Quando chega o tempo quente, pelo Verão, as pequenas terras animam-se e organizam-se festas, feiras e romarias. Vem gente de fora, e há também quem regresse ao local onde nasceu e cresceu.
É isso o que se passa nas vilas e aldeias do interior do nosso país, mas é igualmente o mesmo que sucede noutro sítios, como por exemplo, na modesta cidade de Parkman, que fica lá para os confins do Midwest norte-americano.
Na fita “Deus sabe quanto amei”, quem regressa a Parkman após dezasseis anos de ausência é Dave Hirsh. Estamos em 1958, Dave Hirsh é um soldado desmobilizado, que torna, qual filho pródigo, à sua cidade, a que o viu crescer.
Carrega consigo na bagagem livros dos seus heróis, ou seja, dos grandes romancistas norte-americanos da primeira metade do século XX: Ernest Hemingway, John Steinbeck, William Faulkner e F. Scott Fitzgerald.
Traz um manuscrito muito velho e amarrotado, que presumimos desde início ser o resultado das suas tentativas para também ele escrever um grande romance. O que igualmente presumimos desde início, é que essas suas tentativas não têm sido muito bem sucedidas.
Dave Hirsh é interpretado por Frank Sinatra, que para além de cantor, foi durante um tempo actor.
João Bénard da Costa trabalhou durante décadas na Cinemateca, foi nomeado sub-director em 1980, tendo depois sido o director desde 1991 a 2009, ano da sua morte.
João Bénard da Costa foi portanto um funcionário público, contudo, tal não o impediu de ser quem em Portugal mais e melhor escreveu sobre filmes. Dava-se ao trabalho, de para cada fita apresentada na Cinemateca escrever um texto, que antes da sessão era disponibilizado a todos os espectadores. Um texto em que ele falava do filme que ia ser visto, mas não dando informações e dados técnicos e sim explicitando no que significava para si, a película a que se iria assistir.
Não raras vezes, dava-se ainda a um trabalho suplementar, a saber, o de aparecer no início de cada sessão e dizer a quem estava presente, as razões pelas quais valia a pena ver o filme a ser exibido logo de seguida.
Na verdade, Bénard da Costa era um homem de uma cultura imensa, mas era igualmente alguém com uma generosidade pedagógica sem par. Tinha como credo a frase de um poema de Sophia Mello Breyner, “Outros amarão as coisas que eu amei”.
E de facto, honra lhe seja feita, ele conseguiu efectivamente que outros amassem as coisas que ele amou, ensinou não poucos a ver cinema com olhos de ver, em síntese, foi um verdadeiro professor.
Talvez o credo de cada professor devesse ser esse, o do verso de Sophia, ou seja, tentar que outros amem as coisas amadas. João Bénard da Costa amava o cinema e ainda mais uns quantos filmes em específico, entre os quais se incluiu “Deus sabe quanto amei”, cujo título original é “Some came running”.
Relativamente a essa fita, João Bénard da Costa destaca um personagem em particular, Ginny, que é interpretada por Shirley MacLaine. Vejamos o que ele diz: “Centro deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema alguma vez inventou, Ginny é menina e moça perdida na vida e perdida na morte, no sentido em que também se diz mulher perdida, mulher da vida, tão belas expressões.”
Ginny, e citando novamente Bénard da Costa, “Metera-se, uma noite, num autocarro e atravessara centenas de quilómetros porque Sinatra, sentimental demais quando bebia demais, a convidou a segui-lo. Passada a bebedeira, na manhã da chegada a Parkman, ele já nem se lembrava dela. Mas lembrava-se ela e ficava, numa ida sem volta, apesar da nota de 50 dólares que Sinatra lhe metia à mão.”
Sinatra tentou livrar-se da moça por 50 dólares, só que Ginny não faz parte daquelas que cedem ou desistem quando vislumbram o que desejam. Por conseguinte, Ginny tudo fará para ficar com Sinatra.
Dave Hirsh (Sinatra) está apaixonado por uma professora de Parkman. É uma docente que leciona literatura a alunos, daquilo a que por cá chamamos o ensino secundário.
O que nós espectadores do filme imediatamente percebemos quando a vemos, é que a senhora professora é muito segura de si e do que diz aos alunos. Todavia, o que lhes diz são tão-somente clichés e lugares comuns próprios de um qualquer manual escolar ou enciclopédia.
Em síntese, a senhora professora dá a matéria com rigor, cumpre o programa à risca e está profundamente convencida de que faz uma grande coisa e desempenha exemplarmente a sua missão docente.
Quando a vemos, à professora de literatura, está ela na sala de aula a explicar à turma que as lendárias bebedeiras do escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), o excessivo consumo de estupefacientes do filósofo inglês Thomas Quincey (1785-1859) e a neurótica promiscuidade do poeta francês Charle Baudelaire (1821-1867) não os tornavam gente menor. “Eram grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas”, é o cliché com que termina a sua lição.
Não é difícil de perceber a quantidade de pretensão e de parvoíce que está contida na frase “Eram grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas”, ou melhor, é difícil mas apenas para quem sabe tudo e não percebe o significado de nada, como é caso da professora por quem Sinatra se apaixonou, que já agora, e a propósito, se chama Gwen.
Aqui fica uma foto dela, com o seu ar respeitável, puritano e perfeitamente composto, o ar de quem está segura de cumprir “by the book” todos os procedimentos estabelecidos.
