Os nossos melhores poetas e romancistas, os nossos grandes artistas conceptuais e consagrados cineastas, assim como os nossos mais profundos filósofos, jamais têm como tema das suas obras a escola. É um assunto que não lhes interessa. Nem a eles, nem praticamente a ninguém.
O dia a dia de uma qualquer escola deste país é um tópico que certamente não vai dar origem a nenhuma instalação artística de Pedro Cabrita Reis ou de Joana Vasconcelos, bem como não inspirará um livro de António Lobo Antunes ou Lídia Jorge, nem servirá de mote a um filme de Pedro Costa ou de João Canijo. Em síntese, como antes dissemos, por cá, a escola é um tema que não interessa quase a ninguém.
Surpreendentemente, não só não interessa a artistas, escritores e cineastas, como também não interessa a políticos candidatos a primeiro-ministro. Com efeito, no debate da passada semana entre os dois principais concorrentes ao cargo de chefe do governo, não houve uma única palavra dedicada à educação, nem uma sequer. Maior sinal do que esse, de que a escola não interessa mesmo a ninguém, é praticamente impossível.
Na verdade, a escola interessa só a uns quantos, nomeadamente, aos especialistas que com frequência vão a fóruns e a meetings onde se debate o futuro da educação.
Os ditos especialistas, muitos deles ex-ministros ou ex-secretários de estado da educação, circulam pelo país e aparecem em encontros patrocinados pelas nossas melhores e mais lucrativas empresas e, perante prestigiadas audiências, debitam sábias palavras sobre a escola vindoura e as medidas que urge tomar. Uma vez finalizado o meeting, vai cada um à sua vida e não se fala mais nisso até ao próximo fórum.
Aos especialistas interessa-lhes falar sobre a escola, mas não sobre as escolas reais, ou seja, as que efetivamente existem. Daquilo que eles falam é da escola em termos gerais e abstratos e das medidas a implementar, das reformas a fazer, de projetos e de planos e de muitas outras coisas mais desse género. Sobre os quotidianos escolares concretos e reais não falam, ou porque os conhecem mal, ou porque é coisa que não lhes interessa, nem a eles, nem a ninguém.
Neste entretanto, estreou na TVI a enésima variação do menino Tonecas, desta vez o programa chama-se Carlitos & Henriqueta e traz-nos as desventuras de dois dos piores alunos de uma escola primária. Carlitos e Henriqueta provocam grandes dores de cabeça à professora Adelaide, uma jovem docente cuja paciência é constantemente desafiada pelas travessuras dos dois. Trata-se de uma série supostamente cómica.
Não há nem nunca houve em escola alguma deste país, alunos como o menino Tonecas, nem como o Carlitos e a Henriqueta, todos eles e muitos outros semelhantes, são personagens inventados sem qualquer correspondência com a realidade. Personagens em idade escolar baseados em alunos reais, é coisa que não interessa a ninguém, pois que a escola, a que efetivamente existe, é coisa que não importa nem a especialistas, nem a ficcionistas.
Na verdade, a escola, a que verdadeiramente existe, interessa apenas a uns quantos que são muitos, ou seja, aos que nela estudam ou trabalham. A esses sim, interessa-lhes. Interessa-lhes tanto, que sabem que a escola em termos gerais e abstratos, essa de que se fala em meetings e fóruns, tal e qual como o Carlitos, a Henriqueta e o menino Tonecas, é coisa que não existe, é uma ficção, o que efetivamente existe são escolas reais e concretas.
Os especialistas proferem discursos dando uma ideia da escola como se ela fosse toda a mesma, mas a(s) escola(s) é, pelo contrário, muito diversa, tremendamente diversa. Um professor de um colégio privado no centro na capital que fizesse uma viagem a escolas públicas da periferia, situadas não muito longe da sua, ficaria certamente estupefacto com o que lá iria encontrar. O mesmo é verdade caso a viagem fosse em sentido contrário, ou seja, um professor habituado a lecionar em escolas públicas da periferia, pasmaria ao ver como é o dia a dia num colégio privado.
Repare-se que não estamos aqui a afirmar que um colégio privado é melhor que uma escola da periferia, nem estamos a afirmar o oposto, estamos sim a constatar que as duas são realidades completamente distintas.
Defender programas, matérias, procedimentos e pedagogias como se tudo isso pudesse ser uniformemente implementado independentemente da escola onde tal é feito, é pensar na escola como uma entidade geral e abstrata, e não nas escolas que realmente existem.
Existem fronteiras bastante visíveis que separam as escolas umas das outras no interior de qualquer cidade, na verdade, existem inclusivamente fronteiras bem definidas no interior de muitas escolas. As escolas, as concretas e reais, não são uniformes, muito pelo contrário, são muito diferentes.
No início deste texto falávamos de artistas, escritores, cineastas e filósofos, e de como esses, raramente, para não dizer nunca, usam a escola como tema das suas obras. É esse o caso em Portugal, mas não o é, por exemplo, em França.
Veja-se o caso da poeta Nathalie Quintane, uma consagrada escritora francesa e professora da escola pública, que no livro de 2021 Um hamster à l’école, nos relata em verso a sua experiência enquanto aluna e professora, ao longo de mais de trinta anos.
Adotando alternadamente o ponto de vista dos alunos, ou da aluna que foi, dos antigos alunos que todos somos, dos professores, da professora que é, dos seus colegas, dos professores de quem nos lembramos, e mais ocasionalmente dos pais dos alunos, Nathalie Quintane oferece-nos um retrato da instituição escolar, em toda a sua ambiguidade.
