Estamos num momento extremamente importante, assustador até, acho que chegámos ao clímax (primeira parte)
A frase que dá título a este texto, foi dita em direto por um repórter da RTP, no momento em que acompanhava os acontecimentos no Largo do Carmo, no dia 25 de abril de 1974. “Estamos num momento extremamente importante, assustador até, acho que chegámos ao clímax”, ouve-se logo no início de um filme recente, de 2022, que nos dá a ver imagens e nos põe a escutar sons da nossa história, da que vai desde 1965 até 2005.
Foi em 2022 que estreou nos cinemas, um filme que não arrastou multidões para as salas, mas que no entanto urgia ser visto e ouvido pelo maior número de portugueses possível. Nele conta-se a história de quatro décadas de Portugal, através da história da sua maior companhia de dança, o Ballet Gulbenkian.
É esta arrojada proposta que Marco Martins, o realizador, nos apresenta no seu documentário “Um corpo que dança”, onde acompanha o Ballet Gulbenkian (e o país) desde a sua fundação, em 1965, até à sua extinção, em 2005.
À partida poderá parecer estranho que quatro décadas da história de uma nação, possam ser contadas em paralelo com a história de uma companhia de dança, porém, quem for ver o filme, perceberá imediatamente a imensa pertinência e até a urgência dessa escolha.
Recorde-se que em 1965, ano em que se inicia esta narrativa, o país ainda vivia em ditadura, por consequência disso, os corpos não eram livres, os seus movimentos estavam condicionados.
O modo como as gentes se mexem, como andam na rua, os gestos que fazem, como se beijam, como dançam e se movimentam, não é o mesmo num país que viva em ditadura e num que viva em liberdade. Tal fica explícito num capítulo do filme intitulado “O Corpo de chumbo”.
Marco Martins contrapõe na sua película imagens de dançarinos dos tempos inaugurais do que viria a ser o Ballet Gulbenkian, com imagens das celebrações que o regime do Estado Novo fazia para assinalar o dia da raça.
A forma como em 1965 os corpos dos bailarinos se movimentam são um prenúncio de revolução e de liberdade, já os corpos dos participantes no dia da raça são de chumbo, pesados e estáticos, não são corpos que se expressem, que dancem livremente, são só corpos que ilustram a suposta grandeza da nação.
A história do corpo a partir do percurso da maior companhia de dança portuguesa, caminha a par da história política, económica e sociocultural nacional. “Um corpo que dança” mostra-nos novos corpos, que se transformam e se libertam do fascismo. Dá-nos igualmente a ver uma sociedade em mudança, que confiante se abre ao mundo.
A partir de imagens de arquivo inéditas e entrevistas, acompanhamos o trajeto de uma companhia extraordinária, através dos movimentos e das palavras dos seus protagonistas.
Numa dessas entrevistas, logo ao início, há alguém que diz assim: “A situação em Portugal era catastrófica.” O que com tal afirmação pretende dizer, é que não existia qualquer companhia de dança por cá, e muito menos com um repertório moderno. O mais que havia, era uma companhia estatal de dança, a Verde-gaio, cujas coreografias eram inspiradas no folclore nacional.
A companhia Verde-gaio era instrumento de propaganda, o objetivo que presidiu à sua formação foi a de criar bailados que evocassem temas portugueses, e que exaltassem os usos e costumes do bom e humilde povo lusitano.
No filme “Um corpo que dança”, ouvimos o mais célebre discurso de Salazar, aquele no qual ele diz “Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever.”
Esse famoso discurso, clama por certezas inabaláveis, dessas de dura pedra feitas, dessas que são estáticas, inertes e imóveis. No lado exactamente oposto, é onde se situa a dança moderna e, por consequência, o trabalho coreográfico que foi desenvolvido nesses anos pelo Ballet Gulbenkian.
Onde uns clamavam pelo imobilismo das certezas inquestionáveis, outros usavam os corpos para expressar novas formas de se moverem, de gesticularem, de andarem e de dançarem, o choque entre essas visões antagónicas do país era inevitável.
No filme há uma bailarina que diz assim: “Eu tive imensas pessoas que me deixaram de falar, quando souberam que eu tinha enveredado por esse caminho (pela dança).”
Esse choque entre o imobilismo e a inovação, fica também explícito numa outra passagem do filme, na qual o realizador apresenta imagens de uma coreografia do Ballet Gulbenkian, intercaladas com uma procissão em Fátima. São dois países distintos, os que nesse momento vemos. Por um lado, temos um país que procura novos movimentos, que se quer expressar, e cujos corpos apresentam gestos inovadores e inabituais. Por outro lado, temos corpos que ordenadamente vão em procissão repetindo os mesmos movimentos de sempre.
Contudo, de 1965 a 2005, o pais mudou, e para isso também terá contribuído o Ballet Gulbenkian, isso é explícito numa outra cena do filme, em que vemos um ensaio na fábrica da Robbialac em Sacavém, em 1975. O objetivo era que a arte não fosse apenas para elites, mas que chegasse ao povo.
