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Kiss, kiss, bang, bang, Bangladesh…

 



A história de Salim Sinai começa ainda antes dele ter nascido, inicia-se algures em Caxemira durante a gélida primavera de 1915. 

Em dado momento, o seu avô, o então jovem médico Dr. Aadam Aziz, ao realizar as suas orações, estando ajoelhado, dobrou-se em direção ao solo para o beijar e bateu em cheio com o nariz no chão, num pequeno monte de terra enregelada.

Como seria expectável, o embate entre o seu nariz e a terra fria e dura, deixou o Dr. Aadam Aziz zangado. Vejamos a descrição desse instante: "Três gotas de sangue soltaram-se da sua narina esquerda, endureceram instantaneamente no ar gelado e caíram, diante de seus olhos, como que transformadas em rubis, sobre o tapete de oração. Ergue-se e percebe que as lágrimas que lhe haviam surgido nos olhos também se tinham solidificado; e naquele momento, enquanto desdenhosamente afastava pequenos diamantes de gelo dos olhos, ele decidiu que nunca mais voltaria a beijar a terra por nenhum deus ou homem.”

Duas gerações depois, dá-se o nascimento do nosso protagonista, Salim Sinai. Nasceu exactamente à meia-noite, no preciso momento em que a Índia se tornou independente.

Salim Sinai é uma criança especial, que a pouco e pouco descobre ter poderes telepáticos, que o ligam a outros 1001 filhos da meia-noite, ou seja, a todos os que como ele nasceram no momento em que a Índia se tornou independente, à primeira hora do dia 15 de Agosto de 1947.

Salim Sinai, cresce no seio de uma abastada família muçulmana, no entanto, posteriormente, descobre que foi trocado na maternidade por um outro recém-nascido. Na verdade, Salim Sinai era de origem hindu e filho de uma família pobre.

A história de Salim Sinai confunde-se com os acontecimentos mais decisivos da Índia desses tempos, como é por exemplo, o caso da criação do Paquistão.

Na Índia britânica, os muçulmanos ressentiam-se da posição dominante dos hindus na indústria, no comércio, na educação e no sector público. 

Os britânicos estavam decididos a abandonar a Índia, mas depararam-se com uma situação, em que os confrontos sangrentos entre a comunidade muçulmana e a comunidade hindu se iam multiplicando. 
Os britânicos decidiram então, a partição da Índia colonial em dois países, um maioritariamente hindu, a Índia, e um outro muçulmano, o Paquistão.

Esta partição teve a firme oposição de Nehru e Gandhi, no entanto, foi em frente na mesma. Assim sendo, no dia 15 de agosto de 1947, o Reino Unido transferiu a soberania local para dois novos Estados independentes, a Índia e o Paquistão.

"Então Salim Sinai, sempre em busca de significados, sugeriu que toda a história indiana moderna aconteceu como aconteceu só por causa dele; que a história, a vida da sua gémea-nação, era, de alguma forma, culpa toda dele.”

No fundo, o que Salim Sinai pensou, foi que a divisão da Índia e a criação do Paquistão era uma consequência da sua própria vida e, mais concretamente, de ele à nascença ter sido trocado na maternidade.

Em síntese, Salim Sinai acreditou que as desavenças entre indianos muçulmanos e indianos hindus, resultaram de ele ter crescido numa abastada família muçulmana, quando a sua verdadeira família era pobre e hindu. Cria que se tal não tivesse sucedido, o Paquistão jamais teria sido separado da Índia, e muçulmanos e hindus viveriam em paz e harmonia num só país.


O Paquistão, cuja maioria da população era muçulmana, viu-se imediatamente dividido em duas regiões distintas, separadas por 1 700 km, sendo que, o inicialmente chamado Paquistão Oriental, se declararia independente em 1971, adoptando então o nome de Bangladesh, ou seja, a terra dos bengalis.

No século XVI, os portugueses estabeleceram o primeiro entreposto ocidental em Bengala, na cidade de Chittagong.

Partindo de Chittagong, os portugueses estabeleceram-se noutros portos e cidades bengalis, nomeadamente em Satgaon, que ficou conhecido como Porto Pequeno, e na antiga Dhaka, conhecida como Portogala.

Talvez valha a pena ler um artigo do jornal Dhaka Tribune, cujo título é “Portuguese Bangladesh”:


Regressemos a “Os Filhos da Meia-Noite”. Na verdade, o grande assunto da obra de Salman Rushdie não é uma personagem, mas sim toda uma nação, a Índia. E, de certa forma, é também a história dos filhos desavindos dessa mesma exacta nação, a saber, o Paquistão e o Bangladesh.

Nós não sabemos quantos portugueses terão noção desta história ou porventura dedicaram parte do seu tempo a ler “Os Filhos da Meia-Noite”, no entanto sabemos, que a ligação entre Portugal e a Índia têm séculos.

Não narra por acaso, a obra literária nacional, “Os Lusíadas”, a viagem de Vasco da Gama até à Índia?

Mas dito isto, em “Os Filhos da Meia-Noite”, também aparece uma personagem de origem portuguesa, Mary Pereira, a enfermeira que trocou na maternidade Salim Sinai. Fê-lo numa tentativa de impressionar o seu namorado Joseph Costa, que como já se terá percebido, também tem origem lusitana.

Consumida pela culpa, Mary Pereira tenta redimir-se e oferece-se para ser ama de leite de Salim Sinai. Mais tarde, após confessar o seu acto, Mary Pereira foge, para reaparecer algum tempo depois como dona de uma fábrica de picles, cujo nome é D. Bragança, nome inspirado em Catarina de Bragança.

Catarina de Bragança foi a princesa portuguesa, que se casou com o rei de Inglaterra e assim se tornou rainha. A mais importante parte do seu dote de casamento, foi a cedência de Bombaim aos ingleses em 1662.

Abaixo uma fotografia de Bombaim, a maior cidade da Índia, que actualmente se chama Mumbai.


A transferência de Bombaim consolidou a presença inglesa na Índia, contribuindo decisivamente para a expansão do Império Britânico. Provavelmente, quase de certeza absoluta, se a coroa portuguesa em 1662 não tivesse cedido Bombaim aos ingleses, o Paquistão e o Bangladesh nunca teriam existido.

Isto quando nos pomos a ler, nem que seja uma obra de ficção como “Os Filhos da Meia-Noite”, descobrimos rapidamente relações inusitadas, como esta longa relação histórica, que há muito existe, entre Portugal e o Bangladesh.

O jovem médico Dr. Aadam Aziz, o avô de Salim Sinai, ao embater com o nariz na terra dura e fria, “decidiu que nunca mais voltaria a beijar a terra por nenhum deus ou homem”, o que a nosso ver, foi uma sábia decisão.

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