Iniciámos ontem uma série de textos dedicados a autores literários indispensáveis e difíceis, ou seja, os que são bons para quem lê porque quer saber quem é, o que faz aqui, e também quem são os outros e o sentido da vida. Ontem falámos do primeiro, Homero, hoje o escolhido é Shakespeare.
Homero escreveu a Ilíada e a Odisseia, as duas obras fundadoras do nosso ocidental modo de ser, esse que nasceu na antiga Grécia.
O ocidente estende-se hoje da Europa à América, sendo um mundo cujos valores desde o início foram moldados pela guerra, algo que se percebe imediatamente ao ler Homero.
Há uns poucos anos estaríamos pouco conscientes que a guerra anda pelo ocidente desde sempre, que o funda e é a sua raiz primeira. Infelizmente, no momento presente, e após umas quantas décadas de paz, a plena consciência desse facto tornou-se novamente premente.
Quem quiser rever o que ontem escrevemos pode fazê-lo em:
A plena consciência de que os valores do ocidente estão moldados pela guerra, não se refere tão-somente a que nele, ao longo da história, houve frequentes conflitos militares, significa também que na civilização ocidental a discussão, o debate, a contenda, a disputa e a consequente troca de argumentos fundam um modo de viver e ser.
A democracia é para todos os efeitos uma luta entre diversas facões, sendo na sua essência uma guerra de palavras e opiniões e, precisamente por essa razão, logo profundamente ancorada nos valores ocidentais, ou seja, nesses que foram moldados pelo confronto.
Quem diz a democracia, diz também as artes e letras e as ciências. No ocidente, qualquer uma destas atividades é na sua essência um enfrentamento contra o que está estabelecido.
Na história do ocidente, são imensos os homens de ciência que lutaram arduamente contra as certezas dos demais, veja-se o exemplo de Galileu Galilei que teve de batalhar enormemente para outros convencer, que a Terra rodava em volta do Sol e não o oposto.
Outro tanto sucedeu no campo das artes, artistas malditos que tiveram de enfrentar o desdém de todos os seus contemporâneos é coisa que não falta, sendo talvez Van Gogh o mais célebre caso.
Para além disso, o que também não faltaram foram artistas “avant-garde” que se depararam com a incompreensão e hostilidade dos restantes, e que só com muitas brigas, bulhas e pelejas se acabaram por impor.
Desavenças por concepções artísticas é um tema recorrente ao longo da história da arte. Abaixo uma obra de Antonio Zucchi da época Barroca.
Dito isto, vamos então ao nosso autor de hoje, o indispensável e difícil Shakespeare. O bardo, como lhe chamam os britânicos, é um herdeiro de Homero, e por assim ser, sabia perfeitamente que o conflito é a raiz primeira da forma de ser e viver do ocidente.
Porém, enquanto em Homero tudo era sério, pesado e grave, em Shakespeare há também gracejos, chalaças e ironias. Em “Troilus e Cressida”, o autor teoriza acerca do que conduz a humanidade à discórdia e ao desentendimento, acabando por concluir que, em última instância, a razão ou irrazão de todas as lutas e embates mais não passava de uma "boa zanga em que facções rivais se sangravam até à morte", por "um cornudo e por uma put…”
Só por tal conclusão, percebemos logo que o contexto de Shakespeare não é igual ao de Homero, no qual havia heróis, ninfas e deusas e deuses olímpicos. Em Shakespeare é tudo mais terra-a-terra, mesmo quando os personagens são reis, rainhas e príncipes.
O melhor exemplo disso mesmo é Falstaff, um cavaleiro gordo, fanfarrão e vigarista. Um alegre companheiro de bebedeiras de Henry, o Príncipe de Gales e futuro Rei Henrique V.
Com o seu espirito beberrão, apaixonado e dissoluto, Falstaff guia o príncipe pelo caminho da insolência, da luxúria e da devassidão. Henry anda todo contente com o seu pervertido e libidinoso amigo, mas tudo findou subitamente.
Uma vez coroado rei, Henry afastou-se sem mais de Falstaff e da sua companhia. Agora era preciso ser um homem sério e responsável, findaram-se os tempos das noites de bebedeiras.
