A nós incomoda-nos esta moda dos tempos que correm, em que se troca o divino, o belo e o poético, pelo que é espectacular, dá show e enche o olho. Com efeito, cremos num mundo sem eventos nem gestos e acontecimentos barulhentos, que se destinem tão-somente a anunciar algo aos sete ventos e ao maior número de gente possível.
Cremos que o belo, o poético e o divino só precisam de atenção e delicadeza para se deixarem ver, e não requerem altifalantes, promoções, publicidade, propaganda e reclames para poderem ser vislumbrados.
Queremos portanto o regresso dos gestos que valem por si e que não necessitam nem pedem aos gritos umas quantas centenas de “likes”. Queremos a volta de olhares atentos que saibam ver toda a divina beleza e a poesia das coisas simples, dessas que não se põem aos berros só para propagandear que existem.
Os gregos viam deuses, poesia e beleza em tudo, sendo a imagem que encima e inaugura este texto, do belo Teatro de Epidauro na Grécia. Epidauro era um sítio que gozava de um grande prestígio nos tempos antigos, isto devido ao seu santuário consagrado ao deus da medicina, Esculápio. Em Epidauro, sob o signo de Esculápio, praticavam-se as artes medicinais através da interpretação poética dos sonhos.
A origem do Teatro de Epidauro está relacionada com o culto a uma outra divindade, Dionísio, o deus do vinho, das festas e do êxtase. Os rituais que aí se praticavam duravam uma semana inteira e incluíam cantos líricos nos quais se celebrava a vida, a dança, a alegria e a embriaguez. Por Epidauro, pelo seu santuário e pelo seu teatro, tudo nos falava de antigos deuses, da sua poesia e beleza.
Os gregos viam deuses, poesia e beleza em tudo, quer na natureza, quer na vida humana. Forças como o mar, a terra, a guerra ou o amor, eram para os helénicos de há milénios, coisas belas, poéticas e divinas.
O primeiro dos deuses foi Caos, a mais antiga, inexplicável e absurda das divindades. Nenhum poeta ou filósofo grego imaginou que existisse algo anterior a Caos.
Em “As Metamorfoses”, livro do poeta Ovídio, que foi escrito no século 1 a.C., descreve-se assim a terrível divindade que a tudo deu origem: “Antes que a terra, o mar e o céu tomassem forma, a natureza tinha apenas uma única face, chamada Caos: uma massa crua e desestruturada, um conglomerado de matéria composta por elementos incompatíveis. Nenhum elemento tinha a sua forma certa, e tudo estava em conflito dentro de um mesmo corpo: o frio com o quente, o seco com o molhado, o pesado com o leve. O Sol não iluminava o dia, e a Lua não brilhava à noite. Não havia chão para firmar os pés, nem mar para se nadar, todos os elementos estavam misturados num magma inicial. E as coisas, embora sempre em convulsão, não saíam do lugar: pois não havia sequer direita e esquerda, em cima ou embaixo, Norte ou Sul, dentro ou fora. O Caos era tudo e, ao mesmo tempo, nada era.”
Subitamente, e sem qualquer explicação, nasceu do Caos uma deusa. Era a Terra, deusa a que os gregos chamavam Gaia, “a de fartos seios”.
No extenso corpo de Gaia (a Terra), os elementos antes em confusão começaram a organizar-se. As generosas curvas de Gaia foram dando origem a suaves colinas, a profundos vales, a montes e montanhas. Fogo, terra, água e ar libertaram-se uns dos outros, ocupando cada um deles o seu próprio lugar.
Abaixo uma gravura que ilustra o momento da criação dos quatro elementos.
Das profundezas do Caos, surgiu um outro deus grandioso e enigmático, Eros, um ser a que séculos mais tarde os romanos chamaram Amor.
Sob a influência de Eros, Gaia sentiu um pontiagudo desejo e quis que as suas férteis curvas fossem cobertas pelo corpo vigoroso de um companheiro. Foi Ponto, o deus do mar profundo e salgado quem satisfez o ardente desejo de Gaia. O Mar e a Terra amaram-se uma única vez e dessa união surgiu uma vasta descendência, quer de deuses, quer de criaturas que habitam as profundezas dos oceanos.
Um outro deus que então apareceu foi o Céu Estrelado, a que gregos e romanos chamaram Urano. O Céu Estrelado tinha fome de amor. Enlouquecido pelo poder de Eros, Urano deitou-se sobre as deliciosas curvas de Gaia, e com um frenesim insaciável, começou a fecundá-la sem fim. Desse modo, não só nasceram outras inúmeras divindades, como a Terra se foi enchendo de coisas e seres.
