“Bigger than life” era uma expressão muito usada há décadas, para publicitar filmes épicos, ou outros cujas histórias tocavam na mais profunda essência da existência humana. É de três destes últimos, de que hoje vos vamos falar.
Em Portugal, “Neste ano fecharam 37 salas de cinema em multiplex e mais nove estarão em vias de se apagar”. É este o título de uma notícia da semana que passou do jornal Público.
Tal facto não é propriamente uma novidade, para o constatar basta olhar para o mapa abaixo, de 2021, com a distribuição do número de espectadores no território nacional. Em 195 concelhos deste país, não houve sequer uma única pessoa a ir ao de cinema, nem podiam, pois neles não existe qualquer sala, uma vez que ano após ano foram encerrando.
Genericamente, com excepção de Lisboa e do Porto, no resto do país, ninguém, ou muito pouca gente, vai ao cinema.
Dito isto, vamos citar uma outra notícia recente: “Depois de um ano recorde em 2024, o cinema Nimas, em Lisboa, continua a ser a sala favorita dos espectadores portugueses e chega ao fim do primeiro semestre de 2025, somando já cerca 40 mil espectadores, 20% a mais do que no ano passado. Tendo em conta que a situação das salas de cinema tem vindo a passar por dificuldades cada vez maiores, esta subida em contraciclo é fruto do trabalho de uma equipa dedicada que se tem esforçado por reinventar a forma de programar uma sala única, trazendo aos espectadores, que num número cada vez maior a têm vindo a frequentar, uma programação diversificada e de grande qualidade.”
É de salientar, que o cinema Nimas, é uma sala em Lisboa com cinquenta anos de idade.
Vamos a mais uma notícia destes últimos tempos: “O cinema Batalha registou um aumento de 9% no número de espectadores. Observou-se igualmente um crescimento de 20% na média de público, quando consideradas as sessões com programação própria do Batalha. Estes resultados são particularmente significativos, tendo em conta que se registou a maior queda no número de espectadores de cinema em Portugal dos últimos 10 anos.”
É de salientar, que o cinema Batalha foi inaugurado no Porto em 1947.
A pergunta que se impõe, é por qual razão estas duas salas de cinema, ambas já com uma certa idade, ou seja, o Nimas e o Batalha, atraem cada vez mais espectadores?
A resposta é simples, é porque nesses dois sítios contam-se histórias e exibem-se imagens, que em Portugal não são contadas nem vistas em mais lado nenhum. São histórias e imagens que não se contemplam ingerindo simultaneamente pipocas, e às quais se podia perfeitamente aplicar a expressão “bigger than life”. São filmes que tocam na mais profunda essência da existência humana.
Consultando a presente programação do Cinema Batalha, verificamos que para daqui a uns tempos está previsto ser exibido o clássico western de Nicholas Ray “Johnny Guitar”, obra de 1954.
É possível crescer-se e viver-se sem nunca se ter visto “Johnny Guitar”, todavia, se tal suceder, sabe-se menos sobre a vida que passa, sobre o que é um amor perdido, sobre o que é o arrependimento, e também sobre o que é querer-se que o tempo ande às arrecuas, de forma a tentar-se recuperar o irrecuperável.
“Johnny Guitar” tem um dos mais belos diálogos da história do cinema. Vienna e Johnny reencontram-se cinco anos após se terem separado, querem recuperar o tempo perdido, fazer de conta que nada nesse entretanto aconteceu. Tal não é fácil pois as palavras que ambos proferem não ajudam, uma vez que dizem simultaneamente uma coisa e o seu contrário.
Johnny e Vienna são como o poeta, fingem tão completamente, que chegam a fingir que é dor, a dor que deveras sentem. Johnny abre as hostilidades questionando-a sobre quantos homens já esqueceu, no entanto, Vienna dá-lhe imediatamente a réplica certa e depois ambos continuam por aí afora…
- How many men have you forgotten?
- As many women as you've remembered.
- Don't go away.
- I haven't moved.
- Tell me something nice.
- Sure, what do you want to hear?
- Lie to me. Tell me all these years you've waited. Tell me.
- All those years I've waited.
- Tell me you'd died if I hadn't come back.
- I would died if you hadn't come back.
- Tell me you still love me like I love you.
- I still love you like you love me.
- Thanks. Thanks a lot.
Durante anos, João Bénard da Costa escreveu num jornal uma página intitulada “Os filmes da minha vida”, onde em dado momento se leu o seguinte: “Era inevitável. Tinha de ser. Se escrevo sobre os filmes da minha vida, como podia ficar de fora o filme da minha vida, my Johnny Guitar? Só mesmo quem não me conheça nem mais gordo nem mais magro, podia supor que um dia destes - mais cedo ou mais tarde - o Johnny Guitar não enchia esta página (…) Só vi o Johnny Guitar 68 vezes, entre 1957 e 1988. Dá para saber de cor? Nunca se sabe o Johnny Guitar de cor. Cada vez é uma nova vez.”
