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De sábio e taralhouco, todos temos um pouco! Uns mais do que outros.

 

Soube-se recentemente que o espólio do Hospital Miguel Bombarda pode vir a ser classificado como sendo de Interesse Público. O dito hospital era uma instituição psiquiátrica em Lisboa, que funcionou desde o início do século XIX até ao começo do XXI. O espólio que aguarda classificação engloba cerca de cinco centenas de desenhos e pinturas, que foram realizados por alguns dos milhares de pacientes que no hospital longos tempos permaneceram internados.

 

Os clínicos que exerceram funções no Hospital Miguel Bombarda, incentivaram os doentes a desenhar e a pintar, usando a expressão artística como um método terapêutico. Existem igualmente fotografias, esculturas, poemas, versos, cartas e escritos diversos.

 

O arquivo do hospital está cheio de histórias para contar, como por exemplo, as de um doente chamado Jaime, que desenhava obsessivamente, ou as de Valentim, que era bailarino, ou ainda as de um espanhol que montava instalações surrealistas.

 

Desse espanhol sabe-se tão-somente que esteve internado, e imaginamos que um dia pediu a um fotógrafo para o retratar em tronco nu, com um chapéu de capitão de navio na cabeça, uma série de latas amachucadas aos pés, e rodeado de ramos de árvores. A foto data de 1913. Será porventura uma instalação surrealista o que vemos na fotografia?

 


A arte enquanto expressão de mundos interiores fez sempre parte da vida do hospital. Jaime, o doente que desenhava obsessivamente, é o mais conhecido artista a ter passado pelo Hospital Miguel Bombarda.

 

Dele conservam-se algumas dezenas de desenhos, pinturas e muitas cartas. O cineasta documental António Reis, chegou mesmo a realizar um filme sobre Jaime, data de 1974.

Para quem quiser perceber do que falamos, aqui fica o filme completo, uma mera meia hora, uma das mais autênticas obras da cinematografia nacional, deixa “O Pátio das Cantigas”, “A Canção de Lisboa” e outras coisas que tais a um canto.



Numa entrevista, o cineasta disse o seguinte: “O Jaime tinha a perfeita noção do espaço a ocupar pelo desenho ou pintura. Como estava limitado pelas pequenas dimensões do papel, muitas das suas "figuras-homens" têm os braços caídos ou levantados, enquanto as "figuras-animais" têm a cauda caída. Portanto, as atitudes do desenho estão sempre em função da delimitação do papel, para a qual ele achava sempre uma solução plástica genial. É possível que também estejam ligadas a uma estereotipia emocional obsessiva e a arquétipos. Quanto muito, as leis que presidem à sua arte são equivalentes às da criança ou dos povos primitivos."



Jaime, que era um camponês da Beira, andaria pelos seus 38 anos de idade quando foi internado, com esquizofrenia, no Hospital Miguel Bombarda. Todavia, foi apenas muitos anos depois, mais concretamente a partir dos 65 anos, que começou a pintar e a desenhar de forma obsessiva.

 

Jaime chegou inclusivamente a realizar uma exposição na Fundação Calouste Gulbenkian em 1980. Um crítico de arte descreveu o seu trabalho como sendo uma espécie de teia de aranha que encerra as figuras ao mesmo tempo que as compõe e onde as linhas se multiplicam, entram em pânico e finalmente impõem-se. Em resumo, os desenhos e pinturas de Jaime retratam espaços sem saída, inflexíveis, sendo sintomas de uma completa impotência, da total negação do ser.

 


Em 1938 chegou ao Hospital Miguel Bombarda o bailarino Valentim. Em 1968, o já extinto jornal Diário de Lisboa publicou nas suas páginas a trágica história do "bailarino português que julgava ser Nijinsky."

Dizia o autor do texto jornalístico lamentar o destino "daquele que deve ter sido o primeiro bailarino clássico português a internacionalizar-se e que hoje, após trinta anos de cativeiro, continua isolado do mundo, entre as paredes frias dum manicómio".

Ainda jovem, Valentim, fugiu de casa para ser bailarino. Esteve numa companhia de dança em Espanha, mas na guerra civil do país vizinho foi feito prisioneiro. Depois trabalhou como talhante até conseguir refugiar-se num convento vestido de freira.

 

Andou também por Itália e por França, mas acabou a dançar na Alemanha nazi, onde chegou a receber uma condecoração das mãos de Hitler, seu admirador declarado.

 


A guerra obrigou-o a voltar a Portugal, mas cá chegado, Valentim acreditava que era o próprio Nijinsky e vestia-se de mulher. A sua mãe acabou por decidir interná-lo no Hospital Miguel Bombarda. Segundo a mãe contou numa entrevista, Valentim "dava prodigiosos saltos, voando por cima de doentes e enfermeiros" e "organizava classes de dança para os doidos".

 

O bailarino Valentim viveria muitos anos no hospital. Toda a gente gostava dele, entretinha-se bordando, fazendo umas bonecas e pintando uns quadros naïf, que as pessoas lhe encomendavam.

 


Abaixo uma tela com dez metros que Valentim pintou para os utentes do hospital.

 


No Hospital Miguel Bombarda existe o chamado Pavilhão de Segurança, um edifício de 1896, que teve doentes a habitá-lo até ao ano 2000. Com um pátio a céu aberto, para benefício e bem-estar dos pacientes é um exemplo arquitectónico quase único, pois na Europa só há mais três imóveis deste género.


 

O Pavilhão de Segurança é também conhecido por Panóptico, sendo muito diferente das estruturas psiquiátricas típicas da época em que foi construído. É um dos raros exemplos de edifícios panópticos do mundo. Com uma enorme intensidade dramática, constitui pela sua originalidade e beleza, um edifício de extremo valor.

 

Caracteriza-se pela sua planta circular absolutamente simétrica. Ao centro uma torre de vigilância que permite olhar a toda a volta. Com uma linguagem arquitectónica formal vanguardista, antecipou a revolução modernista que chegaria à arquitetura nas décadas de 20 e 30 do século XX.

Terminamos por hoje com uma cena do clássico filme português de 1989, “Recordações da Casa Amarela” de João César Monteiro. A casa amarela, na verdade, era o nome por que era popularmente conhecido o Hospital Miguel Bombarda. Aqui fica então essa cena do filme em que os dois principais personagens, ambos internados, refletem filosoficamente sobre a vida em geral e a deles em particular.


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