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Todo o cais é uma saudade de pedra



Existe um lugar ali para os lados do Cais de Sodré, que se chama British Bar. No seu interior há um relógio em que o tempo anda ao contrário. 
O estabelecimento foi inaugurado em 17 de Fevereiro de 1919, Carlos Botelho, o pintor de Lisboa, frequentou-o, bem como Fernando Pessoa. Em 1997, José Cardoso Pires lançou um livro intitulado “Lisboa, livro de bordo” e nele descreve esse bar dizendo que “Tem um sabor a cais sem água à vista”.


Em “Lisboa, livro de bordo”, José Cardoso Pires fala-nos em determinado momento daquilo a que chamamos “fazer horas”, ou seja, dessas ocasiões em que aguardamos por algo ou alguém, ou simplesmente nada temos que fazer. Nesses contextos, ou caminhamos pelas ruas sem destino algum e deixamos que o tempo passe, ou então procuramos um lugar para atracar.

O British Bar é o local onde frequentemente aportam marinheiros sem rumo, que navegam pelos passeios e calçadas da cidade sem ir a sítio algum, e que se limitam a distraidamente deixar que os minutos se sucedam uns aos outros. Em resumo, é gente que tão-somente anda a fazer horas, meio perdida na vida, quem mais chega ao British Bar.

A propósito ou a despropósito disso, escreveu Cardoso Pires: “Fazer horas, dizemos nós quando não temos outra coisa para fazer. Pausa de espera ou vazio imprevisto, para isso há lugares de recurso, que o digam os frequentadores dos bares, por exemplo, mas aí o tempo morto acaba muitas vezes em tempo vivo e pode até deixar de ser de espera. Na verdade, só o bebedor desprevenido acredita em enganar as horas, quando as horas é que nos enganam muitas vezes, contando a passo certo e batido um tempo para lá dos números.”


Vindo de longe, um grande navio de carga aporta em Lisboa. Paul, um dos seus tripulantes, sem saber bem que rumo dar à sua existência, anda meio perdido e decide ficar por cá, simplesmente a fazer tempo. Deambula por uma cidade antiga e maltratada, filma-a e envia as imagens para a sua casa, na Suíça. Ao procurar um poiso onde permanecer, entra no British Bar e conhece Rosa, a empregada.

A conversa inicial entre os dois gira em volta de um relógio de parede, que na perspectiva de Paul funciona ao revés do normal. Para Rosa, ele funciona no sentido correto, o mundo é que funciona ao revés. Paul conclui então que se todos os relógios funcionassem em sentido oposto, o mundo funcionaria no sentido certo.

Corria o ano de 1983, e a narrativa que brevemente descrevemos pertence ao filme “A Cidade Branca” de Alan Tanner. O marinheiro era interpretado pelo actor Bruno Ganz e Rosa, a empregada do bar, pela actriz Teresa Madruga.

“A Cidade Branca” retrata o tempo de pausa na vida de um marinheiro, que vive em confronto consigo próprio e se lança numa viagem pelas ruas de Lisboa sem um destino certo, numa constante busca de si mesmo.
Paul e Rosa enamoram-se, mas no fim desentendem-se. Quando Paul já se foi embora, Rosa recorda-o e dirá “que andar ao contrário é uma forma como outras de medir o tempo”.

Aqui fica um excerto desse filme, uns meros dois minutos, nos quais começamos por ver as imagens de Lisboa filmadas por Paul. Filmando do interior de um elétrico, Paul capta a alma de uma cidade que atualmente já não existe. Vemos pela frente os carris que atravessam becos e vielas de Alfama, para logo em seguida nos depararmos com a calçada que sobe até à Graça. Depois mudamos de local e entramos no British Bar, onde decorre a cena acima descrita:



Um professor holandês acorda inexplicavelmente num quarto de hotel em Lisboa, e para mais com a ridícula sensação de estar morto. “E nessa manhã tinha matéria de reflexão de sobra”, diz-nos tal personagem, que de seguida nos irá contar a sua história. O seu nome é Herman Mussert.