Nessa cena, há um operário que intervém para colocar uma questão: “Eu pergunto se um espectáculo de Ballet pode ser levado até às camadas populares?”. A resposta que lhe dão é afirmativa. Num outro momento ouvimos Madalena Perdigão, a criadora do Ballet Gulbenkian, dizer numa entrevista, que “A Educação Artística não é uma utopia”.
De facto, a tradição da Gulbenkian de levar a arte e a cultura não nasceu com a companhia de Ballet, durante anos as bibliotecas itinerantes percorreram o país inteiro levando livros a quem não tinha forma de os obter. Calcula-se que as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian tenham emprestado mais de cinco milhões de livros, contribuindo desse modo para que um povo quase analfabeto lesse.
Tal como as bibliotecas itinerantes, também o Ballet Gulbenkian percorreu o país de lés a lés, levando a dança moderna a sítios onde ninguém em tempo algum a tinha visto. No filme vê-se o autocarro que transportava a companhia de dança a percorrer os mais recônditos lugares, onde nem estradas alcatroadas existiam, e que não raras vezes, os bailarinos eram recebidos com música tocada pela banda filarmónica local, que lhes vinha dar as boas-vindas.
A Gulbenkian ia pelos campos levar às populações cultura e arte, mas também não se eximia a entrar por dentro de fábricas e oficinas, como foi o caso em Maio de 75, quando a Orquestra da Gulbenkian dirigida pelo maestro António Vitorino de Almeida, deu um concerto nos estaleiros da Lisnave. Aqui fica a reportagem televisiva desse dia, que também aparece no filme “Um corpo que dança”:
No fundo, o filme de Marco Martins não se limita só a contar-nos a história dos corpos dos bailarinos da Gulbenkian, conta-nos também a história dos nossos corpos, os de toda a gente, como se a sua ambição fosse falar da mudança, da dinâmica, do alvoroço porque passou o corpo português desde 1965 até 2005.
Na noite de 24 de abril de 1974, o Teatro Rivoli no Porto estava cheio, no palco atuava o Ballet Gulbenkian, horas depois iniciava-se uma revolução. Talvez por uma qualquer espécie de alinhamento dos astros, os militares que fizeram a revolução designaram-se a si próprios como Movimento das Forças Armadas, e não Grupo das Forças Armadas ou outra coisa qualquer, sendo que, foi sempre de movimento, aquilo de que o Ballet Gulbenkian falou. Falou-nos sempre de movimentos que dançados, expressassem algo de essencial, falou-nos sempre de movimentos em que os corpos se libertam.
No filme “Um corpo que dança” ouvimos ainda o arquiteto Ruy Athoguia, aquando da construção da Fundação Gulbenkian, vemos o grande coreógrafo norte-americano Merce Cunningham ao tempo em que andou por Portugal, e ouvimos o testemunho de Maurice Béjart, outro enorme coreógrafo. Na ocasião, após um espectáculo em Lisboa, o regime português extraditou-o e deixou-o em Caia, uma aldeia espanhola mesmo à beira da fronteira.
Por fim, há ainda no filme uma cena de um outro filme, mais concretamente de “Os Verdes Anos”, película de 1963 de Paulo Rocha. Nessa cena, os dois personagens principais, Júlio e Ilda, dançam.
Os seus corpos movem-se lentamente, ensaiam passos, talvez alguns ainda desajeitados, todavia, também nessa cena sentimos movimentos que não se limitam a repetir os mesmos de sempre, como se fossem um primeiro prenúncio de uma revolução ainda longe de vir.
Dançam ao som de uma canção quase esquecida, cuja letra se iniciava assim:
Era o amor
Que chegava e partia
Estarmos os dois
Era um calor, que arrefecia
Sem antes nem depois
Era um segredo
Sem ninguém para ouvir
Eram enganos e era um medo
A morte a rir
Dos nossos verdes anos
O filme “Um corpo que dança” está disponível para ser visto na RTP Play, sendo que a estação televisiva o dividiu em dois episódios, o primeiro, de que hoje falámos, vai desde 1965 até finais da década de 70, momento em que os climaxes revolucionários tinham serenado, e em que o país elegeu um militar, o Ramalho Eanes, para presidente.
Na metade superior da foto abaixo vemo-lo numa posse inabitual para um político e militar, e também isso é um claro sintoma, que nesses tempos já a relação que tínhamos com o corpo era diferente da que existia no Estado Novo. Na metade inferior da foto, a imagem de um ensaio do Ballet Gulbenkian desse mesmo tempo.
Aqui fica o link para verem o primeiro episódio de “Um Corpo que dança”, no nosso próximo texto falaremos do segundo episódio:
Parte I -https://www.rtp.pt/play/palco/p12617/e838531/um-corpo-que-danca-ballet-gulbenkian-1965-2005
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