Nesta época do ano, há que voltar à realidade, pois as férias findam. Há por isso muito quem se lamente e pense, que deveria ser possível prolongar o tempo de lazer indefinidamente. No entanto, tal é impossível.
Terminamos hoje, último dia de Agosto, esta nossa série de textos dedicados às fitas de Verão. Findamos com “Chronique d'un été”, uma película realizada em 1961 por Jean Rouch e Edgar Morin. Uma fita realmente impossível, mas que na realidade foi possível.
Não há nada melhor para nos trazer um pouco de felicidade no fim das férias, do que um filme simultaneamente possível e impossível, e ainda para mais, um realizado em conjunto por um etnólogo, Jean Rouch, e por um antropólogo, sociólogo e filósofo, Edgar Morin.
Abaixo na imagem, os dois todos contentes da vida, a discutirem como fazerem a sua fita.
Em boa verdade tiveram muito que discutir, sendo que essas discussões foram filmadas e integram o próprio filme. Logo a primeira das discussões, era se o filme seria ou não fazível. Tinham portanto dúvidas, relativamente ao facto de se o filme que ambos estavam a fazer, poderia ou não estar a ser feito.
É uma dúvida legítima, que como é evidente, nos assalta a todos em determinados momentos. Nós próprios, neste preciso instante, temos a dúvida se este texto que estamos a escrever pode ou não ser escrito. Vamos partir do princípio que sim, e sigamos em frente.
As dúvidas de Morin e Rouch não eram de cariz prático ou material, claro que não, eram sim dúvidas de carácter etnológico, antropológico, sociológico e até filosófico. Eram portanto dúvidas de monta.
Saliente-se que Edgar Morin e Jean Rouch não tinham qualquer plano traçado, nem qualquer argumento para seguirem, a única coisa que sabiam, era que queriam filmar conversas entre pessoas comuns, e ir para a rua perguntar a quem passa se é ou não feliz.
Aqui ficam dois minutos de um vídeo, em que se explica em linhas gerais, no que consistiu essa aventura de Verão de Rouch e Morin:
Jean Rouch e Edgar Morin inventaram o cinéma-vérité, cujo objectivo é filmar a realidade tal e qual como ela se nos apresenta, e isto sem utilizar qualquer artifício artístico ou técnico.
Jean Rouch e Edgar Morin não queriam de forma alguma, que o seu filme tivesse algo de encenado, todavia, deparavam-se com um problema, que era o seguinte: será que quando uma pessoa está diante de uma câmera, age e fala da mesma forma que quando a câmera não está presente?
Será que quando temos uma câmera a apontar para nós, não começamos todos a agir e a falar de forma diferente do que o fazemos na realidade, ainda que o façamos de um modo inconsciente?
Dir-se-ia que a resposta a esta questão é sim, que com uma câmera pela frente, perdemos imediatamente, e mesmo que involuntariamente, a naturalidade e a espontaneidade com que agimos e falamos quotidianamente.
Dito isto, levanta-se então uma magna questão, será porventura a realidade realista? Não é uma pergunta à qual seja fácil responder, mas nós, quem aqui vos escreve, temos tendência para acreditar que a realidade é realista, no entanto, isso não impede que tenhamos sérias dúvidas que assim seja.
Enfim, não temos a certeza absoluta, talvez a realidade nem sempre seja realista, mas ainda assim, a realidade é bem capaz de ser realista na maior parte das vezes. Ou não, sabe-se lá.
Independentemente disso, a realidade é que com uma câmera a realidade se transforma, transfigura-se. Uma câmera não é um elemento neutro e passivo. Só pela sua mera presença, uma câmera está logo a intervir nas imagens da realidade que capta.
Vejamos um excerto de “Crónica de um Verão” em que isso é perfeitamente explícito. Duas raparigas andam pelas ruas de Paris, a perguntar a quem passa se é ou não feliz. A forma como as gentes reagem à câmera, é prova mais do evidente, que esta não é um elemento passivo e que a sua presença muda a realidade que tem por diante.
