A questão a que nos propomos responder em vários textos, sendo este o primeiro, não é despropositada. Em boa verdade, já foi abordada por estudiosos e filósofos antes de nós. Mesmo que não venhamos dizer nada de novo, ainda assim, vamos tentar dar uma resposta à pergunta que formulámos.
A imagem que ilustra este texto é de um doente mental, que algures no tempo esteve internado no antigo Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda em Lisboa. São milhares as fotografias existentes em arquivo, retratando pacientes, que ao longo de mais de um século, permaneceram asilados (e em muitos casos para sempre) no que era designado como sendo o manicómio.
O Miguel Bombarda foi o primeiro hospital psiquiátrico português, começou por se chamar Hospital de Alienados de Portugal, tendo aberto as suas portas em 1848 e fechou-as a 5 de Julho de 2011, não tendo sido portanto assim há muito tempo que encerrou.
Abaixo uma imagem do fotógrafo Eduardo Gageiro, onde se vê um internado no Miguel Bombarda, encerrado na sua cela, a espreitar pelo óculo da porta para o exterior.
Antes deste hospital ter sido erguido, os doentes mentais de então estavam num sítio à parte no Hospital Real de São José e Annexos, que "era uma arrecadação de loucos, um armazém onde as condições eram tão más que morriam dezenas de doentes", diz-nos um relatório médico da época, que continua a descrever o local do seguinte modo: "doidas nuas e desgrenhadas, encerradas em um cubículo escuro e infecto, onde mal podem obter um feixe de palha em que possam revolver-se".
Mas mesmo após a inauguração do novo hospital, as condições não melhoraram grandemente, pois segundo um testemunho médico dessa época era “um depósito de doentes mantidos arredados dos olhares sociais e dos seus supostos perigos. O corpo clínico durante o século XIX eram dois médicos para 500 e tal doentes".
Na verdade, o objectivo primeiro do hospital era encarcerar todos os que por algum motivo incomodassem. Percorrendo os ficheiros clínicos, verifica-se que a esmagadora maioria dos doentes são classificados como indigentes. Os pobres, aqueles a quem actualmente chamamos sem-abrigo, eram recolhidos na rua pela polícia e logo de seguida internados no Miguel Bombarda.
No entanto, também pessoas vindas de meios favorecidos, iam parar ao manicómio, bastava para tanto terem algum comportamento divergente. Das fichas de internamento constam um ou outro médico e enfermeiro e há quadros médios, enviados pelas respectivas famílias, que por isto ou por aquilo, os queriam ter bem longe da vista.
O Bombarda representa um paradigma, segundo o qual a sociedade, as famílias, as gentes de bem e tementes a Deus, têm de ser protegida dos divergentes, dos doentes, dos indigentes e dos alienados, por consequência disso, o que há fazer é encarcerá-los, pois livres são um perigo.
A foto acima é de Ângelo de Lima (1872-1921), que foi um grande pintor e poeta, tendo sido um homem perigosíssimo, como já veremos. Do seu currículo como aluno consta uma expulsão do Colégio Militar por ser repetente. Frequenta depois no Porto a Academia de Belas-Artes, a que, segundo ele, "gazeteava notavelmente".
Depois de andar ao deus-dará por sítios como Moçambique e o Algarve, em 1900 muda-se para Lisboa vivendo "quase sem ter que fazer, com alguma irregularidade, embora melhor, com umas quatro ou cinco, se tanto, maiores estroinices”.
Ângelo de Lima, conjuntamente com Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Amadeo de Souza-Cardoso fez parte da chamada Geração Orpheu, aquela que fundou o modernismo português, só que, o fez a partir do manicómio, ou melhor dizendo, de dentro do Hospital Miguel Bombarda.
Como é que Ângelo de Lima, o poeta e pintor, acabou internado durante vinte anos e até ao fim da sua vida no Miguel Bombarda? Pelas peculiaridades da sua personalidade e, sobretudo, por uma estroinice, provocou um escândalo no Teatro Dona Amélia, hoje São Luiz, em Dezembro de 1901.
Durante um espectáculo proferiu uma obscenidade, disse alto e em bom som, “pôrra”. Foi levado a um juiz perante o qual negou o carácter obsceno da palavra. O juiz ordenou uma perícia psiquiátrica, cujo veredicto foi que Ângelo de Lima era um “alienado” e sofria de “loucura moral”.
Num artigo publicado um ano depois no jornal O Dia, Ângelo de Lima é descrito como uma figura triste, mergulhada numa profunda depressão. Viveu internado durante duas décadas e acabaria por morrer no hospital. Abaixo um desenho de Ângelo de Lima.
O mais famoso poema do supostamente louco Ângelo de Lima, um “dos maiores da língua portuguesa” no dizer de Fernando Pessoa, é o que abaixo se segue:
Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...
Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.
Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria
Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.
