“O Pintor de Lisboa", é assim que se chama a Carlos Botelho, que em Lisboa nasceu, em Lisboa viveu e aí morreu. Veio ao mundo em 1899 no n.º 65 da Avenida da Liberdade, foi nesse prédio que ainda hoje lá está, o local onde cresceu. Estudou no Liceu Pedro Nunes e em 1922, era já então empregado bancário, casou-se com Beatriz dos Santos, uma professora primária que tinha à data da boda 19 anos.
Em 1930 Botelho deixa a Avenida e muda-se para uma casa na Mouraria, na Calçada Marquês de Tancos, não muito longe do Castelo de São Jorge. Era uma casa a que a sua mulher teve direito, por exercer a profissão de professora primária numa escola aí próxima. Era a casa que ambos habitavam, mas era simultaneamente o atelier onde o pintor trabalhava.
As vistas que via da janela dessa casa, bem como as dos miradouros e ruas de Alfama e da Mouraria, foram o seu tema de eleição durante a vida inteira. O casario antigo da cidade, assim como os seus becos e pequenos largos, são uma constante nas suas telas.
Carlos Botelho continuou a representar estas mesmas paisagens urbanas, até ao fim dos seus dias, isto apesar de a partir de 1955 ter ido viver para o 3.º andar do n.º 3 da Avenida João XXI, local onde viria a morrer em 1982, vítima de enfarte do miocárdio.
Carlos Botelho pinta a Costa do Castelo, a Sé, o Jardim de São Pedro de Alcântara, o Largo de São Cristóvão, o Tejo, a outra margem e as gaivotas, envoltos numa plácida luminosidade e num permanente silêncio, como se a cidade fosse despovoada e vivesse apenas para si própria, como que ensimesmada.
De algum modo, nas telas de Botelho é como se Lisboa vivesse suspensa num eterno domingo, parada num tempo onde nada acontece nem se espera que aconteça.
É consensual entre os historiadores de arte, que em termos nacionais, por essa época, a pintura de Carlos Botelho estava na vanguarda de tudo o que então por cá se fazia. A isso não será certamente alheio, o facto do pintor ter passado uma temporada em Paris e uma outra em Nova Iorque.
Abaixo uma pintura de Botelho em que retrata a Rua 53, em Manhattan, aquela onde se situa o Museum of Modern Art, também conhecido por MoMA.
Mesmo muitos dos que conhecem a obra de Carlos Botelho, desconhecem que para além de ter começado a ganhar a vida como empregado bancário, trabalhou também nas áreas da ilustração e da Banda Desenhada. Na verdade, Botelho detém até ao dia de hoje um record, o de ser o autor português que mais BD’s desenhou.
De modo oposto ao que sucede na sua obra pictórica, na qual a figura humana quase não aparece, ou se aparece é de um modo muito discreto, nas suas ilustrações e BD’s, a figura humana é o assunto central.
Com efeito, no seu trabalho não-pictórico, Botelho tipificou a sociedade da época criando uma série de figuras, que nomeou de acordo com as suas formas de ser e estar. Nesse contexto, temos um primeiro personagem, o “Parece-mal”, que ilustra o falso moralismo típico dos indivíduos de fato e gravata, indumentária que caracterizava os subservientes ao Estado Novo. Temos depois o “Escarre-cospe”, personagem que representa a Lisboa canalha e porca. Acrescente-se a esses, a “D. Encrenca”, uma senhora que só complica a vida dos outros, e que retrata o espírito intriguista do nosso povo. Passamos depois às “Arrepanhadas”, mulheres que não tendo muito dinheiro para ir ao cabeleireiro, ainda assim têm a sua vaidade e usam como penteado o cabelo todo arrepanhado. Por fim, temos o “Piu”, personagem representativo do típico macho lusitano, que dá ordens e larga sentenças, que os tem no sítio, e que por tais razões é amado pelas mulheres, que adoram um homem que as ponha na ordem.
Em resumo, se nas pinturas de Carlos Botelho, Lisboa nos aparece envolta numa certa melancolia e as figuras humanas são fugazes, quase meros esboços, nas suas BD’s e ilustrações, é ao contrário, a humanidade alfacinha aparece-nos bem visível em todo o seu miserável esplendor, mostrando-nos o seu mais risível aspeto.
