Quando no título deste texto falamos de livros, estamos a falar de literatura e não de manuais, de publicações técnicas, informativas ou científicas. É só relativamente à literatura, que nos permitimos responder à pergunta presente no nosso título, e afirmar convictamente, que ler tanto pode servir para muito, como para quase nada.
Há quem leia para se entreter ou se divertir, está tudo muito bem, mas ler serve nessa situação tão-somente para se passar um bom bocado. Depois há quem leia para alargar a sua cultura geral, caso em que ler é uma obrigação que se cumpre sem prazer. Ler assim serve certamente de muito pouco. Por fim, há quem leia porque quer saber quem é, o que faz aqui, e também quem são os outros e o sentido da vida. Para estes, ler servirá de muito, mas os livros que lhes convêm são os indispensáveis e difíceis.
Neste entretanto começou a Feira do Livro de Lisboa, sendo portanto esta uma óptima ocasião, para dedicarmos uma série de textos aos autores que vale sempre a pena ler. Como já se vê, cada um lê o que muito bem entende e com certeza que não necessitará das nossas sugestões, contudo, e ainda assim, nós vamos dá-las e ao longo de vários dias.
O título desta série de textos que agora iniciamos é ”Ler livros serve para alguma coisa? Sim, os indispensáveis e difíceis como os de…”, sendo que, logo a seguir a esse título genérico, estará sempre o nome de um diferente autor.
Homero é o nosso autor de hoje, um dos ditos indispensáveis e difíceis. A bem dizer, ninguém sabe se ele realmente existiu ou se é apenas um nome inventado há longos séculos, e sob o qual, foram reunidas lendas, histórias, contos e mitos da antiguidade.
Na verdade tanto faz, seja Homero só um nome ou tenha o autor realmente existido, o que importa é que os seus livros existem e são dois, a “Ilíada” e a “Odisseia”.
No nosso entender, Homero é um dos indispensáveis porque ninguém sabe nada daquilo que nos move, nos faz batalhar, nos incita a correr e nos empurra por dentro, não o lendo.
É um dos difíceis, e isto também no nosso entender, porque os seus livros são extensos e exigem bastante atenção e tempo. Em síntese, cumpre perfeitamente os critérios enunciados, ou seja, é indispensável e difícil.
Mas dito isto, vamos então às duas obras do autor, comecemos pela Ilíada. O que esse livro nos narra é a história da Guerra de Tróia que, feitas as contas, também ninguém tem a certeza se verdadeiramente sucedeu ou se é tão-somente um acontecimento mitológico, fruto da imaginação dos homens. Seja como for, o certo é que Homero a descreveu, à guerra, por páginas e páginas.
Os desentendimentos entre gregos e troianos iniciaram-se com o rapto da bela Helena, esposa do rei de Esparta, Menelau. Quem a levou foi Páris, o filho mais novo do rei de Tróia.
Abaixo uma imagem com o momento em que Páris e Helena embarcam de Esparta em direção a Tróia. Como se vê, a linda princesa não ia lá muito contrariada, pois Páris era um rapaz que lhe agradava. Em boa verdade, pode-se dizer que ambos foram um tanto ou quanto insensatos, pois que com a sua fuga puseram em movimento forças indomáveis e irrefreáveis.
Com efeito, Menelau sentiu-se ultrajado e reuniu todos os povos gregos, exércitos e navios, com o exclusivo objetivo de resgatar a bela Helena e de castigar duramente os troianos pela afronta.
Helena foi a face que lançou mil naus ao mar e a guerra que daí surgiu durou dez anos. Todavia, desde o seu início que se calculava que os pobres troianos não teriam a menor hipótese de a vencer. Resistiram, batalharam, mas no final acabaram dizimados pelos gregos.
O que aprendemos com a Ilíada é que há rostos que fazem homens lançar-se mar afora em conflitos tremendos, cuja impiedade é sem fim. Como já dissemos, Páris era filho do rei do Tróia, mas coube ao seu irmão mais velho e herdeiro do trono, Heitor, estar à frente das tropas. Aguentou como pôde, com todas as suas forças, mas sabia bem que cedo ou tarde acabaria vencido.
