As fotografias olham para nós desse lugar distante que é o passado. Por mais recente que seja o passado, ele fica infinitamente longe. Tanto assim é, que mesmo que quiséssemos tão-somente regressar ao dia de ontem, jamais o conseguiríamos. No entanto, há uma excepção a essa dura lei, a saber, a fotografia.
Uma fotografia olha-nos desde o passado e restitui-nos o que já lá vai em nítidas imagens. Fá-lo de um modo absolutamente fulgurante e evidente, ou seja, de uma forma tal, que nem a mais clara e exacta das memórias alguma vez conseguiria.
A fotografia é uma espécie de fantasmagoria, pois o que vemos são imagens do passado, ou seja, do que já não existe. O que observamos numa foto são instantes retirados ao tempo, momentos que, como por magia, ficaram em suspenso para sempre.
Se pensarmos bem nisso, a fotografia não é uma coisa compreensível, dir-se-ia até que se assemelha à feitiçaria. Com efeito, como é possível que se consiga congelar para a eternidade um mero segundo? Como é crível que se possa fixar um tão fugaz instante? Se pensarmos bem nisso, parece impossível!
O tempo move-se continuamente, terá sido essa a vontade divina, no entanto, os homens quiseram contrariar os deuses e deter a permanente marcha do presente em direcção ao futuro, e por essa razão, inventaram a fotografia.
Cada fotografia é um triunfo dos homens sobre a perpétua marcha do tempo. Cada fotografia é um movimento que se detém para sempre e se fixa numa imagem.
Foi por estes dias inaugurada em Almada uma exposição intitulada “Venham mais cinco - O Olhar Estrangeiro sobre a Revolução Portuguesa 1974-1975”. Como se depreende pelo título da mostra, o que podemos ver na margem sul do Tejo são imagens do tempo de Abril, captadas por fotógrafos vindos de vários cantos do mundo.
Muitas dessas imagens nunca, ou quase nunca, por cá foram vistas. Existem em livros e em arquivos no estrangeiro, mas o que em Almada podemos contemplar é uma parte do nosso passado pouco conhecida.
Ao percorrermos a exposição, uma das coisas que mais nos chamou a atenção, foram imagens dos que à época eram crianças, que teriam até aos dez ou onze anos de idade, ou seja, os que actualmente terão por aí cinquenta e uns tantos ou sessenta e poucos.
Há cinco décadas, os adultos de então diziam que o 25 de Abril estava a ser feito em nome do futuro, sendo que, os primeiros a experimentarem esse tempo vindouro, seriam precisamente os que à data eram somente crianças.
Esse futuro que então se prometia, há de ter sido excelente para uns quantos, razoável para muitos e não grande coisa para uns outros. As promessas que o futuro faz nunca se cumprem para todos, desde tempos imemoriais que o futuro concretiza as suas promessas de um modo muito desigual.
Por assim ser, não vamos perder tempo com promessas realizadas, com as que ficaram por concretizar ou com as que se transformaram em desilusões, vamos sim aproveitar a magia da fotografia para viajarmos à nossa meninice, quando o futuro ainda estava por vir e para a rapaziada só havia presente.
Como eram as crianças desse tempo, essa gente que como nós, tem actualmente mais ou menos entre cinquenta e uns tantos e sessenta e uns poucos? Será que eram crianças muito distintas das actuais? Ou que, salvaguardando as devidas diferenças específicas de cada época, em essência eram tal e qual como são as de hoje?
Nessa nossa viagem ao passado, não nos vamos limitar às fotografias da mostra “Venham mais cinco - O Olhar Estrangeiro sobre a Revolução Portuguesa 1974-1975”, pois há outras imagens bastante significativas para o nosso propósito, como por exemplo esta abaixo de Eduardo Gageiro, o grande fotógrafo português que faleceu há uns dias.
Não fazemos a mais pequena ideia de quem são os três rapazes da imagem acima, mas vamos lá imaginar que o mais à esquerda se chama Zezinho, o do centro João e da direita Tó Manel.
Estava então o Tó Manel à janela de casa no terceiro andar, quando diz para a mãe:
- Ó mãe vou à rua que está a haver uma revolução e daqui de cima não se vê nada de jeito.
Ao que mãe lhe responde:
- Vai lá, mas toca à campainha da vizinha e leva o João contigo. Já agora de caminho, bate também à porta da tua tia para ires buscar o teu primo Zezinho, que ele também é capaz de gostar de ver uma revolução, que é coisa que não se vê todos os dias. Não te esqueças que o almoço é à uma, vê lá se não te atrasas que depois a papa fica fria.
