A imagem com que iniciamos este texto, é de uma obra
de Julião Sarmento. Vemos um homem e uma mulher, sentados no interior de uma
casa. Não estão fisicamente muito distantes um do outro, mas entre ambos parece
não existir qualquer vida, desejo ou interesse comum.
Dir-se-ia que estes dois seres estão sós, que os dias
passam sempre iguais, e que nada mais parece fazer-lhes sentido ou ter
significado. Como que esperam um acontecimento, mas nada acontece.
“A Casa em Chamas” é um poema triste,
que nos narra a solidão existencial de um homem comum, que chegando a casa após
mais um dia de trabalho, encontra tudo como antes. Tal e qual como certamente
encontrará daí a um ano e nos outros mais que se hão-de seguir. Por assim ser,
a sensação que tem é de quão repetitiva e absurda é a vida.
O referido poema é de
Luis Rosales (1910-1992), um dos maiores poetas espanhóis do século XX. O seu
título original é “La Casa Encendida”,
e o que nós agora vamos fazer, é arriscarmos a apresentar-vos uma tradução que
de parte dele fizemos. Aqui fica:
Porque tudo é igual e tu o sabes,
chegas a casa e fechas a porta
com aqueles mesmos exactos gestos com que terminas cada dia,
como se arrancasses a última página de um calendário
quando tudo é igual e tu o sabes
Chegas a casa,
e, ao entrar,
sentes a estranheza dos teus passos
que já soavam no soalho ainda antes de chegares,
e acendes a luz, para verificar
se tudo está exactamente no seu lugar, como estará daqui a um ano,
e depois,
tomas banho, cuidadosa e tristemente, como um suicida,
e olhas para os teus livros como as árvores olham para as suas folhas,
e sentes-te só,
humanamente só,
definitivamente só porque tudo é igual e tu o sabes.
Chegas a casa,
e agora gostarias de saber qual é o sentido de estares sentado,
qual o sentido de estares sentado como um náufrago
entre as tuas pobres cousas quotidianas.
Em 2002 abriu em
Madrid um espaço, ao qual foi dado o nome do poema de Luis Rosales “La Casa Encendida”.
Como se adivinha, este
espaço nasceu para ser um sítio crepitante de vida, onde o fogo que nos alumia
e nos faz ir em frente em direcção ao futuro, nunca diminui e ainda menos se
extingue.
Entre as actividades que se realizam neste espaço, contam-se exposições de
arte de vanguarda, incluindo a sua programação cultural performances
artísticas, filmes e outras formas de criatividade contemporânea.
Em resumo, “La Casa Encendida” é um local onde estão sempre a acontecer
coisas novas e onde a vida continuamente floresce e se renova. Em certo
sentido, é um lugar oposto ao daquela casa do poema em que nada acontece, em
que um homem comum, lá chegado após mais um dia de trabalho, encontra tudo como
antes, exactamente como encontrará daí a um ano e nos restantes mais que se lhe
hão-de seguir.
“La Casa Encendida” quer tudo menos que a
vida seja uma coisa repetitiva e absurda, e não por acaso, foi precisamente
nesse espaço, que o já falecido artista português Julião Sarmento realizou em
2011 uma das suas mais surpreendentes exposições, “Close Distances”.
Abaixo uma foto de uma das obras escultóricas do artista presentes nessa mostra, uma em que, como na que mostrámos no início deste texto, também há quem espere que algo aconteça, mas que nada vislumbra.
A aurora da democracia
portuguesa foi cantada por Sophia de Mello Breyner do seguinte modo:
Esta é a
madrugada que eu esperava
O dia
inicial inteiro e limpo
Onde
emergimos da noite e do silêncio
E livres
habitamos a substância do tempo
Neste entretanto, mais de cinco décadas passaram e se
houve um dia inicial, inteiro e limpo, parece existirem agora apenas dias
cansados, que se seguem uns aos outros sem que qualquer coisa de novo aconteça.
Na casa da democracia, os passos soam no soalho
ainda antes que alguém entre.
São os mesmos exactos
gestos que vemos cada dia nas Tv´s e jornais, repetitivos e absurdos, e tão
diferentes daqueles realizados no dia em que emergimos da noite e do silêncio.