Vejamos agora nós, o eterno retorno dos rostos, dos corpos e das vozes de Johnny e Vienna, no diálogo antes acima transcrito:
Se consultarmos uma vez mais a programação do Cinema Batalha no Porto, vemos que dela também consta o filme “Primavera tardia”, que aliás também já foi exibido pelo Nimas em Lisboa não há muito tempo.
“Primavera tardia” é um filme de 1949 do grande mestre japonês Yasujiro Ozu.
A questão que se poderá levantar, é a de se perguntar o porquê de se ir ver agora, em 2025, uma história que se passa no Japão em meados do século passado.
Uma resposta possível a essa pergunta, foi-nos dada pelo cineasta Wim Wenders, ao referir-se a Ozu. Aqui fica o que Wim disse: “Se no nosso século algo sagrado ainda existisse, se houvesse algo como um tesouro sagrado do cinema, então para mim isso teria que ser a obra do realizador japonês Yasujiro Ozu… Para mim nunca antes e nunca mais desde então esteve o cinema tão próximo da sua essência e do seu propósito: apresentar uma imagem do homem no nosso século, uma imagem utilizável, verdadeira e válida na qual ele não só se reconhece, mas a partir da qual, acima de tudo, pode aprender sobre si mesmo.”
No fundo, o que Wim Wenders nos diz, é que vendo os filmes de Ozu aprendemos mais sobre quem somos como seres humanos. Vejamos um exemplo disso mesmo, a propósito da película “Primavera tardia”.
Noriko sente-se feliz vivendo em casa com o seu pai viúvo, de seu nome Shukichi. Noriko não tem planos para casar, mas isso só até a sua tia Masa convencer o pai, de que a não ser que case a sua filha de 27 anos de idade em breve, ela poderá ficar sozinha para o resto da sua vida.
A trama vai-se desenrolando e Noriko resiste a todos os planos de casamento que lhe apresentam. Shukichi, o pai, também não tem muita vontade de casar a filha, contudo, crê ser esse o seu dever.
Feitas as contas, ambos se conformam e aceitam que o destino de Noriko é casar, mesmo que nenhum deles esteja particularmente feliz por assim ter de ser. Aqui os vemos aos dois, Noriko é o pai, aquando de um passeio de bicicleta pelo campo.
O pai e a sua filha vão até Kyoto para uma última viagem antes dela se casar. Após um longo dia a visitar os templos, deitam-se nos seus futons na pousada na qual se instalaram. Falam sobre o belo dia que tiveram juntos e o pai adormece.
Noriko deitada olha para o pai que dorme, de seguida vemos um vaso. Um vaso perfeitamente posicionado, envolto em sombras de bambu iluminadas pela luz da lua. Vemos Noriko a olhar para o tecto e novamente o vaso. Depois, mais uma vez Noriko, emocionada e parecendo estar à beira das lágrimas. A cena termina assim.
Os planos do vaso deram origem as milhares de comentários, a centenas de teses e as dezenas de livros. A razão pela qual esta cena atraiu a atenção de tantos estudiosos e curiosos, deve-se ao facto de que o mais expectável, teria sido que o realizador nos desse a ver o rosto de Noriko e as suas emoções.
Não há filme que acompanhe bem com pipocas, telenovela ou série de TV, que nessas circunstâncias, não nos desse longamente a ver rostos emocionados, porém, Yasujiro Ozu, inesperadamente e inexplicavelmente, mostra-nos duas vezes o vaso, descentrando-se do emocionado rosto de Noriko.
Refira-se de resto, que em nenhum outro momento do filme o vaso aparece.
O realizador não só nos mostra o vaso duas vezes, como deixa ainda que ambos os planos durem algum tempo. Na verdade, o vaso é a expressão de algo sagrado, a forma de nos dar a ver o quão profundas e contraditórias podem ser as emoções humanas, o quão inesperadas e inexplicáveis são.
Noriko viu o que lhe vai acontecer, deixará o pai, casar-se-á. Ela apercebe-se disto precisamente durante o tempo em que é mostrado, a nós e a ela, o vaso. O vaso não tem um significado concreto, mas é pela sua presença que Noriko se emociona, pois através dele pressente que há algo maior que ela própria, algo de sagrado, a saber: o tempo.
O tempo que passa e as mudanças que essa passagem nos traz. Mas também o tempo que permanece imutável e que se revela no eterno retorno da lua, no regresso das flores a cada primavera e nas contínuas e sucessivas gerações de filhos, que em cada época crescem e deixam a casa de seus pais.
O vaso é a forma que expressa essa sagrada contradição e condição inerente a todas as vidas: a de sentirmos simultaneamente a fugacidade de todas as coisas, e de pressentirmos igualmente o eterno retorno de todas as coisas.
