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Do entusiasmo ao estresse



Saiu por estes dias um livro, que retrata a construção da escola democrática, ou seja, daquela que em Portugal foi erguida após o 25 de Abril. A obra intitula-se “50 anos de docência em democracia" e contém imensos testemunhos de docentes, que estavam em exercício de funções nos tempos pós-revolução. 

 

 

 

Lendo as palavras ditas por esses antigos professores, o que imediatamente nos surpreende, é o extremo entusiasmo com que todos falam dessa grande aventura.

Não era tarefa simples, essa de quase de um dia para o outro, levantar do chão uma escola que fosse para todos e não apenas para uns quantos. A expressão "escolas de massas" ganhou posteriormente má fama, no entanto, naquele momento, o que era verdadeiramente urgente, era precisamente ter finalmente uma escola para as massas, coisa que por cá nunca tinha existido.

Recorde-se que nessa época, as taxas de escolaridade eram baixíssimas, ao contrário das taxas de analfabetismo, que eram altíssimas.

No livro contam-se muitas histórias, como por exemplo, a de um professor que foi colocado na aldeia de Aveloso, no concelho de Cinfães, e que uma vez lá chegado constatou que o edifico escolar tinha um curral no piso térreo, e uma sala de aula no piso superior. É claro que não havia electricidade e nem sequer uma casa de banho.

Chegar a Aveloso, foi por si só uma odisseia, pois que estrada também não havia. Existia sim uma casa para o professor, equipada com um duche, que era um regador. Tudo isto aconteceu no ano de 1981.

Com esforço e dedicação, o professor colocado em Aveloso lá conseguiu dotar a escola com algum equipamento, que teve de ser carregado por montes e vales em carros de bois. O docente conseguiu igualmente, que o piso térreo da escola deixasse de servir como curral, e isso, para a população local, foi uma autêntica revolução, uma coisa nunca vista.


 

Nesses anos da massificação do ensino, dava-se aulas em qualquer lado. Conta um outro professor, que no concelho de Sintra, as aulas de Educação Física decorriam num salão de um palácio, que possuía uma grande e nobre lareira. Já uma educadora colocada em Amarante, relata que o primeiro jardim de infância local foi instalado no que antes era uma casa mortuária.

Segundo se diz no livro, havia aulas de manhã, à tarde e à noite, e inclusivamente ao sábado. O intuito era receber tantos alunos, quantos os que fossem possíveis. Arranjava-se professores para tanta gente, recrutando quem quer que quisesse dar aulas. Qualquer estudante do ensino superior, desde que tivesse concluído umas quantas disciplinas estava apto, sendo que, não raras vezes nem isso, pois terminado o liceu, estava-se imediatamente pronto para se ser professor.

Uma professora que iniciou a sua carreira em meados dos anos 70, narra o dia em que decidiu queimar a régua. Sendo nova na escola e na profissão, uma aluna foi ter com ela e informou-a que tinha uma régua na gaveta da sua secretária, ferramenta que deveria usar sempre que alguém não soubesse a matéria ou fizesse asneiras. A professora declarou não querer réguas na sua sala de aula, e organizou uma cerimónia no recreio da escola onde a régua foi queimada.

A directora da escola ficou tão admirada com “os novos métodos pedagógicos” usados por essa recente professora, que a chamou, para lhe dizer que deveria escrever um livro sobre essas modernas metodologias. Em resumo, a queima da régua foi uma revolução.

 

 

Uma educadora de infância que nesses já distantes anos esteve colocada em Moimenta da Beira, declara que nunca teve uma turma difícil, que nem sabe o que isso é. Diz a docente, que em Moimenta da Beira, as crianças até eram pachorrentas, uma vez que andavam desde as seis da manhã atrás das ovelhas, e quando chegavam à escola por volta das nove já vinham cansadas, razão pela qual estavam muito sossegadas e atentas.

Diz essa mesma educadora, que nesses tempos a liberdade e autonomia de que dispunha, foram essenciais para que conseguisse despertar a curiosidade e a vontade de aprender nas crianças. É com uma certa melancolia, que posteriormente, a educadora relata uma história mais recente, sucedida algures entre 2008 e 2010.

Segundo conta, nesse ano houve um seu aluno que chegado à escola, manifestou a sua alegria por ter visto um pato, animal que nenhuma outra criança da sua sala tinha visto ao vivo e a cores. Vai daí, a educadora decidiu comprar uns patitos e levá-los para a escola, para satisfazer a curiosidade dos miúdos. A consequência disso foi ter sido chamada pelo Presidente do Conselho Pedagógico do seu agrupamento e interrogada sobre quem lhe tinha dado autorização para comprar patos e levá-los para a escola. Para essa educadora, esse momento foi sentido como uma contra-revolução.

Um professor de Educação Física que no princípio dos Anos 80 estava colocado numa escola do Seixal, diz-nos que uma das coisas mais importantes na sua carreira de quarenta anos, foi esse tempo e explica porquê: “ter equipa, poder discutir, poder pensar. Quer dizer…foi o que mais me marcou. Discutíamos aquilo que se ia dar nas aulas, como se ia dar. Encontrei muita gente apaixonada por aquilo que fazia, e muito boa profissionalmente, com dedicação total”.

Estas são algumas das histórias, que aparecem no livro “50 anos de docência em democracia” contadas por quem nelas participou. O certo é que lendo-se o livro, percebe-se que a seguir ao 25 de abril de 1974 houve um fortíssimo entusiasmo com a educação, sendo que à época, muitos foram os jovens que haviam optado por cursos como Medicina, Economia, Engenharia ou outros, e inspirados pela esperança que a democracia educativa trouxe, decidiram alterar o seu rumo e investir onde lhes parecia irem conseguir “mudar o mundo”, ou seja, o Ensino.

 

Nesta semana saíram os resultados do TALIS, um estudo internacional que periodicamente analisa o estado de espírito dos professores relativamente à sua profissão. No que concerne a Portugal, os resultados são claros, se como vimos há cinquenta anos o sentimento dominante era o entusiasmo, actualmente o que é mais sentido é o estresse.

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