Há quem se desvie, há quem fuja, há quem se lamente, há quem diga que sim, que é feliz, e há ainda quem se refira a Descartes. Em resumo, vendo as imagens, ficamos com a nítida sensação, de que a realidade não é na verdade lá muito realista.
Façamos uma viagem no tempo, deixemos o ano de “Crónica de um Verão”, o de 1961, e viajemos até ao século XXI, digamos até ao ano de 2025. Tendo nós vindo de 1961, ano em que na realidade ainda nem éramos nascidos, em 2025 já não se nos põe a questão se a realidade é ou não realista. Olhamos e vemos que agora todos parecem acreditar que as imagens captadas pelas câmeras, substituem a própria realidade.
Vai-se a um concerto, visita-se um monumento, sobe-se uma montanha ou entra-se num museu, e todos se apressam imediatamente a captar uma imagem. Olhar e ver o real já não são actividades importantes, pois a realidade está pelas ruas da amargura, o que agora na realidade interessa são as imagens.
Se Jean Rouch e Edgar Morin tivessem viajado connosco desde 1961 até 2025, nem iriam acreditar no que viam. Estavam eles com tantos problemas etnológicos, antropológicos, sociológicos e até filosóficos, e o que temos é isto.
Será que faria sentido, actualmente, ir para a rua perguntar às gentes, se são ou não felizes? Talvez não, provavelmente era melhor irmos ver se são ou não felizes nos seus perfis das redes sociais. Os que tiverem muitos likes é porque o são, e quem não os tiver, é certamente um infeliz.
Olhamos em redor e seja para os ecrãs de cinema, para os das televisões ou para os dos computadores, dos tablet’s e dos smartphones, o que por todo o lado vemos é um imenso vendaval de imagens.
Se formos espreitar as redes sociais, verificamos que até amigos, vizinhos e conhecidos, se dedicam a produzir e a publicar imagens com as coisas que fazem no seu dia a dia.
Mesmo que o que na realidade façam, seja tão-somente ao almoço comerem bacalhau com batatas a murro, ainda assim anunciam-no ao mundo com uma imagem.
Por exemplo, um tal Khabane Lame, fez um dos vídeos mais vistos na história do Tik-Tok, um que conta cerca de 40 milhões de visualizações. E o que faz o rapaz? Pura e simplesmente descasca uma banana. Espectacular, é o que imediatamente exclamamos, quando ao fim de uns quantos segundos, vemos a banana completamente descascada. É com certeza, uma imagem que nos fazia falta ver.
Dantes, existiam uns seres secantes, que insistiam em que víssemos as suas fotografias de férias. Pior do que isso, eram uns seres ainda mais secantes, que se dedicavam durante o Verão a fazer slides com imagens dos seus passeios, refeições e idas a banhos. Tudo isso pertence a um outro tempo, um em que a maior parte das pessoas ainda sabia a diferença que existe entre a realidade e as imagens.
Sabiam por exemplo, que alguém podia possuir felizes imagens das suas férias, mas que lá por causa disso não deixava de ser na realidade alguém chato e secante. Hoje em dia, parece que já não é assim, a imagem de felicidade substituiu a realidade.
Feitas as contas, é por todas estas razões que o melhor divertimento para o fim de Agosto, é ver o filme “Crónica de um Verão”. Aqui fica mais abaixo, um vídeo, onde se faz uma profunda, ainda que breve, análise sobre a relação existente entre as imagens e a realidade.
No fim de “Crónica do Verão”, e igualmente no final deste vídeo, as gentes comuns que aparecem na fita reflectem sobre o paradoxo que resulta de se tentar captar numa película a realidade.
São gentes simples, trabalhadores, estudantes, donas de casa e operários, mas todos têm consciência de que a presença de uma câmara muda a realidade que capta. Em síntese, todos sabem que o cinéma-vérité que Rouch e Morin queriam fazer, é impossível de ser feito. Por consequência disso, “Crónica de um Verão” é um filme na realidade impossível, mas que na realidade foi possível.
E pronto, chegámos ao fim desta nossa série de textos, ‘Neste verão, querem lá ver que há fitas”. A partir de agora os temas serão outros, mas não sabemos quais, não temos planos traçados nem argumentos que seguir.




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