Foi o próprio Miguel Bombarda, o médico que fez o relatório de internamento de Ângelo de Lima, e nele consta o seguinte: “Grande altura (1,70 m). Corpo e membros 'elancés'. Dedos muito longos, encurvados. Orelhas grandes, mal formadas, de lóbulo muito curto em ponta aderente. Crânio muito alto; depressão na glabela, convexidade frontal muito pronunciada. Face muito longa. Campo visual normal. Cavidade bucal muito espaçosa. Dentes cariados, alguns mal implantados. Queixo recuado".
Esta descrição coincide com uma fase da psiquiatria em que se acreditava que nos corpos se revelavam as doenças mentais, como se existissem corpos desviantes. Por tal razão, a fotografia era um importante auxiliar do diagnóstico, pois permitia realizar uma análise detalhada e comparativa, daqueles a quem se chama os doidos.
Segundo as crenças científicas de então, entre os doentes mentais teríamos pessoas de tipo pícnico (pequenos e gordos) que nas suas manifestações patológicas tenderiam a ser maníaco-depressivos, as de tipo leptossómico (magras) que teriam predisposição para esquizofrenia, e as atléticas (musculosas) que seriam dadas à epilepsia.
Aqui fica mais uma imagem do arquivo histórico do Hospital Miguel Bombarda, esta talvez seja a mais diferente de todas elas. Ao contrário das restantes, esta não terá certamente sido usada como auxiliar do diagnóstico.
A imagem será provavelmente da segunda década do século XX, mas a sua origem é misteriosa. Do homem retratado sabemos somente que esteve internado no Miguel Bombarda. Crê-se que terá pedido a alguém para o fotografar em tronco nu, envergando um chapéu de capitão de navio, acompanhado por uma série de latas a seus pés, envolto em ramos de árvores e com faixas em seu redor repetindo a palavra: Razon.
Muitas da fotos tiradas no momento de admissão dos doentes, serviam, como já antes dissemos, para realizar o diagnóstico, altura em que os "alienados" eram classificados como "melancólicos" e "furiosos", sendo essa avaliação feita de acordo com as suas características físicas.
Caso fossem classificados como “furiosos”, o seu destino era um sítio específico do Hospital Miguel Bombarda, a saber, o Pavilhão de Segurança, que também é conhecido como o Panóptico.
O termo panóptico descreve um edifício circular com uma torre de vigia ao centro. Este modelo arquitetónico foi idealizado por Jeremy Bentham no século XVIII e permite a um único vigilante observar todos os detidos nas celas dispostas em redor, sem que estes saibam se estão ou não a ser vistos, levando-os assim a adoptar o comportamento desejado por meio da vigilância constante e do receio dos presos de estarem a ser observados.
No mundo inteiro existem poucos panópticos, há-os na Holanda, nas penitenciárias de Breda, Arnhem e Haarlem, em França, na penitenciária da cidade de Autun, nos Estados Unidos, na penitenciária de Statesville no Ilinois, e em Cuba na penitenciária da Ilha da Juventude.
Aqui fica o primeiro desenho arquitetónico para um panóptico, data de 1791.

No panóptico do Hospital Miguel Bombarda, já não existe a torre de vigia, no entanto, o restante edifício permanece e é visitável. Quem o visitou ainda antes deste ser visitável, ou seja, quando ainda estava em funcionamento, foi o cineasta português João César Monteiro.
Corria o ano de 1989 quando o realizador escolheu o Hospital Miguel Bombarda e o panóptico, como cenários para algumas das cenas do seu célebre filme “Recordação da Casa Amarela”.
Mas casa amarela porquê? Na verdade, João César Monteiro usou nesse filme, e noutros, referências culturais muito diversas, como por exemplo, o músico renascentista Monteverdi, o romântico Schubert, o português Quim Barreiros, o Benfica e ainda o escritor russo Dostoyevsky.
É precisamente Dostoyevsky a referência neste caso, como mesmo quem não leu muito, certamente saberá. Em dado momento, Dostoyevsky escreveu o seguinte: “Na minha terra chamavam casa amarela à casa onde guardavam os presos. Por vezes, quando brincávamos na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para as grades escuras e silenciosas das janelas altas e, com o coração apertado,
balbuciávamos: Coitadinhos…”.
Terminamos por agora, precisamente com uma cena do filme “Recordação da Casa Amarela”. Nela, João César Monteiro, que para além de ser o realizador da película também interpreta o personagem principal, tem uma profunda conversa filosófica com o personagem interpretado pelo grande Luís Miguel Cintra.
A cena passa-se no panóptico, e no meio da conversa, João César Monteiro põe-se a correr no dito, fazendo uma volta inteira no interior do edifício. Aparentemente, tal procedimento ajuda-o a organizar os seus pensamentos.
Depois César Monteiro faz planos para sair do hospício e, por fim, vêmo-lo qual Nosferatu, o vampiro, a sair envolto em fumo de um cano de esgoto, numa rua de Lisboa. Tudo isto, dura uns bons sete minutos.
Nos próximos textos voltaremos ao Hospital Miguel Bombarda, acerca do qual ainda temos muito a dizer, e depois disso falaremos então de como essa instituição se relaciona com a escola.






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