeia, onde todos estavam prontos para enriquecer, para pedir empréstimos aos bancos e para aceder ao consumo como até então nunca se tinha acedido.
Como todos sabemos, a fada acabou por não nos concretizar nem o desejo de sermos tão ricos e modernos como os países mais desenvolvidos da Europa, nem também o desejo de podermos consumir abundantemente produtos das melhores marcas sem termos de recorrer a créditos ou pagarmos prestações. Em síntese, a fada veio a revelar-se uma ilusão, pois na verdade era uma feiosa, com um rosto que afinal era muito mal-enjorcado.
Queremos terminar esta nossa viagem de Carnaval pelo Museu do Chiado, com uma outra obra da sua coleção, esta de Alice Geirinhas e já do século XXI. Mais uma vez, é um exemplo claro de como a arte mostra rostos verdadeiros, ou seja, aqueles que se escondem ou estão encobertos por máscaras.
A obra vê-se como uma B.D.
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