“Menina e moça, me levaram de casa de meu pai para longes terras”, foi assim que Bernardim Ribeiro deu início à história que escreveu em 1554. Sendo essa história própria daquele tempo, depois disso, inúmeras outras vezes mais essa história se repetiu noutros tempos, e tantas outras meninas e moças foram levadas de casa de seus pais para longes terras.
Em síntese, o tempo é feito de mudanças, mas é igualmente feito de permanências, do que eternamente retorna, mesmo que numa outra forma. Abaixo, Noriko e o seu pai, na última viagem que fizeram juntos.
Por alguma razão, desconfiamos que os jovens portugueses, e quiçá até mesmo os adultos, não terão visto muitos filmes de Yasujiro Ozu. Talvez por isso, crêem que as emoções que agora sentem, nunca antes ninguém as sentiu. Talvez por isso, haja actualmente muitos que não sabem como se abstrair de si próprios e das suas emoções, que se deixam enredar nas teias interiores que em si mesmos tecem. Talvez se tivessem visto Ozu, soubessem que por vezes basta olharmos para fora de nós próprios, para como disse Wim Wenders, podermos aprender mais sobre nós mesmos. Por vezes, basta olharmos para um vaso envolto em sombras de bambu iluminadas pela luz da lua.
Olhemos para a programação do Cinema Nimas, para encerrarmos este nosso texto com um último filme, “Manhattan”, obra realizada em 1979 por Woody Allen.
Logo a abrir o filme, temos um momento épico, Nova Iorque ao som de “Rhapsody in Blue” de George Gershwin. É difícil de perceber se a transbordante energia que sentimos nessa primeira cena, advém da vibrante melodia de Gershwin ou das imagens dos vertiginosos edifícios nova-iorquinos. Provavelmente, é da conjugação das duas coisas.
Por entre a música e as imagens da grande metrópole, há um monólogo. Um escritor tenta compor o início do seu próximo livro, cuja narrativa decorrerá na maior e melhor de todas as grandes urbes norte-americanas.
Vai lá por tentativas, experimenta “He adored New York City. He idolised it all out of proportion”, mas depois emenda a segunda frase para “He romanticised it all out of proportion”.
Depois desiste e tenta outra solução: “He was too romantic about Manhattan, as he was about everything else. To him, New York meant beautiful women and street-smart guys who seemed to know all the angles”. Também esta acaba por não lhe parecer bem.
Faz mais uma tentativa, “He adored New York City, although to him it was a metaphor for the decay of contemporary culture”, no entanto, não fica convencido. Por fim, lá acaba por optar pela seguinte solução: “He was as tough and romantic as the city he loved. New York was his town and it always would be. “
Vejamos então Nova Iorque, a música de Gershwin acompanhadas pelas palavras indecisas de um escritor:
Mais à frente na narrativa, o personagem principal, o escritor, tem um outro monólogo em que se confronta consigo próprio, com as suas opções e com os seus arrependimentos. Tememos que se vá enredar nas teias que dentro de si tece, todavia, não é isso que acontece, pois põe-se a olhar para fora de si e descobre muito daquilo por que vale a pena viver. Entre outras coisas, descobre o rosto de Tracy, a rapariga que tinha abandonado.
Aqui fica esse monólogo, que é também ele uma lição de vida. Uma dessas lições “bigger than life”, que dantes se aprendiam por muitas salas de cinema deste país. No entanto, actualmente, ainda podem ser escutadas de vez em quando em sítios como o Batalha ou o Nimas.
“Tenho uma ideia para um conto sobre, uhm…, pessoas em Manhattan, que, uhm…estão constantemente com problemas neuróticos e desnecessários para si mesmas, talvez porque isso as impeça de ter de lidar com problemas mais insolúveis e aterrorizantes sobre o universo. Uhm…vamos, uh…bem, tenho que ser mais optimista. Bem, por que vale a pena a vida ser vivida? Esta é uma excelente pergunta. Uhm…bem, há certas coisas que eu acho que fazem a vida valer a pena. Uhm…como o quê? Certo. Uhm…para mim, eu diria…o quê? Groucho Marx, para dizer uma coisa. Uh, uhmm… e Willie Mays, e uhm…o Segundo Movimento da Sinfonia de Júpiter. E Louis Armstrong a gravar Potatohead Blues. Uhm…os filmes suecos, naturalmente, A Educação Sentimental de Flaubert, uhm…Marlon Brando, Frank Sinatra. Hum…aquelas incríveis maçãs e peras do Cézanne. Hh…os caranguejos do Sam Wo's…o rosto da Tracy...”
P.S. - Se bem repararam, entre tudo aquilo por que vale a pena viver, em lado algum o personagem refere pipocas.








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