A avaliar pelos resultados das últimas eleições legislativas, uma percentagem considerável dos nossos concidadãos adoraria que Portugal fosse um lugar pacato e recatado, em que não houvesse ninguém vindo de fora, que trouxesse cá para dentro hábitos, práticas e costumes diferentes daqueles de sempre.
Pelos vistos, para uma parte significativa dos portugueses, o ideal de vida em comum que possuem, é aquele que se exalta numa velha cançoneta, na qual se rezava assim: “Na minha aldeia não há ódio, mas estimas, tem-se amor à vida alheia, todos são primos e primas, sem ambições, cada qual seu pão granjeia, e à noite há serões, à luz da candeia”.
Abaixo uma imagem do filme “Aldeia da Roupa Branca” de 1939.
Lisboa, a capital deste país, desde os tempos quinhentistas, sempre foi uma cidade cosmopolita, constantemente atravessada por gente vinda dos múltiplos continentes, contudo, houve uma época, a que decorreu durante grande parte do século XX, em que a quiseram transformar numa espécie de aldeia alegre.
Essa ideia de Lisboa como uma aldeola festiva, está por detrás de celebrações como os chamados santos populares. Só para que se saiba, as Marchas de Lisboa foram concebidas em 1932 pelo cineasta José Leitão de Barros, que também as organizou a partir desse ano e durante a década seguinte.
Em boa verdade, todas essas festarolas, arraiais e demais actividades ditas populares, foram muito bem pensadas e planeadas em gabinetes camarários e ministeriais e, só após todo esse trabalho prévio, é que surgiram “espontaneamente” pelos bairros, ruas e vielas de Lisboa.
José Leitão de Barros, o inventor das festividades populares de Lisboa, foi o realizador de películas como “A Severa”, “Maria do Mar”, “Mocidade Portuguesa” e “A Ponte Salazar”, todos filmes que são perfeitas ilustrações de uma certa ideia de Portugal e da sua capital.
Tais filmes rimam com comédias como “A Canção de Lisboa (1942)”, O Pátio das Cantigas (1942)” ou “O Costa do Castelo (1943)”. O propósito de todos esses filmes, assim como das festividades lisboetas ditas populares, seria que os bairros da capital se vissem a si próprios como aldeolas e rivalizassem entre si, com uma rivalidade igual e tão paroquial, como a que por esse país afora opunha (opõe?) a Aldeia-Velha à Aldeia-Nova, ou a Vila-de-Baixo à Vila-de-Cima.
O fito era que cada bairro lisboeta tivesse a sua marcha com o seu arquinho e balão, e também o seu arraial. Isto para que as gentes simples e humildes sentissem que as suas alegrias e arrelias eram todas vividas em comunidade, numa espécie de família alargada, da qual fazia parte toda a vizinhança. Ser bairrista era sentir o seu bairro como se fosse a sua aldeia.
No mais célebre filme de Leitão de Barros, “Maria Papoila” de 1937, o intuito explícito da película era mostrar um retrato do mundo urbano como um local de vícios e devaneios imorais, por contraponto à pureza do campo.
A personagem Maria Papoila, vinda da aldeia, vive na grande cidade, um drama equivalente ao de Júlio em “Os Verdes Anos (1963)”. Em ambos há um mesmo anseio dos personagens por conhecer mundo e por abandonar a pequenez da sua terra, porém, logo se deparam com um universo citadino que lhes aparece como estranho e incompreensível.
Segundo uma tese académica, “Maria Papoila” é uma lição dirigida às massas populares com o objectivo de ensinar que o cosmopolitismo e a sofisticação existentes nas Avenidas Novas e nos Estoris, iam pouco além de acessórios exteriores, falsos e fúteis, ou seja, que na verdade, mais valia ser rural, pobrete e alegrete.
Abaixo uma imagem de Maria Papoila antes de chegar à cidade, e portanto ainda inocente. Vemo-la no momento em que cantava a seguinte cantilena: “Sem saudades na lembrança, eu disse adeus à terrinha e mais ao lar. Levo na alma a luz da esperança e fé em Deus, parto a rir e a cantar. Despedi-me das ovelhas, do meu cão das casas velhas, do lugar onde nasci. Não me importo de ir à toa que o meu sonho é ver Lisboa mais o mar que eu nunca vi. Adeus ó terra, adeus linda serra de neve a brilhar, adeus aldeia, que eu levo na ideia não mais cá voltar.”
Maria Papoila rapidamente descobriu que Lisboa não era a aldeia, mas no entanto, a ideia da cidade como aldeola continua para muitos viva até aos dias de hoje. Todavia, nos últimos recentes anos, por via do turismo e da emigração, essa idealização foi um tanto ou quanto abalada, para profunda tristeza e revolta dos tantos (dos tontos) que a defendiam e defendem.
A nosso ver, não se perdeu nada com esse abalo, muito pelo contrário. Lisboa, como é próprio de uma verdadeira capital, é agora muito mais cosmopolita do que alguma vez foi nas últimas largas décadas, e assim é que está bem, pois é esse o seu real destino, ou seja, o de ser uma cidade do mundo e não uma aldeia grande ou um pátio das cantigas, com bairros por onde deambulam Marias Papoilas como se vivessem na província.