Todavia, só quando Henry foi à guerra, só aí, é que todos viram o grande rei que ele era. Mais uma vez, e seguindo os valores ocidentais, foi apenas quando enfrentou um conflito que o começaram a levar a sério.
Tal sucedeu na véspera da Batalha de Azincourt, uma das muitas da Guerra dos 100 Anos, que caiu no dia de São Crispim, a 25 de outubro de 1415. Henrique V incentiva os homens do seu exército, que eram em número muito menor do que os adversários, os franceses, a imaginar a glória e a imortalidade que alcançariam se porventura fossem vitoriosos.
Ouvindo Henry V a discursar às suas tropas, dir-se-ia que estávamos de volta à antiguidade clássica, quando heróis como Aquiles ou Ulisses se preparavam para as mais duras batalhas:
“Este dia é o da festa de São Crispim, aquele que sobreviver a este dia, voltará são e salvo ao seu lar e colocar-se-á na ponta dos pés quando se mencionar esta data, e crescerá sobre si mesmo ante o nome de São Crispim. Aquele que sobrevier a este dia e chegar à velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e dir-lhes-á: “Amanhã é São Crispim”. E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: “Recebi estas feridas no dia de São Crispim.
Os velhos esquecerão, mas, aqueles que não se esquecem de tudo, lembrar-se-ão todavia com satisfação das proezas que levaram a cabo naquele dia (…). O bom homem ensinará esta história ao seu filho, e desde este dia até ao fim do mundo a festa de São Crispim e Crispiano nunca chegará sem que venha associada a nossa recordação, à lembrança do nosso pequeno exército, do nosso bando de irmãos, porque aquele que hoje verter o seu sangue comigo, por muito vil que seja, será meu irmão, esta jornada enobrecerá a sua condição e os cavaleiros que permanecem agora no leito da Inglaterra irão considerar-se malditos por não estarem aqui, e sentirão a sua nobreza diminuída quando escutarem falar daqueles que combateram connosco no dia de São Crispim.”
Para aqueles de vós que eventualmente saibam inglês, que não apenas o de aeroporto, aqui fica o discurso do Dia de São Crispim:
O discurso de Henry V foi o mote que levou os britânicos a enfrentarem com coragem a árdua luta, contudo, o maior ensinamento que Shakespeare nos legou, foi o de que as grandes batalhas não são apenas as militares, que há guerras imensas que se travam dentro de nós mesmos.
Esses conflitos interiores são igualmente uma consequência da cultura ocidental, e desta desde os tempos homéricos ter profundas raízes nos valores da guerra.
Com efeito, não há cultura em que tantos lutem consigo mesmos como no ocidente, "Ser ou não ser, eis a questão".
Na verdade, desde a Europa até à América, há muito quem se questione sobre quem é e não é, e batalhe enormemente no interior de si próprio sem chegar a qualquer conclusão. Será talvez por isso, que noutras culturas, como por exemplo nas orientais, há um consumo relativamente residual de fármacos de cariz psico-emocional, mais concretamente, de antidepressivos e seu afins.
"Ser ou não ser", to be or not to be, é uma expressão que consta da peça teatral, shakespeariana, "Hamlet".
O dito, confronta-se consigo mesmo e com os seus fantasmas. Pior do que isso, não chega a uma conclusão e continuamente acha que sim ou que não. Por consequência, a batalha que em si trava prolonga-se indefinidamente.
Quantos de nós, pobres ocidentais, já não sentimos assim, sem saber se é mais nobre resistir, ou conformarmo-nos com o que a sorte nos reserva. Essa é a verdadeira guerra interior:
“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações"
Uma vez dito tudo isto, não há como discutir, pois a conclusão é mais do que evidente, o conflito, o confronto, o debate, a disputa são e sempre serão a razão de ser do ocidente. Mais não seja, a guerra interior, aquela que se trava dentro de cada um de nós.
E pronto, é esta a grande lição de Shakespeare, noutro dia, um outro virá, desta série intitulada "Ler livros serve para alguma coisa? Sim, os indispensáveis e difíceis como os de ..."
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