Escola é nos seus versos sinónimo de banalidade, de trivialidade, de frustração e, às vezes, de desespero, mas também um lugar de beleza e brilho. Em síntese, é a escola concreta e real que aparece nos seus versos.
O hamster é uma maneira da autora evocar a estranheza e a regularidade da vida quotidiana numa escola, e o absurdo e a tecnicidade das sucessivas reformas educacionais. É sobretudo uma forma de significar a repetição da rotina, a rapidez dos reflexos, o estupor do hábito, que impede de pensar, e arrasta professores, que tal e qual como um hamster são levados pelo movimento da sua roda, até ao ponto de não poderem mais parar, ou mesmo de terem que acelerar para não serem arremessados para longe.
Nathalie Quintane sublinha assim o absurdo deste círculo vicioso, deste movimento circular que não leva a lado nenhum, que é o seu próprio começo e o seu próprio fim, e que não tem sentido. Um movimento que ocupa, distrai, mas também abafa, e como tal impede a solidariedade, o encontro, porque torna impossível aquele momento de pausa, de êxtase, que é a disponibilidade para o outro.
Et mon passage dans la salle des profs, un
passage de hamster ? C’est en tant que hamster
que j’ai pu tenir aussi longtemps dans ce contexte
parce que je fais tourner très vite la roue et que je suis
extrêmement concentrée sur l’effet d’optique
que produit la vitesse au niveau des rayons, qui
ne sont alors plus qu’une couleur grise.
E a minha passagem pela sala dos professores, uma
passagem de hamster? É como um hamster
que fui capaz de resistir por tanto tempo neste contexto
porque giro a roda muito rápido e estou
extremamente focado no efeito óptico
que produz a velocidade ao nível dos raios, que
são então apenas uma cor cinzenta.
Na sua poesia Nathalie Quintane critica a instituição escolar, dizendo ser necessário inventar uma linguagem nova que não seja a da escola, pois essa é uma linguagem que sufoca e restringe, seja os textos, a leitura ou a criatividade.
Nathalie Quintane descreve os constrangimentos quase repressivos, quase punitivos, que a escola e as suas regras exercem sobre os seus membros, tanto professores como alunos, isto através da disciplina, da avaliação, da hierarquia, cada uma ao seu nível.
Algumas páginas do seu livro são dedicadas ao ensino da poesia nas escolas, que Quintane considera negligenciado ou mal ensinado. A autora termina com um convite à revolta, exaltando o poder da leitura, colocando-a fora da escola, num espaço pessoal e privado. Para conquistar a dimensão libertadora e emancipadora da literatura, é preciso saber “ler noutro lugar que não a escola ou a faculdade”.
É também preciso saber escrever noutro lugar que não a escola e, além disso, será que a escrita pode ser ensinada?
As escolhas da escrita de Quintane podem também ser interpretadas como uma forma de resistência: o uso do verso que quebra a prosa e perturba os ritmos, a eliminação da pontuação e a oralidade da voz narrativa fazem parte integrante do seu estilo. Cortar frases, romper associações quotidianas e reflexos sintácticos, é para ela uma forma de marcar a diferença e de libertar a criatividade.
Escrevendo um poema sobre o modo como ainda em aluna, na escola preparatória, já se sentia uma futura professora, como foram imensos os trabalhos e os exames porque passou, como sacrificou parte da juventude em estudos e de como teve que ultrapassar obstáculos e aguentar desaforos, Nathalie Quintane concluiu que tudo isso não levou a mais lado algum, do que a ser docente.
Eh bien, ce pressentiment que j’avais eu
d’rentrer dans un tunnel sans fin en allant en
prépa, c’était pas faux, parce que dans la
foulée je suis devenue prof.
Ce qui est complètement dingue quand on y pense
c’est que tout ce bazar, les nuits sans dormir
les devoirs de 8 heures, le prof qui te traite de cochon
et que t’es l’élite de la nation, les 2-3 ans à pas voir
le jour quand t’en as dix-huit dix-neuf, tout ça
que t’aies le concours ou pas, que tu deviennes
normalien-lienne ou pas, ça te mène jamais
qu’à être prof.
Ora bem, essa sensação que tive
de entrar num túnel sem fim, entrando
na preparatória, não estava errada, porque com esse
passo tornei-me imediatamente professora.
O que é uma loucura total quando se pensa nisso.
Toda essa confusão, as noites sem dormir
Trabalho de casa às 8 horas, um professor que te chama porca
e que diz que somos a elite da nação, os 2-3 anos para não se ver
o dia em que se faz dezoito, dezenove anos, tudo isso
passar no exame ou não, se nos tornamos
licenciados da École Normale Supérieure ou não, isso não nos leva a mais lado nenhum do que a ser professor.
Numa entrevista a um jornal francês, Nathalie Quintane reflectiu, não como especialista mas simplesmente como o professora e poeta, sobre o estado da educação no seu país: “O ensino não é assim tão nacional…Cada escola, ou seja, cada diretor, decide o que manter ou não. Nenhuma política escolar é igual à outra e, sempre que há uma mudança de diretor, as coisas mudam! Um bom diretor (com autoridade e justo, naturalmente!) alivia-nos de muito trabalho e ansiedade. Um mau diretor pode lançar uma escola num caos indescritível num piscar de olhos... A própria organização vertical das escolas que conheço, conduz a uma fragmentação total do corpo docente.”
Em resumo, diz-nos coisas que por cá, no espaço público, nunca se ouvem, o que se ouve são especialistas com ideias gerais e abstratas para a educação, e raramente alguém com ideias para escolas reais e concretas.
Terminamos com um retrato da professora e poeta Nathalie Quintane:
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