Um dos mais claros sintomas de que Lisboa, mesmo contra a vontade de muitos, se modernizou e se internacionalizou, são os seus estabelecimentos de restauração. Há três ou quatro décadas, éramos ainda tão provincianos, que ir jantar fora a um dos poucos restaurantes chineses que por cá existiam, era o equivalente a embarcar-se numa arriscada jornada rumo ao exótico Oriente.
Nesses tempos, quem já tinha comido uma travessa de Arroz Chao Chao estava num patamar de modernidade e de cosmopolitismo muito superior ao dos restantes cidadãos. Já quem porventura tivesse feito uma refeição num restaurante indiano era logo visto como alguém audaz e destemido, adquirindo imediatamente a fama de ser um autêntico aventureiro, com um estatuto praticamente igual ao do Indiana Jones.
Anos mais tarde, foi o Sushi que por cá esteve na berra, pois comer peixe cru era visto como sendo algo que revelava um elevado grau de sofisticação gastronómica, só próprio de gente muito viajada. Se eventualmente se conseguisse comer o Sushi com pauzinhos e não de garfo e faca, nesse caso então, ganhava-se logo a reputação de se ser pessoa de requinte e fineza, que com certeza frequentaria prestigiados restaurantes nas mais conceituadas capitais internacionais.
Era este o país meio pacóvio e provinciano que por cá havia, no entanto, hoje em dia, seja em Lisboa, seja noutros sítios cá da terra, é possível ver gente por todo o lado a comer comida mexicana, síria, grega, israelita, marroquina, nepalesa ou vietnamita a qualquer hora do dia ou da noite e ninguém se espanta com isso.
O que tal nos diz, é que Portugal e a sua capital tornaram-se realmente cosmopolitas, a despeito do descontentamento que isso provoca àqueles tantos (àqueles tontos) saudosistas, que anseiam pela vida simples e humilde das aldeias rurais de antigamente.
Para todos esses saudosistas, aqui vai uma notícia que os deixará de rastos. Kengo Kuma, arquitecto japonês que trabalha em todas as grandes metrópoles mundiais, foi o escolhido para renovar três aldeias tradicionais, que se situam perto da Lousã. Aqui fica a reportagem do Expresso a esse propósito:
Em resumo, o Portugal ancestral, rural, fechado em si mesmo e ignorante das gentes, costumes e práticas que há no vasto mundo, já nem nas mais recônditas aldeias do território nacional existe, porém, há gente que insiste nisso e canta melancolicamente “Ó tempo volta pra trás…”
Roterdão é uma cidade semelhante a Lisboa, isto no sentido em que ambas, há séculos e séculos, que são um cais de partida e chegada. Aproveitemos então essa afinidade entre essas duas cidades, para darmos um pulo até Roterdão, a segunda maior cidade holandesa.
Dizem-nos as notícias, que por lá inauguraram há uns quantos dias, um novo museu, o Fenix.
O Fenix é um museu dedicado às migrações, às dos holandeses, ou seja, a todos esses, que ao longo da extensa história de Roterdão, partiram do seu porto em busca de riqueza ou para escapar a perseguições políticas e religiosas e reconstruir a vida noutros lugares do mundo. Mas o museu é igualmente dedicado às migrações dos que vieram de paragens longínquas, para aportarem na próspera Roterdão, na esperança de aí terem uma existência melhor do que a que tinham nos seus países de origem.
O pressuposto do Fenix é que a humanidade move-se e sempre se moveu. Desde os tempos pré-históricos que os homens se movimentam e vão de lugar em lugar, foi desse modo que o planeta Terra foi povoado, foi assim que se fundaram impérios e se construíram civilizações, foi das movimentações humanas que nasceram nações. Foi igualmente dessa forma, que desde sempre gentes fugiram à miséria, à fome e à guerra ou procuraram alcançar riquezas que não existiam na sua terra natal.
As migrações não são uma novidade recente, são uma coisa tão velha como o mundo, ou, pelo menos, como a humanidade. Abaixo um pormenor da obra de Efrat Zehavi, “Where Are We Going”, de 2020, que faz parte da colecção do Fenix.
Na verdade, o Fenix não é um museu de carácter histórico, isto muito embora conte imensas histórias e nos fale da História, no entanto, a sua vocação maior é dar-nos a ver as migrações que desde sempre aconteceram pelo mundo afora, através da arte.
Um dos grandes “highlight” do Fenix é um labirinto de malas de viagem. Uma instalação interactiva composta por 2.000 malas doadas, que ilustra uma colecção de histórias pessoais, de países, de culturas e de comunidades de todo o mundo.
Enquanto caminhamos por esse labirinto, por vezes encontramos umas quantas com uma etiqueta amarela, essas dispõe de um dispositivo de escuta e são as que possuem uma história para nos contar ao ouvido.
Mas talvez o mais interessante que podemos encontrar nesse labirinto, seja precisamente as malas que não têm qualquer dispositivo, e que não sabemos donde vieram, como ali foram parar, ou a quem pertenciam.
Nesses casos, podemos então pormo-nos a imaginar que caminhos as trouxeram até ali, mais do que isso, podemos imaginar que somos tão humanos como os antigos donos dessas malas, e que, por consequência, tal como os nossos antepassados e os nossos contemporâneos, nos movemos e migramos daqui para ali e dali para aqui. Agora como sempre.
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