Esta história continua e tem outros capítulos, porém, nós ficamos por aqui, pois cremos que o sentido da frase com que iniciámos este texto, “Os gregos viam deuses, poesia e beleza em tudo, quer na natureza, quer na vida humana”, está agora perfeitamente explicado.
Dito isto, porque não podemos nós, os que vivemos actualmente neste nosso século XXI, ver também o divino, o poético e o belo em todas as coisas que existem?
Claro que já não teremos a força e a crença suficiente, para acreditarmos que um Deus se passeia pela brisa da tarde de cada vez que ao fim do dia um leve vento sopra, no entanto, podemos ainda e por enquanto vislumbrar a beleza e a poesia das coisas existentes, e sentir que essa beleza e poesia que se nos apresentam pela frente, são um sinal de uma qualquer divindade cujo nome desconhecemos.
É fácil estar perante uma famosa obra de arte e dizer que ela é bela. É também fácil ir de visita a uma qualquer das sete maravilhas do mundo e falar da beleza do que se vê. Todavia, não é do que enche o olho e é espectacular, que desde o início deste texto, nós aqui queremos falar, é sim da beleza das coisas comuns e quotidianas, ou seja, da divina beleza e poesia que estão por toda a parte, e que só necessitam de atenção e delicadeza para serem vistas.
Vejamos por exemplo, uma mera escada, esta na imagem abaixo. Quem não tiver os olhos já gastos de eventos e imagens espectaculares, não poderá deixar de admirar na referida escada a sagacidade da sua geometria, o rigor com que foi concebida e, como súmula de tudo isso, a beleza e poesia simples que nela discretamente se exibe.
Não é difícil de ver, que há na escada abaixo, algo de divino, de belo e de poético.
Mas vejamos um outro exemplo ainda mais evidente. Na imagem que se segue, o que temos são vulgares pilares de uma qualquer ex-futura ponte, que porventura terá ficado por construir.
Os pilares da ponte que nunca chegou a sê-lo, erguem-se para os céus, quase como se fossem totens dedicados a um deus desconhecido. Mas mais do que isso, as suas expressivas barras de aço como que clamam às alturas. Dir-se-ia que se abrem tal e qual como as pétalas das flores o fazem todas as madrugadas ao raiar do sol.
Temos a certeza de que os gregos antigos veriam imediatamente nestes vulgares pilares, um sinal de algo divino, uma manifestação terrena de um qualquer deus solar.
Não é complexo olhar e ver a beleza poética das barras de aço que são como pétalas abertas, e que são também como que uma réplica de raios de luz que se expandem no ar, num movimento equivalente ao dos raios solares.
E o que dizer de um comum muro de branco caiado? Haverá porventura coisa mais modesta que um mero muro de uma terra do Alentejo? No entanto é olhar e ver a aguda beleza que se desprende da imagem a seguir.
Não é difícil de imaginar, que o branco muro contém em si uma espécie de luz pura, uma que é exclusiva dos anjos, dos santos e dos demais seres celestiais. Não é igualmente difícil imaginar as mulheres com as suas vestes, que para dois lados distintos do vértice do muro se afastam, como sendo sacerdotisas de uma misteriosa religião primitiva, cujos rituais já só elas conhecem.
Em síntese, não é arriscado dizer-se que se vê nesta imagem a beleza, a poesia e a presença do divino existente numa simples cena provinciana.
Poderíamos continuar com muitos outros exemplos, no entanto, de forma a não sermos exaustivos, o próximo será o derradeiro. Mais uma vez, também a imagem mais abaixo nada grita e não se anuncia ou publicita. Não pretende igualmente dar espectáculo e exibir-se ao maior número de gente possível, para mendigar “likes” a todos os que a vejam.
Estamos perante uma imagem discreta mas bela, ou, talvez por discreta, bela. É olhar e ver que nela se pressentem deuses e poemas por toda a parte: nos tons, nas sombras, nas linhas, nas esquinas e na figura que caminha.
Um homem percorre uma rua, dele nada sabemos, nem quem é, nem donde veio, nem para onde vai. No fundo, caminha como todos caminhamos vida afora, sem sabermos bem que destino nos espera lá mais à frente.
Não será despropositado dizer-se, que não tendo esta imagem nada de particularmente relevante, é ainda assim uma imagem que nos fala da condição humana, essa que os deuses nos legaram, ou seja, a de sermos caminhantes que desconhecem o caminho que têm por diante, mas que no entanto, lá vão indo em frente, esperando sempre encontrar no seu trajecto momentos poéticos e belos.
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