Pelos vistos, está previsto que 2024 vai seu um ano de devassidão. Não somos nós que o dizemos, são os especialistas da matéria. Como se sabe, previsões há muitas, as do IPMA acertam quase sempre, já as de outras instituições meteorológicas são uma autêntica desgraça, ora dizem que faz sol e chove, ora dizem que o tempo vai estar ameno e faz vento e frio que até arrepia.
Se falarmos nas previsões da astrologia, então é que é um ver se te avias. É de ciência certa que os astrólogos não acertam uma. Outro tanto se poderia dizer das previsões na área da economia, também aí atiram sempre ao lado. Se nos dizem que para o ano tudo vai melhorar, o melhor é começarmos a poupar. Se nos dizem que vai piorar, sabemos que estamos à vontade, toca a gastar.
Vem tudo isto a propósito do nosso último texto, no qual apresentámos as previsões dos especialistas para 2024, nomeadamente aquelas que nos anunciam o regresso dos “loucos anos 20”. Se alguém quiser ler, pode fazê-lo em:
Nicholas A. Christakis é um médico e sociólogo grego-americano, é professor de Ciências Sociais e Naturais da Universidade de Yale e foi considerado pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, em síntese, é um grande especialista de muitas e diversas coisas e fundamentalmente em previsões.
No início de 2020, ainda durante a pandemia, Christakis previu que em 2024 iríamos iniciar uns novos “loucos anos 20”, tal e qual como os que há um século se seguiram à epidemia da gripe espanhola.
Christakis estudou o comportamento das populações ao longo de séculos e séculos de história, durante e após as pandemias, tendo chegado à conclusão de que há um padrão comportamental comum. “Durante as epidemias, registam-se aumentos na religiosidade, as pessoas economizam o dinheiro e ficam avessas ao risco” explicou Christakis. Todavia, uma vez o perigo passado, cresce um sentimento de rutura com o antigo, dá-se uma efervescência cultural, há festas desenfreadas por todo o lado, o hedonismo substitui o conservadorismo e é igualmente de se esperar uma overdose de sexo.
Tudo isto, segundo Christakis, é o que está previsto começar a acontecer daqui uns dias, ou seja, em 2024. Está na hora de alguém lançar um alerta!
Nós não somos o IPMA nem a Proteção Civil, portanto não emitimos alertas amarelos, nem laranjas e muito menos vermelhos, ainda assim, sentimos uma responsabilidade para com quem nos lê, consequentemente, vamos passar em revista o que sucedeu nos loucos anos 20 de há um século, para que todos se possam ir preparando convenientemente para o que aí vem, ou seja, para os loucos anos 20 do século XXI. Em resumo, vamos fazer pedagogia histórica.
Uma das mais perturbantes novidades dos loucos anos 20 do século XX, foram os cabarés. Talvez seja difícil nos dias de hoje imaginar, o imenso espaço de liberdade que esses estabelecimentos noturnos foram para as gentes de então, sobretudo para as de Berlim, que nunca tinham visto nada assim.
Berlim não aparece aqui por acaso, na verdade, foi nessa cidade que mais cabarés surgiram por todo o lado, era porta sim, porta não.
Imagine-se uma cidade sossegada, Berlim, no século XIX a capital do reino da Prússia, uma urbe quase provinciana e um tanto ou quanto rústica. Imagine-se de seguida essa mesma cidade, uns poucos anos depois, nos anos 20 do século XX, agora já capital da nova e poderosa Alemanha unificada. Uma cidade totalmente desassossegada e completamente reinventada como uma gigantesca, cosmopolita e moderna metrópole. Imagine-se só a tremenda mudança que foi essa.
De repente, não mais que de repente, ali pelos anos 20 do século XX, a ainda há pouco pacata Berlim, compete com Nova Iorque, Londres e Paris como o epicentro da modernidade. A população aumentou imenso e tudo o que antes parecia sério, tranquilo, seguro e certo na antes provinciana cidade, era agora ridicularizado na grande metrópole e alvo de troça nos filmes, nos teatros e sobretudo nas canções entoadas pelas longas noites de festa no cabaré.
O maior sucesso cinematográfico desses anos, primeiro em Berlim e depois no resto do mundo, conta-nos a história de um calmo, respeitável e rigoroso professor germânico. De repente, não mais que de repente, o professor apaixona-se desalmadamente por Lola, uma cantora de cabaré.
