Gaspard não é um sedutor, na verdade é apenas um jovem frágil e inseguro. No entanto, sem que percebesse como, vê-se envolvido com três moças em simultâneo, não sabendo bem para que lado é que se há de virar.
Ainda para mais, todas as três o pressionam e insistem com ele para que faça uma escolha. Constata-se assim, que as moças não têm a menor piedade pelo seu frágil estado e pela indecisão em que o pobre do Gaspard se encontra. Coitado do rapaz.
É este o contexto de “Conto de Verão”, uma película de 1996 realizada por Éric Rohmer, que é a penúltima escolha desta nossa série de textos, que ao longo deste mês de Agosto dedicámos a fitas de Verão.
Abaixo à esquerda Gaspard e Margot, ao centro Gaspard e Solène, e à direita Gaspard e Léna.
Gaspard é estudante de matemática e toca guitarra nas horas vagas. Como tanta gente o faz durante o Verão, também ele foi passar as férias junto ao mar, e mais concretamente, a uma das muitas praias da Bretanha.
Gaspard não escolheu o local estival ao acaso, escolheu-o por ser nesse sítio que se encontra a linda Léna, moça por quem ele acredita estar apaixonado e que crê ser a sua namorada.
Sendo estudante de matemática, Gaspard deveria estar consciente que um sistema assente em crenças nem sempre resulta em contas certas. Mas é como já dissemos, o rapaz é frágil e inseguro, e é por isso que se vê envolvido com três raparigas ao mesmo tempo, facto que complica bastante as suas equações.
Na cena mais abaixo, Gaspard passeia-se pela costa bretã com Margot e fala-lhe acerca das suas inseguranças e fragilidades. Diz-lhe por exemplo, que se sente invisível e transparente, que vê os outros, mas que os outros não o vêem.
Margot é estudante de etnologia e intermitentemente empregada de mesa, exerce portanto duas actividades, uma académica e outra para ganhar uns trocos, que lhe permitem adquirir um vasto conhecimento da humanidade e das peculiaridades daqueles que a compõem. Será provavelmente por isso, que não fica muito convencida com os trejeitos existenciais de Gaspard.
“Tudo é fortuito, excepto o acaso”, é um dos motes de Éric Rohmer, o realizador de “Conto de Verão”. É uma frase gira, essa a de Rohmer. É uma daquelas frases que nos deixa a pensar.
Deixa-nos a pensar se porventura o que julgamos ter sucedido nas nossas vidas por um puro acaso, não terá antes obedecido a uma lei incogniscivel, que fez com que os astros se alinhassem, conforme um plano determinado por uma qualquer desconhecida entidade cósmica ou divina.
Deixa-nos igualmente a pensar, se o que nas nossas vidas julgamos ter sido planeado com um grande rigor matemático, não terá sido afinal algo de fortuito, ou seja, algo que sucedeu mais como fruto das circunstâncias e dos caprichos da fortuna, e menos como consequência de uma efectiva tomada de decisão autónoma e plenamente consciente.
Se as nossas decisões mais racionais e matemáticas estão condicionadas pelas circunstâncias, e por consequência disso, pelos inúmeros acasos que continuamente nos sucedem, então a conclusão lógica é que as nossas decisões, só são verdadeiramente nossas numa ínfima percentagem, pois o demais é tudo fortuito e fruto do contexto.
Por um outro lado, se aquilo que nos sucede e atribuímos ao acaso, estiver integrado num vasto plano universal, cujo sentido nós jamais conheceremos mas que ainda assim existe, então a conclusão lógica é a de que façamos o que fizermos, decidamos o que decidirmos, o resultado final não está nas nossas mãos, pois feitas as contas, ninguém escapa ao seu destino.
Por assim ser, a Gaspard basta-lhe estar presente, andar por aí, e se por acaso estiver no sítio certo à hora certa, as coisas certamente que se resolverão por si próprias conforme o seu destino.
Para Gaspard tudo será como tem de ser, com uma das três raparigas ficará, ou com as três, ou com nenhuma, ou com duas, em resumo, não se sabe, pois essas são contas complexas demais, até mesmo para um estudante de matemática.
Qual das três raparigas é afinal a musa de Gaspard, é portanto neste contexto uma questão despicienda, em última instância não é a ele que lhe cabe a decisão, mas sim ao destino, ou seja, a esse fenómeno a que alguns chamam acaso.
