Quem já não se sentiu paralisado diante uma folha de papel branco, quer fosse para escrever um poema, uma história ou um mero relatório. Por vezes queremos escrever, mas não sabemos sobre o quê. Noutras vezes sabemos sobre o que escrever, mas não sabemos é como.
Hoje é um desses dias em que não sabemos sobre o que escrever, e mesmo que soubéssemos, não saberíamos como.
Dadas serem estas as circunstâncias, o melhor que poderíamos fazer é não escrever e dar por terminado este texto. E é isso mesmo o que vamos fazer, por consequência, este nosso texto terminou agora, neste exacto momento. Talvez amanhã ou no dia seguinte saibamos sobre o quê e como escrever. Aguardemos portanto o regresso da inspiração.
Uma vez que hoje decidimos não escrever, temos agora tempo e disponibilidade para vos contar que um dia um homem decidiu ir a Ítaca, a ilha natal de Ulisses, da qual ele partiu para lutar na Guerra de Tróia durante dez longos anos.
Ítaca, a ilha à qual Ulisses voltou depois de ter navegado por outros longos dez anos pelos mares Egeu e Mediterrâneo. Ítaca, a ilha na qual Penélope esperou por Ulisses, o seu esposo, apesar de todos lhe dizerem que ele jamais regressaria. Penélope tinha inúmeros pretendentes, como Antínoos e Eurímaco, mas a todos Penélope recusou, mesmo que muitos a tenham tentado forçar a escolher um novo marido.
Muitas são as histórias de Ítaca contadas por Homero na Odisseia, o livro fundador de toda a escrita ocidental. Um dos muitos lugares de que nos fala a Odisseia, é da linda ilha de Paphos, que mais de dois mil anos e oitocentos anos depois, Cy Twombly haveria de representar numa bela pintura.
Abaixo vemos um barco que parte, provavelmente o de Ulisses a caminho de Ítaca. A Cy Twombly não lhe faltou inspiração para escrever, pois vemos bem na tela a palavra Paphos.
Estávamos nós a dizer, que um dia um homem decidiu ir a Ítaca. Uma vez lá chegado sentou-se à sombra de uma oliveira ancestral sob a qual pretendia começar a escrever. O homem acreditava que aquele lugar, em que tinha por diante o azul do mar, o inspiraria a escrever um excelente texto, tal como há milénios inspirou Homero.
No entanto, após estar a olhar para a folha em branco por um bom tempo, nada lhe veio à mente. Nesse instante, recordou-se da rua onde tinha crescido. Uma rua que se percorria de uma ponta à outra em menos de um minuto.
Deu-se então conta que não teria precisado de viajar até Ítaca para escrever. Bastava imaginar que ele próprio era Ulisses, e que regressar a essa rua, era como se Ulisses retornasse a Ítaca.
Na verdade, naquela pequena rua de outrora poder-se-iam imaginar todos os principais personagens da Odisseia. Ali tinha vivido a muito sedutora e caprichosa ninfa Calipso, que insistia em seduzir Ulisses, oferecendo-lhe inclusive a imortalidade caso ele aceitasse ficar com ela para sempre.
Ali vivia também Nausícaa, com os seus cabelos soltos onde a luz dourada do sol se refletia, e que salvou o náufrago Ulisses trazendo-o para sua casa. Nessa rua, encontrávamos igualmente Circe, a terrível feiticeira, que com os seus malignos encantamentos transformava os homens em feras.
Também por essa rua havia o monstruoso Polifemo, um ser que levava uma existência solitária e só raramente aparecia à janela, finalmente, ali existia a própria Penélope, que diariamente esperava pelo regresso de Ulisses, enquanto os seus pretendentes, os vizinhos Antínoo e Eurímaco se obstinavam em a tentar seduzir.
O homem que um dia decidiu viajar até Ítaca, pensou então escrever sobre a sua rua, como se os que nela dantes habitavam fossem personagens da Odisseia, mas depois lembrou-se que isso já tinha sido feito.
Com efeito, James Joyce escreveu um romance no qual relata o dia 16 de junho de 1904 e o início da madrugada seguinte, em que o personagem principal, Leopold Bloom, é um Ulisses moderno.
Leopold Bloom percorre a sua cidade, Dublin na Irlanda, como se fizesse a viagem de regresso de Ulisses a Ítaca. Encontra pelos diversos lugares de Dublin, habitantes que são o equivalente moderno de Calipso, Circe, Naisícaa, Polifemo, Antínoo, Eurímaco.
James Joyce disse um dia, que colocara no seu livro tantos enigmas e quebra-cabeças, que estes manteriam os professores ocupados durante séculos discutindo sobre o que o autor quis dizer. A sua escrita tornar-se-ia assim eterna.
O homem que decidiu ir a Ítaca, a ilha natal de Ulisses, recordou-se novamente da sua antiga rua e de dias de uma plenitude orgiástica e das lentas tardes de tédio. Lembrou-se de longos silêncios, de soterradas tristezas passadas e do fumo dos muitos cigarros fumados.
O homem que decidiu ir a Ítaca, a ilha natal de Ulisses, sabia que o tempo transformou rostos que um dia lhe foram familiares; sabia que os sonoros risos de felicidade com amigos eram agora ecos longínquos. O homem que um dia decidiu ir a Ítaca sabia tudo isso e muito mais, só não sabia sobre e como escrever.
Este nosso texto há muito que terminou, mas ainda assim vamos terminá-lo novamente, desta vez com um poema do poeta surrealista português Pedro Oom (1928-1974):
Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada
Pode-se não escrever




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