No fundo, Botelho tinha o seu quê de humorista, citemos a esse propósito, uma passagem de uma sua entrevista: “A pessoa interessa-me no humorismo, no “portrait-sinthése”, porque aí eu sou livre. Pela caricatura nunca tive grande interesse. A caricatura é a anedota e não podemos passar o dia a contar anedotas. Com o humorismo é diferente: é a crítica a factos e situações. De resto, está perfeitamente integrado na minha maneira de ser, porque me interesso sobretudo pelos ambientes: na pintura procuro traduzir os ambientes das grandes cidades ou de populações; no humorismo é ainda o ambiente que me interessa: a crítica à sociedade.”
Aqui vemos o Botelho a desenhar para a revista humorística “Ecos da Semana”, onde começou a trabalhar em 1928, e por onde ficou durante vinte e dois anos.
Lisboa é a bem-amada, que Carlos Botelho pintará de todos os modos, vestida de todas as cores e em distintos momentos do dia. A sua Lisboa é a da solidão das ruas, a do silêncio das praças, a da plácida luz de uma tranquila tarde de domingo, mas também a do tom rosado de certos entardeceres, como o que podemos ver na pintura abaixo.
É possível vislumbrar na arte pictórica de Carlos Botelho o retrato da Lisboa atrasada e fechada do Estado Novo, mas se fosse só isso, a sua arte seria escassa, seria tão-somente uma forma de protesto e denúncia. Na realidade, a sua arte consiste em ele ter conseguido através da sua pintura, dar a ver a beleza da Lisboa eterna.
Uma coisa é certa, a nenhum artista seria fácil retratar o lado mais belo da alma de uma cidade, estando esta debaixo de um regime repressivo, todavia, foi isso mesmo que Carlos Botelho conseguiu fazer, pois a sua Lisboa, apesar de encerrada em si própria, ainda assim, tem algo de infinito, que vai muito para lá das ruas, das casas, das praças, dos becos e das vielas.
Maria Helena Vieira da Silva, mesmo sendo uma pintora muito distinta de Carlos Botelho, influenciou-o profundamente. Conheceram-se em Paris na Académie de la Grande Chaumière, onde ambos estudaram, sendo que, a partir desse momento, tiveram uma intensa e prolongada relação de amizade. Inclusive, a grande retrospectiva que em 1999 assinalou o centenário de nascimento do pintor, foi realizada no Museu Vieira da Silva, pois era certamente o local mais apropriado para tal.
Não por acaso, também são raras as figuras humanas nas obras de Vieira da Silva, no entanto, no seu entrelaçado de linhas, nas tessituras da sua pintura, conseguimos por vezes entrever figuras humanas, mesmo que porventura estejam apenas sugeridas ou esboçadas. Outro tanto, se pode dizer, embora de um modo diferente, das pinturas de Carlos Botelho, que um dia disse assim: “…o mais importante é a atmosfera, a ambiência, a transparência, são os planos… As pessoas estão lá em espirito”.
Tal como quando contemplamos uma pintura de Vieira da Silva, as linhas como que continuamente se metamorfoseiam fazendo-nos entrever sempre coisas distintas, também a Lisboa de Carlos Botelho se vai transformando perante o nosso olhar. As perspectivas, as cores e os volumes, apesar de estáticos, transportam-nos para uma espécie de realidade onírica, na qual o movimento é permanente.
Num primeiro momento estamos diante de um pano de fundo constituído por uma cidade suspensa no tempo, não desviando o olhar, começa então a surgir-nos uma Lisboa maravilhosa de sonho, que vai deixando entrever-se por entre o casario, as ruas e as vielas, e mais ao longe o rio.
É a essa Lisboa eterna, aquela que as hordas de turistas não conhecem, pois parecem ávidos de animação e sem tempo para pararem e se deterem a olhar. Contudo, não estará cada viajante que vem a Lisboa em busca da alma da cidade?
Se sim, talvez a possa tentar vislumbrar nos quadros de Carlos Botelho, isto ao invés de embarcarem em tours de tuk-tuk’s que prometem dar-lhes a ver a verdadeira Lisboa Secreta!
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