Vejamos um exemplo. Gaspard, sem mais nem porquê pensa em Léna, e nisto, assim do nada, dá-lhe para escrever uma canção. Porém, para a escrever, vem-lhe à mente uma outra moça, isso por se inspirar numas cantigas de pescadores e marinheiros, que somente conhece devido a por acaso ter acompanhado Margot nas pesquisas etnológicas pela costa da Bretanha. Por fim, e mais uma vez em resultado de algo fortuito, é a Solène que num impulso romântico oferece a dita canção, após ter escutado emocionado a miúda a cantarolar.
A canção escrita por Gaspard retrata uma rapariga que ama os ventos e as ondas, que navega ao sabor das marés, que tanto a podem levar até São Francisco como até Valparaiso, pelos vistos não é moça que faça muitas contas. Aqui fica a letra, seguida da sua interpretação:
Je suis une fille de corsaire
On m'appelle la flibustière
J'aime le vent, j'aime la houle
Je fends la mer comme la foule la foule la foule
Vite vite mon joli bateau
Il ne sera jamais trop tôt
Pour voguer vers San Francisco, en passant par Valparaiso
Et gagner les Aleoutiennes, en traversant les mers indiennes
Il faut que j'aille au bout du monde
Pour savoir si la terre est ronde
A narrativa da fita prossegue e Gaspard promete a cada uma das três raparigas ir com elas visitar uma ilha das redondezas, todavia, mostra-se incapaz de escolher qual delas o acompanhará. Era expectável que tal sucedesse, pois como já vimos Gaspard é um rapaz frágil, que vive num permanente estado de indecisão, e que aguarda que o acaso (o destino?), intervenha e resolva a situação.
A decisão é tanto mais complicada por quanto Margot, Solène e Léna correspondem a três tipos diferentes de mulher. Margot é do tipo das que mantém os pés assentes na terra, Solène é daquelas com alma de sedutora, com “quelque chose” de sereia, e Léna é a mulher ideal, do tipo inatingível, que vai e vêm com as marés.
Dito isto, não é admirar que Gaspard ande meio perdido, sem saber quem levar no passeio à ilha. Aqui vemos na foto abaixo, frágil e indeciso.
A história continua, Léna zanga-se e vai-se embora furiosa. Neste entretanto, Solène pressiona Gaspard, coisa que o cansa, que o desgasta e desagrada. A opção é portanto Margot, com quem ele se tem passeado e perdido em extensas conversas.
Gaspard faz as contas, usa os seus conhecimentos matemáticos, e percebe que a relação que tem com Margot é a mais afetuosa e interessante das três. O passeio à ilha fica assim combinado, a decisão foi enfim tomada.
Mas nisto tudo se complica, Léna liga para Gaspard, pede-lhes desculpas por se ter exaltado e disponibiliza-se para o tal passeio à ilha. Ele hesita no que lhe dizer, e o passeio fica combinado. Sólene também lhe telefona, comprometendo-se com a mesma viagem e desligando subitamente, antes que Gaspard lhe pudesse dizer fosse o que fosse. Gaspard enfrenta um grande problema, combinou com as três moças, que as levaria à ilha.
Mas eis que o acaso (o destino?) intervém. Um colega de Gaspard telefona-lhe para o informar que tem de regressar já de férias, uma vez que surgiu uma oportunidade imperdível. A oferta é boa demais para que Gaspard a possa recusar e ele decide ir-se embora, ficando assim todos os seus problemas com as três raparigas instantaneamente resolvidos.
Antes de ir, Gaspard pede a Margot que se encontre consigo no cais de partida para se despedirem. Margot conta então a Gaspard que tem um namorado, que em breve virá ter com ela.
Gaspard fica surpreendido, de algum modo estava convencido que Margot sempre ali estaria à sua espera. Sem grande convicção, fazem vagos planos para se reencontrarem num improvável futuro.
Mesmo no fim, Gaspard diz-lhe “Je n’oublierai jamais nos promenades”, Margot diz-lhe o mesmo. Há um último beijo e Gaspard parte enquanto por uns instantes Margot permanece no cais acenando. Depois também ela vai à sua vida.
Amanhã, cá estaremos para uma última fita de Verão, aqui, neste blog.
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