A foto é de uma montanha que fica lá para os lados do Quirguistão, na Ásia Central. Trata-se de um lugar sagrado, com um profundo significado espiritual. Mas antes de chegarmos a esse longínquo local, passemos por uns quantos não-lugares.
Cada vez mais andamos por não-lugares, sítios em que só estamos de passagem para uma outra qualquer parte. Exemplos de não-lugares são as autoestradas, os quartos de hotel, os aeroportos e os supermercados. A expressão não-lugar foi inventada pelo antropólogo Marc Augé (1935-2023), tendo surgido pela primeira vez na sua obra “Non-places: Introduction to an Anthropology of Supermodernity”.
Um não-lugar é o oposto de um lugar. Um lugar é um espaço que fortalece a identidade, pois é onde nos encontramos com outros com quem compartilhamos significados sociais e culturais.
Os não-lugares, pelo contrário, não são espaços de encontro nem possuem significados. O não-lugar é um local no qual os indivíduos permanecem anónimos e distantes entre si. Num não-lugar não vivemos, apenas passamos por lá de caminho para um qualquer lugar.
A praça central de uma cidade é um lugar no qual as pessoas se encontram para conversar, para irem às compras, para passear ou para se manifestarem. A praça central de uma cidade é um local onde os cidadãos constroem e partilham significados.
Os antigos gregos chamavam à praça central da cidade ágora, os romanos chamavam-lhe fórum. Nas cidades gregas a ágora era onde se realizavam os mercados e as assembleias do povo. Neste espaço público havia actividades políticas, comércio, trocavam-se informações, existiam rituais religiosos, intrigas, locais para o ócio, demonstrações de retórica e muito mais.
Nas cidades romanas, o fórum era onde acorriam multidões a fim de comprar, de divulgar boatos, de participar em actividades de culto, de assistir a espectáculos e de tratar de negócios públicos ou privados.
A ágora, o fórum e a praça central são lugares plenos de significado, é em sítios como esses que nascem e se consolidam os valores políticos, sociais e culturais comuns a uma cidade, a um país, a um povo e até a uma civilização inteira.
Actualmente passamos muito tempo em não-lugares, locais como os supermercados ou os centros comerciais, que são vazios de significados partilhados ou comuns. Tais espaços estão concebidos para que cada um aja como um indivíduo isolado e tão-somente no papel de consumidor.
Esses sítios não são pensados para que os cidadãos aí discutam, troquem ideias e manifestem opiniões políticas e sociais. Menos pensados são ainda para rituais religiosos ou actividades culturais, nada nesses sítios tem ou pretende ter significado, o seu exclusivo objectivo é que os clientes passem por lá e consumam mais e mais, os produtos expostos.
É triste verificar como a lógica dos não-lugares vai tomando conta do que outrora eram lugares plenos de significados partilhados. Veja-se por exemplo, o que sucede no centro das principais cidades ocidentais, que a pouco e pouco se foram tornando todas iguais.
Seja por onde for, vemos as mesmas lojas de roupa, calçado ou de acessórios pertencentes a marcas multinacionais. Vemos pelas cidades o mesmo comércio de bugigangas e souvenirs e as mesmas cadeias de restaurantes de comida rápida. O centro das principais cidades vai-se assim transformando num não-lugar, muito semelhante a um centro comercial ou a um free-shop de um qualquer aeroporto.
Os centros das cidades perdem assim significado, deixando de ser um lugar para cidadãos e passando a ser um sítio para turistas-consumistas.
Abaixo uma foto do local onde outrora se situava o famoso Checkpoint Charlie, que na época do Muro de Berlim era o ponto de passagem de leste para oeste e vice-versa. É um sítio pleno de significado, que inspirou músicas, livros e filmes, e que tem mil histórias para contar, todavia, hoje em dia, está cercado por negócios destinados a turistas-consumistas. Assim sendo, o que era um lugar, é agora um não-lugar por onde passam excursões e gente que deambula em direcção a um outro ponto qualquer.
Às cidades vão-lhes sendo roubados os seus plenos significados, por consequência disso, vamos tendo cada vez menos cidadãos, e cada vez mais meros consumidores.
Na cidade de dantes, havia cidadãos que construíam e partilhavam significados políticos, sociais e culturais com os seus concidadãos, na cidade de agora, é o consumidor que reina, sendo que este é um ser mais limitado do que um cidadão.
Com efeito, o consumidor restringe-se às compras: às do dia a dia, às do Natal e de outras festas, às dos saldos e aos souvenirs que eventualmente adquire como turista-consumista.
Um cidadão limitado à função de consumidor é um ser pobre, pois a riqueza que lhe adviria de construir e partilhar com outros significados políticos, sociais e culturais é-lhe roubada. Centros de cidades transformados em não-lugares, apenas destinadas a serem sítios de passagem para consumos vários, empobrecem a vida humana, pois o que eram locais de encontros, tornam-se espaços de compras.
Em resumo, ser-se humano é algo de muito mais vasto do que ser-se um indivíduo consumidor, ser-se humano é sobretudo compartilhar-se significados que vão desde a política, à sociedade e à cultura.
No entanto, ser-se humano é ainda mais do que isso, pois implica também a experiência de se ter contacto com aquilo que é invisível e nos ultrapassa, o mesmo é dizer, ser-se humano é vislumbrar-se o significado do que é incognoscível, do que é sagrado.