Dir-se-ia que a democracia portuguesa se acomodou, que
já sem chama, se limita a sentar-se como náufraga entre as suas pobres cousas quotidianas. Talvez seja por isso, que outros, os que
não são democratas, tenham agora um estranho apelo.
Nesses, nos que não
são democratas, parece haver chama, lume e fogo, e perante uma democracia
acomodada e que não se renova, o povo vê neles algo de intenso e vivo. Os não
democratas cheiram a novidade e esse é um odor, que mesmo que enganador,
consegue sempre atrair certas gentes.
Em Madrid, em “La Casa Encendida” abriu esta semana
uma exposição intitulada “Inquietud. Libertad y Democracia”.
Esta
mostra convoca a memória histórica colectiva de Espanha e de Portugal, dando a
ver os aspectos sociais, políticos e culturais do período que vai desde a
década de 70 até à actualidade.
A
exposição apresenta-nos o tempo de transição das ditaduras ibéricas e os regimes
democráticos contemporâneos que se lhes seguiram. No fundo, o que podemos ver,
é como passámos dos dias iniciais, inteiros e limpos, para os dias de hoje,
iguais, acomodados, absurdos e repetitivos.
Na mostra há cinquenta artistas, e através das suas obras, percorremos cinquenta anos de democracia em Portugal e Espanha:
https://www.lacasaencendida.es/exposiciones/inquietud-libertad-y-democracia
Entre
essas obras, encontra-se uma de Paula Rego, “Grande Seca”, de
1976.
Haverá certamente
excelentes interpretações para esta obra de Paula Rego, no entanto, nós vamos
fazer uma totalmente improvável.
Digamos, embora seja
um abuso dizê-lo, que esta obra foi premonitória. Antecipou um tempo, que é
este em que vivemos. E porquê, pergunta quem nos lê.
Em boa verdade,
certamente que Paula Rego não concordaria com este nosso abuso interpretativo,
porém, as grandes obras de arte têm infinitas interpretações.
Olhemos para a
fotografia abaixo, na qual vemos Albufeira. Mais do que isso, vemos a memória
do Algarve que já não existe, de um que era quase mítico, que podia ser cantado
por todos os grandes poetas gregos de antigamente, e, portanto, também por Homero
na sua extensa Odisseia.
Para que façamos este inusitado
exercício interpretativo, é necessário que quem nos lê olhe para a imagem de
uma Albufeira de dantes, e nela encontre semelhanças com a pintura distópica de
Paula Rego.
Entre a fotografia do Algarve, que apesar de geograficamente atlântico, partilhava com a Grécia antiga uma ideia de Mediterrâneo, e a distópica pintura de Paula Rego, que como que é o prenúncio de uma região infestada de resorts, beach clubs, sunset parties e outras distopias, há uma democracia que se desiludiu, que se acomodou, que se sentou, que já não se inquieta.
Leiamos mais uma vez Sophia.
Algarve
A luz mais que pura
Sobre a terra seca
Eu quero o canto o ar a anémona a medusa
O recorte das pedras sobre o mar
Um homem sobe o monte desenhando
A tarde transparente das aranhas
A luz mais que pura
Quebra a sua lança
Do tempo deste poema, ao tempo da especulação
imobiliária, do turismo desenfreado e de tudo o resto, vai o tempo dos dias
puros e limpos que se transformaram em dias sujos, cansados e tristes.
Mais uma vez, e não por acaso, é no
Algarve, e mais concretamente em Albufeira, que os não democratas aparecem aos
olhos das gentes, como sendo o ilusório fogo, o fátuo lume e as chamas que dão
fulgor e vigor à vida. Não são, é uma mera ilusão, mas e então?
Terminamos com uma canção que vem
muito a propósito de tudo isto, “Os Índios da Meia Praia”. Na Meia Praia que fica
ali junto a Lagos, a dado momento os seus habitantes decidiram erguer casas
para viver. Projetaram assim um futuro, e em cada momento em que levantavam do
chão as suas habitações, existia um entusiasmo e uma vontade que depois
esmoreceu, mas não morreu.
Aqui fica a canção, em que a determinado momento se diz "Das eleições acabadas, do resultado previsto, saiu o que tendes visto".





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