Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo, Transeunte inútil de ti e de mim, Estrangeiro aqui como em toda a parte
Ao tempo em que andávamos na escola primária, já lá vão muitos anos, conhecíamos um cachorro chamado Tejo. Um dia a nossa professora mandou-nos fazer uma composição sobre o Tejo, consequentemente, escrevemos sentidas frases sobre o dito canídeo. Ao ler o nosso texto, a docente fez longas considerações a respeito da nossa pouca inteligência, pois na verdade o que ela queria, era que fizéssemos uma redação sobre o rio e não acerca do cão, que ela aliás nem sequer conhecia.
Haverá poucas gentes, que tendo concluído com aproveitamento a escolaridade obrigatória, nunca tenha ouvido a estrofe inicial de um poema de Fernando Pessoa em que se diz assim: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”.
Pela mesma ordem de razões, também é muito conhecida uma estrofe de um poema de Cesário Verde, que começa do seguinte modo: “Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia, Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.”
Por assim ser, não vamos hoje falar de nenhum desses dois célebres poemas em que se refere o Tejo, o rio, não o cão, mas sim de outros menos conhecidos.
Abaixo uma obra de Carlos Botelho de 1968, “Tejo e Ponte”, que faz parte da coleção do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian.
Uma coisa é certa, nos nossos já muitos anos de existência, raros terão sido os dias em que não vimos o Tejo. Ou o vimos ao abrir a janela, ou o entrevimos de um qualquer lugar da cidade ou inclusivamente o atravessámos nos barcos que vão para Cacilhas, para o Seixal e para o Barreiro. É essa presença constante e quotidiana do rio, que Sophia de Mello Breyner celebra na sua poesia:
Aqui e além em Lisboa — quando vamos
Com pressa ou distraídos pelas ruas
Ao virar da esquina de súbito avistamos
Irisado o Tejo:
Então se tornam
Leve o nosso corpo e a alma alada
Sophia ao cantar o Tejo, faz eco de uma tradição que vem de muito longe. O rio há séculos que atravessa a poesia portuguesa. As suas águas fluem em imensos poemas, como por exemplo em alguns de Luís Vaz de Camões.
Veja-se este abaixo, em que o poeta prestes a partir para terras distantes, faz um canto ao Tejo e às saudades que quando longe dele estiver, dele terá:
Brandas águas do Tejo que, passando
Por estes verdes campos que regais,
Plantas, hervas, e flores, e animais,
Pastores, Nymphas, ides alegrando;
Não sei, (ah doces águas!) não sei quando
Vos tornarei a ver; que mágoas tais,
Vendo como vos deixo, me causais,
Que de tornar já vou desconfiando.
Ordenou o destino, desejoso
De converter meus gostos em pezares,
Partida que me vai custando tanto.
Saudoso de vós, delle queixoso,
Encherei de suspiros outros ares,
Turbarei outras águas com meu pranto.
Camões não cantou tão-somente o Tejo que se estende defronte Lisboa, cantou também aquele rio mais campestre e bucólico, que se vislumbra lá mais para dentro do país, e que passa pela vila de Constância, local onde o poeta terá vivido durante algum tempo.
Mesmo pertinho de Constância, fica Vila Nova da Barquinha, e é aí nos campos à beira Tejo, que a uns poucos metros do leito, podemos encontrar algumas esculturas dos mais prestigiados artistas contemporâneos nacionais. Abaixo uma de Rui Chafes, junto ao canavial, para lá do qual, do rio flui o caudal .
Uns bons séculos depois de Camões, foi Alexandre O’Neill quem também cantou o Tejo. Ao poema em que o fez, deu-lhe como título “Tejo Corre no Tejo”.
Num outro seu poema, O’ Neill cunhou uma frase famosa, que posteriormente viria a ser letra de um fado cantado por Amália: “Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa”, todavia, neste presente poema, apesar de também haver uma gaivota, é do tempo que passa, aquilo de que se fala. O curso do rio é equivalente ao curso do tempo, o Tejo é um espelho de água, um reflexo de um homem que envelhece.
Tu que passas por mim tão indiferente,
no teu correr vazio de sentido,
na memória que sobes lentamente,
do mar para a nascente,
és o curso do tempo já vivido.
Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!
Por isso, à tua beira se demora
aquele a saudade ainda trespassa,
repetindo a lição, que não decora,
de ser, aqui e agora,
só um homem a olhar para o que passa.
Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!
Um voo desferido é uma gaivota,
não é um voo da imaginação;
gritos não são agoiros, são a lota…
Vá, não faças batota,
deixa ficar as coisas onde estão…
Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!
Tejo desta canção, que o teu correr
não seja o meu pretexto de saudade.
Saudade tenho, sim, mas de perder,
sem as poder deter,
as águas vivas da realidade!
Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
- sou eu que em ti me vejo!
Alexandre O’ Neill, um poeta do século XX, praticamente nosso contemporâneo, reviu-se no Tejo. Mas, alguns séculos antes dele, outros se tinham igualmente revisto, e não só Camões. Falemos de um, hoje praticamente esquecido, que viveu no século XVI. O seu nome é António Ferreira. A sua obra mais conhecida é a peça teatral "A Castro", ou seja, a tragédia muy sentida e elegante de D. Inês de Castro.
Dito isto, também ele, o poeta Ferreira, se retratou no Tejo. Nesse retrato ele vê que para quem vê o Tejo tudo se ri, se alegra e reverdece. No fundo, ao olhar o rio, todo o mundo parece que renova, excepto ele, cuja alma, mesmo junto ao Tejo, chora e entristece. Em síntese, o rio que a todos traz vida, ao poeta só morte traz.
Quando entoar começo com voz branda
Vosso nome de amor, doce, e suave,
A terra, o mar, vento, água, flor, folha, ave
Ao brando som se alegra, move, e abranda.
Nem nuvem cobre o céu, nem na gente anda
Trabalhoso cuidado, ou peso grave,
Nova cor toma o Sul, ou se erga, ou lave
No claro Tejo, e nova luz nos manda.
Tudo se ri, se alegra, e reverdece.
Todo mundo parece que renova.
Nem há triste planeta, ou dura sorte.
A minh'alma só chora, e se entristece,
Maravilha de Amor cruel, e nova!
O que a todos traz vida, a mim traz morte.
Vosso nome de amor, doce, e suave,
A terra, o mar, vento, água, flor, folha, ave
Ao brando som se alegra, move, e abranda.
Nem nuvem cobre o céu, nem na gente anda
Trabalhoso cuidado, ou peso grave,
Nova cor toma o Sul, ou se erga, ou lave
No claro Tejo, e nova luz nos manda.
Tudo se ri, se alegra, e reverdece.
Todo mundo parece que renova.
Nem há triste planeta, ou dura sorte.
A minh'alma só chora, e se entristece,
Maravilha de Amor cruel, e nova!
O que a todos traz vida, a mim traz morte.
Por fim e por último, um poema de Fiama Hasse Brandão. O Tejo da sua poesia é outro, é o dos que partiram para a guerra porque Angola era nossa, Moçambique também, a Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste outro tanto.
Lisboa tem barcas
agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
Barcas novas são mandadas
sobre o mar
Não lavram terra com armas
os homens
Nelas mandaram meter
os homens com a sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas
Comentários
Enviar um comentário