É este o ponto de partida do livro de 1991 “A História seguinte” do grande escritor holandês Cees Nooteboom. O autor nasceu em 1933 e já venceu muitos dos grandes prémios literários internacionais, faltando-lhe o Nobel, para o qual ano após ano é tido como um candidato à vitória.

Herman Mussert é professor de grego e latim, mas sem saber como, desperta na capital portuguesa. A sua última lembrança foi a de ter adormecido na noite anterior na sua casa em Amsterdão, mas agora alguém lhe serve o café da manhã num hotel. Além disso, ele lembra-se de ter estado nesse mesmo quarto vinte anos antes, num encontro amoroso secreto com a esposa de um seu colega.

As descrições de Lisboa de Cees Nooteboom têm o seu quê de fantástico e surreal, mas mesmo assim sendo, conseguimos nelas entrever o Tejo e locais como o Cais de Sodré. Tal como o relógio do British Bar, também no romance o tempo anda para trás.

Apesar de nos anos 90 o livro ter sido editado em Portugal e ser quase um clássico da literatura europeia, hoje em dia é praticamente impossível encontrá-lo, excepto nalgum alfarrabista. No entanto, é bastante fácil encontrá-lo numa qualquer livraria de Lisboa em língua inglesa ou espanhola.


É curioso que, como o personagem do filme “A Cidade Branca”, também o personagem do livro de Nooteboom se dedica a refletir sobre a existência, fazendo uma retrospetiva da sua vida e respetivos dilemas.

Cees Nooteboom descreveu o personagem que criou como estando “impregnado duma variedade portuguesa de melancolia – que é a saudade”. Para Nooteboom, o seu personagem “era um quinto heterónimo de Pessoa, uma sombra holandesa, chinesa, portuguesa, espanhola, por detrás de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos (…) senhores dos anos vinte e trinta que deambulavam por Lisboa junto ao Tejo e falavam de Camões, Vasco da Gama e aguardente.”

Instado numa entrevista a explicar a razão pela qual o seu personagem veio precisamente acordar em Lisboa e não noutro local qualquer, Nooteboom disse o seguinte: “Toda esta cidade é despedida. No extremo da Europa, a última margem do primeiro mundo, o ponto onde o continente erodido se afunda lentamente no mar (...). Esta cidade não é deste tempo, aqui o passado guardou-se para o futuro.”


Phillip Winter é um sonoplasta alemão que acede ao pedido de um amigo, realizador de cinema, para se deslocar a Lisboa e o ajudar a acabar um filme. Winter viaja de carro da Alemanha para Lisboa, cá chegado não encontra o amigo mas descobre uma cidade fascinante e deambula pelas ruas de microfone na mão dedicando-se a gravar os seus sons.

No parágrafo acima resume-se “Lisbon Story”, um filme de Wim Wenders realizado em 1994. Winter, o principal personagem, capta sons de conversas entre crianças, de pombas a esvoaçar, de gaivotas, da água a correr no Tejo, do trânsito na Ponte 25 de Abril, dos eléctricos que percorrem Alfama e da música da banda Madredeus.

Ao longo de todo o filme há um som que Winter, que recorde-se é sonoplasta, não reconhece, não sabe o que é, nunca tinha ouvido, o de um amolador. Vindo do antigamente, o amolador é um comerciante ambulante que se desloca numa bicicleta e oferece os seus serviços de amolar, seja facas, tesouras ou outros instrumentos de corte. O amolador fazia-se anunciar tocando uma gaita de beiços, sendo esse o misterioso e mágico som que intriga Winter e do qual ele não consegue descortinar a origem.

Já em 1994, à data de “Lisbon Story”, um amolador era coisa rara, hoje mais o é, todavia, de vez em quando, como se por uns momentos os ponteiros dos relógios andassem para trás, ouve-se por certas ruas de Lisboa o som de uma gaita de beiços.

E por aqui terminamos, fica o trailer de “Lisbon Story”:

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