Sem a experiência do sagrado, o ser humano está limitado à sua condição biológica. Sem a experiência do sagrado, o ser humano é tão-somente um ser físico, material, sem contacto com o seu lado espiritual.
Contudo, também o sagrado tem os seus lugares. Provavelmente não será num aeroporto, num supermercado ou em qualquer um outro não-lugar, que teremos um contacto com o sagrado.
Lugares sagrados são sítios específicos como o monte onde se ergue o templo em Jerusalém, o grande Rio Ganges que atravessa a Índia, a montanha onde se situa a antiga cidade inca de Machu Picchu no Peru, ou a pedra em Delfos, onde os gregos de há milénios acreditavam estar o umbigo do mundo.
Um outro lugar sagrado é a montanha de Sulaiman-Too, que fica não muito longe da fronteira com o Uzbequistão, e junto à capital do sul do Quirguistão, a cidade de Osh.
Uzbequistão, Quirguistão e a cidade de Osh, são sítios de lenda, cuja história está ligada à mítica e milenar Rota da Seda, que durante séculos foi o caminho existente entre Ocidente e Oriente. A Rota da Seda é um caminho pleno de infinitos significados e com tantas e fantasiosas histórias, quanto aquelas que a mente humana consiga imaginar.
É nessa rota que se situa a Montanha sagrada de Sulaiman-Too. Desde tempos imemoriais que a montanha é venerada por diferentes civilizações e religiões. O seu pico mais alto, o Takht-i-Sulaimain, é associado ao Rei Salomão, pois acredita-se que ele aí terá sido enterrado.
O Rei Salomão é uma figura bíblica, que é venerada quer na religião judaica, quer na cristã. Na religião islâmica Salomão é tido como um profeta de Alá, sendo conhecido pela sua sabedoria, riqueza e poder, características que lhe permitiram governar sobre os humanos, os animais e os demónios.
A montanha de Sulaiman-Too tem portanto um profundo significado espiritual, sendo desde sempre um sítio de peregrinação e onde se praticam rituais ligados à fertilidade e a curas milagrosas.
Mulheres descem pelas cavernas ditas da fertilidade pregando para engravidarem, panos com orações são amarradas no alto da montanha para os ventos os levarem e com eles os desejos dos crentes em direcção aos céus, as gentes entram por covas e grutas e nelas colocam os seus membros, acreditando nas propriedades curativas da montanha para afastar dores de cabeça e das costas, para além disso, oferecem ainda bênçãos à montanha pedindo-lhe grande longevidade.
Abaixo uma instalação da artista multimédia uzbeque Saodat Ismailova. Trata-se de filme projetado sobre vinte e quatro painéis de seda, que nos mostra a montanha sagrada de Sulaiman-Too, intercalada com imagens de arquivo de um documentário de 1929, nos qual se vêem peregrinos da época a praticar os seus rituais. No filme vê-se também peregrinos da actualidade, que tal como os seus antepassados acorriam à montanha.
A obra de Saodat Ismailova é também uma reflexão sobre a complexa história da montanha e sobre as imposições políticas e transformações culturais a que foi sujeita.
Na segunda década do século XX, o Quirguistão foi integrado na União Soviética, assim sendo, a montanha sagrada de Sulaiman-Too passou a fazer parte da agora extinta URSS.
Como se sabe, a ideologia soviética negava o sagrado, considerando qualquer prática ou ritual religioso como um sintoma de atraso social e cultural. Nesse contexto, catedrais foram destruídas, mesquitas arrasadas e sinagogas encerradas.
A religião era o ópio do povo e a revolução marxista-leninista promoveu amplamente a ideia de oposição entre "ciência" e "superstição religiosa". Na nova sociedade soviética não havia lugar para a chamada "ficção subjetiva" da espiritualidade religiosa.
Como consequência de tudo isso, a Sulaiman-Too foi sujeita a uma museificação. As autoridades soviéticas instalaram na montanha um Museu Histórico e Arqueológico, reinterpretando assim a importância do sítio, ou seja, realçando o seu lado histórico e arqueológico, e anulando-o como um local de peregrinação religiosa.
Foi precisamente na mais venerada gruta da montanha, de seu nome Rusha-Unkur, que foi construído um Museu Histórico e Arqueológico, aproveitando-se igualmente para se erguer um restaurante modernista, juntamente com um miradouro panorâmico. Vejamos como ficou:
Neste entretanto, a URSS desapareceu e apesar de todos os esforços dos seus ideólogos, esses engenheiros de almas não levaram a sua avante e a montanha manteve o seu significado espiritual, continuando a haver peregrinações, rituais de cura, tradições orais e crenças cosmológicas profundamente incorporadas nas suas pedras.
A obra de Saodat Ismailova intitula-se “As we fade”, e leva-nos a refletir que quando o significado original de um local é obscurecido, que evidências permanecem do seu passado espiritual e como podem ser recuperados os seus traços para alimentar e inspirar a memória coletiva?
O que permanece e o que desaparece quando se tenta transformar uma montanha sagrada num espaço museificado? O que permanece é o que desaparece quando se transforma o centro das cidades em não-lugares sem significado, destinados apenas a turistas-consumistas de passagem?
Aqui fica um excerto de “As we fade”, que também pode ser visto ao vivo e a cores na galeria Kunsthalle Lissabon:
Terminamos com uma foto recente, de gente de visita à montanha Sulaiman-Too.
Comentários
Enviar um comentário