Gwen só se solta uma vez, e ainda assim não muito. Solta-se quando Sinatra a toma nos braços e lhe solta o cabelo, que está sempre apanhado de forma impecável. Nesse o instante, o diálogo entre os dois é o seguinte:
Gwen: I wear my hair this way to please the school board. If you wanna flatter me, I've only one good feature: my mind. You'd be on safer ground.
Dave: Who wants to be on safer ground?
Gwen, a professora, sabe tudo e não percebe o significado de nada, Ginny, a mulher da vida, nada sabe e percebe o significado de tudo. Um dos momentos chave do filme é quando ambas se encontram.
É Ginny quem decide dirigir-se à escola para se encontrar com Gwen e esclarecer a situação. Frente a frente a mulher que sabe tudo e não percebe nada e a mulher que não sabe nada e percebe tudo.
Ginny está nervosa, fala de forma atabalhoada e amedrontada. O seu receio é que se porventura a professora gostar tanto de Sinatra, quanto Sinatra gosta dela, o seu sonho de amor terá sido em vão.
“I want him to have whatever he wants. Even if it means you instead of me”, diz Ginny. A professora é incapaz de a olhar sem incómodo, mantém o seu ar impecável e não perde nem por um segundo a compostura. Provavelmente, no seu entender, esta sua rival nada tem que a recomende.
Durante a conversa, Ginny diz precisamente isso de si própria, que nada tem, “not even a reputation”, acrescenta ainda. Um tanto ou quanto desdenhosamente, Gwen retorque “I am sure you have a reputation”. Vejamos como decorreu o encontro entre as duas:
Como se verifica pela expressão e pelas palavras da Professora Gwen, para ela o Dave já era, o que prova, caso tal fosse preciso, que a frase “Eram grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas”, foi só algo que ela disse da boca para fora, um mero lugar comum, cujo significado não está ao seu alcance.
Com efeito, o que vemos é que ela não aceita, nem isso lhe passa pela mente, que Dave tenha as suas fraquezas. Entre elas, para além da Ginny, contam-se outras, o jogo e a bebida.
Em certo sentido, Ginny, o jogo e a bebida estão associadas na vida de Dave, facto que Gwen jamais lhe perdoará, pois que ela é muito superior a tudo isso. Apesar do que diz aos seus alunos, “Eram grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas”, não tem qualquer compreensão nem pelas fraquezas alheias, nem pelas próprias, é uma mulher que preza acima de tudo a compostura. No fundo, Gwen estava disposta a apaixonar-se pelo Dave aspirante a grande escritor, mas apenas por esse, e nunca pelo outro, o Dave fraco.
Gwen é como pessoa, o mesmo que é como docente, ou seja, não é um personagem com uma enorme generosidade pedagógica, não sendo alguém que ama as coisas que outros hão de amar, pois é incapaz de sentir o seu significado. Gwen não ama, dá o programa.
No fim da história, o antigo namorado de Ginny, um gangster de segunda categoria, despeitado por ela o ter largado e ter partido com Dave de autocarro, aparece em Parkman. Tem como objectivo vingar-se.
Ao passearem por uma típica feira de Verão, dessas com carrosséis, barraquinhas de tiro e animação a valer, dão com o gangster que aponta uma arma em direcção a Dave. Dispara, mas Ginny corre e coloca-se entre as balas e Dave, sendo ela quem é mortalmente atingida com tiros nas costas.
Sinatra deita-lhe a cabeça na pirosa almofada, que a pedido de Ginny, ele lhe tinha oferecido. Almofada essa, que era a coisa de que ela mais gostava no mundo.
Diante deste trágico desenlace, não sabemos o que Dave pensa, no entanto sabemos, que ele sabe, que há quem por ele venha a correr sem hesitar um único segundo (some came running), e que há quem apenas o aceite caso ele corresponda ao modelo do bom aluno, o que é esforçado, que se se aplica na sua escrita, e que faz por superar as suas fraquezas.
Há um momento em que Dave diz isso mesmo a Gwen: “You're right, teacher. You're a hundred percent right. I've been a bad boy. I've been naughty. Matter of fact, I don't even belong in your class.”
Dave não corresponde ao modelo de Gwen, não é o protótipo de um grande homem, tal e qual como não o eram nem Edgar Allan Poe, nem Thomas Quincey, nem Charles Baudelaire. Gwen sabe que Dave não é um grande homem, não sabe é que Poe, Quincey e Baudelaire também não o eram, pois esses fazem parte do currículo e era para ela inimaginável, que o currículo incluísse homens fracos, ainda que enormes escritores. Na sua mente, no seu modo de raciocinar, o plano curricular só poderia contemplar “grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas”,
Citemos mais uma vez João Bénard da Costa: “…há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias…há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação.”
Gwen é a professora e mulher que procede por silogismos, o mesmo é dizer, por regras e raciocínios. Ginny é a mulher que se oferece em sacrifício, agindo assim conforme a delirante irracionalidade do amor.
Houve tempo para tudo e de repente já não há tempo para nada. Para Ginny o tempo cumpriu-se, morreu como viveu, oferecendo-se à vida e correndo atrás do seu destino. Gwen continuará a ser uma provinciana e puritana professora, indo sempre no passo certo, sem correrias, e de modo a cumprir o programa e dar a matéria no tempo previsto. Dave sabe agora que jamais será o bom aluno esforçado e cumpridor, e que o tempo para ser escritor findou.
Para terminar, aqui fica o trailer:
Em breve, teremos uma nova fita de Verão neste blog.
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