Sabia-o ele e também a sua esposa, Andrómaca, a dos alvos braços. Um dia, após mais uma batalha, Heitor regressou a casa e não a avistou, perguntou então onde estava e se porventura teria ido juntar-se às suas irmãs, as das elegantes vestes. Disseram-lhe que não, e que igualmente não estava no templo a rezar com outras troianas de belas tranças.
Estava sim na grande muralha que protegia Tróia, para a qual tinha ido muito apressada e igual a uma tresloucada, ao ter sabido que os troianos estavam aflitos. Heitor saiu então às pressas de casa, e percorreu o mesmo caminho pelas ruas bem construídas. Quando, tendo atravessado a grande cidade chegou à muralha, eis que correu ao seu encontro a esposa generosa. Trazia consigo uma criança, o filho de ambos.
Vendo Heitor, Andrómaca disse-lhe: “Homem maravilhoso, é a tua coragem que te matará! Nem te compadeces desta criança pequena nem de mim, desafortunada, que depressa serei a tua viúva. Pois rapidamente todos os Aqueus se lançarão contra ti e te matarão. Mas para mim seria melhor descer para debaixo da terra, se de ti ficar privada. Nunca para mim haverá outra consolação, quando tu encontrares o teu destino, mas só sofrimentos.”
Como é evidente Heitor podia ter sucumbido e perdido a coragem ao escutar as funestas palavras de Andrómaca, mas o que a Ilíada nos ensina, é que por vezes a honra é mais forte do que tudo, até que a própria morte.
Heitor respondeu-lhe deste modo: “Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me envergonharia dos Troianos e das Troianas de longos vestidos, se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra. Nem meu coração a tal consentiria, pois aprendi a ser sempre corajoso e a combater entre os dianteiros dos Troianos, esforçando-me pelo grande renome de meu pai e pelo meu.”
Como era previsível, tempos depois Heitor acabaria por morrer a lutar, caindo vencido às mãos de Aquiles, o grande herói grego. Aquiles, depois de trespassar a garganta de Heitor como uma lança, arrastou-o preso pelos pés a uma carroça e deu três voltas à grande muralha de Tróia, para que todos os troianos pudessem ver o seu príncipe herdeiro completamente derrotado e humilhado.
Andrómaca não teve também grande sorte, pois foi distribuída como as outras mulheres troianas como parte do saque, após a vitória dos gregos. A criança, o filho de Heitor, foi cruelmente morta por um outro herói, Ulisses, que a atirou do alto da muralha.
Aquiles é o maior herói da Ilíada, é um homem que luta cara a cara, corpo a corpo. Todo ele é cólera e coragem, suor e sangue. Move-o a fúria e a paixão e, ocasionalmente, a dor e o desespero. Aquiles é uma lição, sendo essa uma das razões pelas quais é indispensável ler Homero.
Com Aquiles aprendemos que, em última instância, quer nos grandes feitos, quer nas maiores crueldades, nós, os seres humanos, acabamos por ser sempre movidos por sentimentos extremos, como por exemplo, amores selvagens e imensos ou ódios descontrolados e brutais.
Saber que, o que faz com que “mil naus se lancem ao mar” é sempre um imenso sentimento, é algo de que se deveria falar abundantemente nas formações e cursos onde se ensinam as gentes, crianças, jovens ou adultos, a gerir emoções.
A gestão de emoções é antes mais isso, ou seja, o saber-se que por vezes há em nós forças indomáveis que se erguem bem alto e nos levam a agir com ímpeto, de um modo completamente inflamado e desgovernado. Saber-se isso, é saber-se muito.
No entanto, desconfiamos que nas formações e cursos de gestão de emoções tal não se aprenda, mas sim e apenas que temos de ser sensatos e racionais, contar dez vezes para dentro, respirar fundo e pensar com calma no assunto que nos perturba, irrita e afeta.