Desgraça com essa assolapada paixão toda a sua carreira e vida, acabando por se tornar completamente ridículo aos olhos de todos. O filme de que vos falamos intitula-se “O Anjo Azul”, é de 1925, e a cantora de cabaré era interpretada por Marlene Dietrich. Esse nome de mulher cujo som, como alguém disse, começava por nos acariciar, Marlene, para logo em seguida nos chicotear, Dietrich.
Em síntese, professores em exercício de funções no século XXI, preparai-vos para nestes novos loucos anos 20 que aí vêm, não vos deixardes arrastar por cantadeiras de cabaré. O alerta está dado, a pedagogia está feita, lembrem-se que quem vos avisa vosso amigo é.
Uns tempos antes, quem haveria de dizer, que na Berlim dos loucos anos 20, as mulheres passariam a usar trajes e cabelos curtos e sairiam para dançar pela noite fora? Quem haveria de dizer, que os homens pensariam mais em divertir-se do que em casar-se, constituir família e ter um trabalho decente?
Em princípio ninguém diria nada disso, pois não era minimamente previsível que tais loucuras pudessem suceder, porém, foi isso mesmo o que sucedeu, Berlim reinventou-se quase de um dia para o outro.
Christopher Isherwood escreveu uma vez um romance sobre os loucos anos 20 intitulando-o “Adeus a Berlim”. Nele descrevia a vida desses tempos na capital germânica. Muitos anos mais tarde, baseado nesse mesmo livro, surgiu um célebre filme intitulado “Cabaret”, no qual Liza Minelli cantava assim:
What good is sitting alone In your room?
Come hear the music play.
Life is a Cabaret, old chum,
Come to the Cabaret.
A vida em Berlim tinha-se portanto tornado numa espécie de cabaré onde todos os valores habituais eram colocados em questão. Andava toda a gente farta de moralismos, de tradições e de sereiedade, o que se queria agora era diversão, criatividade e novidades.
Bem sabemos que uma escola não é o equivalente a um cabaré, mas o espírito do tempo (Zeitgeist em alemão) em ambos os sítios era o mesmo. Em educação queria-se também imaginação e inovação e não mais tradição. Foi nesse contexto e tempo que surgiu a pedagogia Waldorf. Não propriamente em Berlim, mas não muito longe daí, em Estugarda.
A pedagogia Waldorf incentiva e encoraja a criatividade, alimentando a imaginação e procurando que os alunos tenham um pensamento livre e autónomo, tudo coisas nunca antes vistas no ensino de até então. Revolução ainda maior, foi o conceito de a avaliação por notas ser considerada contrária aos ideais da educação.
Uma tal inovação foi tão grande, que cem anos passados os loucos anos 20, ainda há muito quem não a tenha digerido, basta ver o recente sururu que em Portugal houve por causa dos relatórios PISA e das provas de aferição, para claramente o percebermos.
Muitas vezes nos perguntamos porque é que Portugal não é tão desenvolvido como a Alemanha. Há muitas razões para tal, mas uma delas, terá certamente a ver com a lentidão com que por cá se digere qualquer tipo de inovação educativa. É uma digestão muito difícil, a da inovação. Ao menos temos sol com fartura, portanto, nem tudo é mau.
Se virmos o gráfico mais abaixo, constatamos que um século depois, as ideias defendidas pela pedagogia Waldorf não são descabidas, pois cada vez há pelo mundo afora mais quem as coloque em prática.
Tal pode ser verificado não só pelo número crescente de escolas Waldorf existentes, mas também pelas muitas outras, que apesar dos protestos dos tradicionalistas, a pouco e pouco se vão libertando das obsoletas práticas pedagógicas oriundas do século XIX e se vão reinventando.
Em síntese, professores em exercício de funções no século XXI, preparai-vos para nestes novos loucos anos 20 que aí vêm, a imaginação, a criatividade e o pensamento livre e autónomo tomarem conta das salas de aula. O alerta está dado, a pedagogia está feita, lembrem-se que quem vos avisa vosso amigo é.
Em Paris, os loucos anos 20 ficaram conhecidos como “Les anneés folles”. Nessa época, todos os dias ali chegavam vindos do mundo inteiro jovens artistas, escritores e pintores. Como mais tarde escreverá Ernest Hemingway referindo-se a esses anos, “Se enquanto jovem tiveste a sorte de viver em Paris, então essa lembrança acompanhar-te-á pelo resto da tua vida, onde quer que estejas, porque Paris é uma festa...”