Já na rua, Zezinho, João e Tó Manel aproximam-se de um soldado, que lhes diz assim:
- Ó rapaziada, que é que vêm para aqui fazer?
Ao que um deles responde, vimos ver a revolução. A isto o soldado diz-lhes:
- Então sentem-se na berma do passeio e estejam sossegados, não me chateiem que agora estou ocupado a derrubar a ditadura.
Provavelmente, nem os rapazes se chamam Zezinho, João e Tó Manel, nem os diálogos acima alguma vez existiram, todavia, não é totalmente inverosímil que efectivamente pudessem mesmo ter ocorrido, e já isto nos diz, que ser criança agora é coisa muito diferente do que o foi no passado.
Vejamos uma outra fotografia de um outro fotógrafo português, Luiz de Carvalho.
Olhando para a imagem, sentimos a mesma distância entre as crianças actuais e as daquela época que sentimos na foto anterior.
Hoje em dia, nenhum progenitor, por mais descuidado que fosse, lhe passaria pela cabeça deixar as suas crias à solta pela cidade. Mas, se eventualmente as deixasse, se porventura as visse ao lado de um soldado de arma empunhada ou penduradas num veiculo militar, teria imediatamente uma apoplexia.
“Lisbona, la notte è finita! La Rivoluzione dei Garofani”, é este o título de uma exposição de Paola Agosti, uma das mais importantes fotógrafas italianas do século XX, que esteve em Portugal, em abril e maio de 1974 e no verão de 1975.
A mostra percorreu várias cidades de Itália e algumas das imagens que dela fizeram parte, estão presentemente em Almada, na já referida exposição “Venham mais cinco - O Olhar Estrangeiro sobre a Revolução Portuguesa 1974-1975”.
Numa dessas imagens de Paola Agosti vê-se um gentil soldado oferecendo flores a uma menina, que graciosamente as recebe com uma bela pose e um sorriso espontâneo.
Que época tranquila e gentil era essa, em que soldados, assim do nada, ofereciam flores a uma criança? Era distinta da nossa, disso não há dúvidas.
Olhemos para mais uma fotografia, esta do brasileiro Sebastião Salgado (1944-2025).
Após os dias iniciais da revolução de abril, sucederam-se outros com manifestações, protestos, comícios e uns quantos desacatos.
Na foto abaixo vemos um desses momentos, no qual a sede de um jornal da época é atacada, tendo sido destruído tudo o que dentro dela existia. O certo é que o rapaz à frente na imagem está felicíssimo, com uma alegria incontida. Ou muito nos enganamos, ou os moços do tempo presente só têm tais júbilos em formatos digitais, quando eventualmente obtêm muitos likes nos seus perfis das redes sociais.
Vamos finalizar este texto com uma nova imagem de Sebastião Salgado, uma tirada em África, numa antiga colónia portuguesa, por ocasião da sua independência. Na parte superior da foto observam-se umas botas, pertencentes a um militar. Digamos que o dito está num palanque, onde numa cerimónia oficial se celebra o nascimento de uma nova nação, após encerrada a época colonial.
Na parte superior da foto fala-se de História com h maiúsculo. Já na parte inferior da mesma imagem, aquilo de que se fala é de histórias, e mais concretamente, de histórias de e para crianças. É nos intervalos onde existem fissuras, frechas, fendas e frinchas, que as crianças espreitam aberturas com que construir o futuro.
A fotografia, qualquer fotografia, é também uma fissura, uma frecha, uma fenda ou uma frincha. A fotografia, qualquer fotografia, é uma abertura no tempo que continuamente segue em frente. A fotografia, qualquer fotografia, faz um rasgo no presente que nunca se detém e permite-nos espreitar para o que outrora existiu.
Nesse contexto, era bom que as crianças de agora pudessem ir espreitar as crianças de dantes e verem como era, pois assim talvez sentissem em si a necessidade de fazerem uma revolução para poderem percorrer as ruas das cidades e escaparem à opressão dos ecrãs onde as mantêm presas.
Talvez espreitando a exposição “Venham mais cinco - O Olhar Estrangeiro sobre a Revolução Portuguesa 1974-1975”, as crianças de hoje tomassem consciência de que são permanente vigiadas e com tal rigor e assiduidade, que parecem estar subjugadas por uma qualquer polícia secreta.
E por fim, espreitando, talvez as crianças de hoje pudessem descobrir as alegrias escondidas da liberdade.
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