Se quisermos saber o que outros e cada um de nós, quando movido palas emoções, é capaz de fazer em contextos de guerra, de conflitos, de discussões e de distúrbios, é indispensável lermos a Ilíada de Homero, porém, se lermos também a Odisseia vamos descobrir uma outra história.
Se Aquiles é o maior herói da Ilíada, Ulisses é-o da Odisseia. Em grego, Ulisses é Odisseu. Embora o autor seja o mesmo, Ulisses é um ser totalmente distinto. Se Aquiles era o que luta cara a cara, corpo a corpo, e é movido pela força do que sente por dentro, Ulisses é um xadrezista, um astuto, um que fere de longe e administra os sentimentos.
Aquiles usa a espada e envolve-se na batalha, já Ulisses usa o arco e flecha e dispara à distância. Homero apelida-o como “o de mil truques”. Se Aquiles é um autêntico guerreiro, alguém que é amado pelos camaradas com quem luta lado a lado, Ulisses singra e leva avante os seus intentos no meio de invejas, de rivalidades, de perfídias e de más-línguas. Move-se por entre esses meandros como ninguém e sabendo deles tirar o melhor proveito.
Foi Ulisses, o ardiloso, que teve a ideia de construir um cavalo de madeira, com um interior oco onde um grupo de guerreiros se escondeu. Simulando uma retirada, os gregos deixaram o cavalo às portas de Tróia.
Um grego deixou-se capturar e, com manhas, induz os troianos a levarem o cavalo para dentro da cidade, convencendo-os que teriam vencido a guerra. Os troianos recolhem o cavalo no meio de uma grande festa. À noite, quando a cidade dorme, os gregos saem do cavalo e facilitam a entrada de seu exército, que assim captura, saqueia e destrói Tróia.
Abaixo uma obra de Henri-Paul Motte, “É preciso ter cuidado quando gregos trazem presentes”.
A Odisseia relata o regresso de Ulisses à sua pátria, a Ítaca. Finda a Guerra de Tróia, Ulisses foi de terra em terra, de mar em mar, sempre a caminho do sítio donde era, Ítaca, a ilha onde Penélope, a sua mulher, o esperava.
Esperou muito Penélope, uns vinte anos. Ulisses não se apressou, e depois de dez anos de guerra, levou outros dez a retornar. Pelo percurso encontrou inúmeros perigos, um dos quais, o canto das sereias.
Ulisses sabia que com o seu canto, as sereias atraíam os marinheiros e os seus barcos para os rochedos. Encheu de cera os ouvidos e amarrou-se ao mastro do navio, de modo a também ele não ser arrastado para os rochedos.
Ainda assim, ouvindo o belo canto das sereias, amarrado ao mastro, ele pedia aos gritos para ser solto, mas todos ficaram surdos aos seus pedidos e foi assim que Ulisses se salvou.
E esta é mais uma lição de Homero, o único modo de se resistir ao canto das sereias, é amarrar-se ao mastro e encher de cera os ouvidos.
Uma vez escapado à sereias e ao seu canto, Ulisses encontrou seguidamente uma ninfa, Calipso, que o acolheu na sua ilha e por ele se apaixonou. Insistia em seduzi-lo, oferecendo-lhe inclusive a imortalidade se porventura ele aceitasse ficar com ela para sempre.
O herói resistiu durante anos. Desse modo, mesmo contra a sua vontade, Calipso acabou por ceder e forneceu-lhe os recursos para que Ulisses construísse uma jangada. Deu-lhe provisões e assegurou-lhe condições favoráveis para ir pelo mar de volta ao lar.
Calipso ficou para sempre conhecida coma a ninfa dos amores não correspondidos. Abaixo na imagem, ao fundo, quase uma sombra, vemos Ulisses a olhar para o mar, mais à frente, em primeiro plano, a triste ninfa. Em síntese, é mais uma lição.
No fim, Ulisses lá chegou a Ítaca, a sua pátria. Ninguém o reconheceu, apenas o seu cão, Argos, e esta é a derradeira lição.
Por aqui findamos, sendo certo que regressaremos com um novo texto da série “Ler livros serve para alguma coisa? Sim, os indispensáveis e difíceis como os de…”
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