Nesses “annés folles” andavam por Paris todos que posteriormente viriam a reinventar as artes e as letras, gente como Picasso, Dali, Man Ray, Jean Cocteau, F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, James Joyce, Stravinsky, T.S. Elliot, Nijinsky ou Marc Chagall.
Gertrude Stein tinha uns poucos anos antes escrito um poema que viria a ficar célebre pela sua originalidade e simplicidade, este que abaixo vos deixamos por inteiro:
Rose is a rose is a rose.
O poema não é muito grande mas fez o êxito literário de Gertrude Stein, tornou-a uma espécie de mestra da modernidade, mas para além disso, ela era financeiramente abastada. Por assim ser, a sua casa em Paris acabou por ser onde os jovens artistas, músicos e escritores encontraram um lugar protetor e acolhedor.
Um deles foi James Joyce. Começaram por ser amigos, mas as circunstâncias acabaram por os separar, apesar disso, mesmo sem companhias protetoras, James Joyce acabaria por reinventar a escrita, levando-a para terrenos nunca antes vistos.
O romance “Ulisses” é provavelmente o maior de todo século XX. Foi publicado em 1922, contudo, cem anos depois, o inglês reinventado por James Joyce ainda é desafiante para muitos dos seus atuais leitores. Aqui fica um excerto no original para quem quiser arriscar uma tradução, não é fácil:
“I love flowers I’d love to have the whole place swimming in roses God of heaven there’s nothing like nature the wild mountains then the sea and the waves rushing then the beautiful country with fields of oats and wheat and all kinds of things and all the fine cattle going about that would do your heart good to see rivers and lakes and flowers all sorts of shapes and smells and colours springing up even out of the ditches primroses and violets nature it is as for them saying there’s no God…”
Em síntese, professores em exercício de funções no século XXI, preparai-vos para nestes novos loucos anos 20 que aí vêm, serem desafiados por modos de escrever e de se expressar com os quais nunca antes se tinham deparado.
Comparado com a Inteligência Artificial, a revolução digital que vivemos nas últimas décadas foi apenas uma brincadeira, por consequência, tudo vai ter de ser reinventado. O alerta está dado, a pedagogia está feita, lembrem-se que quem vos avisa vosso amigo é.
Nos loucos anos 20 do século XX, havia por Paris inúmeros americanos. Vinham tentar a sua sorte na então capital mundial das artes. Aos “Les années folles” também houve quem chamasse “The Jazz Age”. E se bem que o jazz seja uma música inventada pelos norte-americanos, em Paris não havia quem não a ouvisse.
A americana Josephine Baker foi a primeira a fazer sucesso em Paris com sons vindos do lado de lá do Atlântico. Tudo nela era disruptivo. Em 1925, estreou-se no Théâtre des Champs-Élysées, fazendo imediato sucesso com sua dança erótica em que aparecia praticamente nua em cena e cantava “J'ai deux amours, mon pays et Paris”.
Quem também veio da América e andou por Paris nos loucos anos 20, foi o compositor George Gershwin. O que este músico teve de extraordinário, foi que nas suas composições misturou o popular e o erudito, o clássico e o jazz.
À época tudo estava muito bem separado, uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa. Gershwin reinventou tudo isso, tanto se inspirava nos sérios e tradicionais compositores que compunham para as mais prestigiadas orquestras sinfónicas, como se inspirava igualmente nos mais despreocupados e anónimos compositores dos bares de Manhattan, que compunham apenas para quem ia beber e dançar pela noite fora, madrugada adentro.
Inspirado pelos seus tempos de Paris, Gershwin escreveu aquilo a que há quem chame uma ópera, havendo também quem lhe chame um musical, na verdade, pouco importam as classificações. O certo é que “An American in Paris” tem sido levado à cena nos melhores teatros de ópera e igualmente nos melhores teatros de variedades, de certo modo, é um exemplo de transdisciplinaridade melódica.
Em síntese, professores em exercício de funções no século XXI, preparai-vos para nestes novos loucos anos 20 que aí vêm, terem por diante crianças com tanta tecnologia e informação ao seu dispor, que só consigam aprender a um ritmo completamente distinto do de sempre, e a quem a divisão e classificação do saber por disciplinas já nada lhes diga. O alerta está dado, a pedagogia está feita, lembrem-se que quem vos avisa vosso amigo é.
Terminamos por hoje com um excerto de “An American in Paris”, mais especificamente a canção "I Got Rhythm". Amanhã e depois continuaremos com os novos loucos anos 20.
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