De Alvalade ao Campo Grande, uma visita transdisciplinar através de histórias que vão desde as ciências às artes
Na nossa anterior publicação fizemos uma visita de estudo transdisciplinar através de histórias que iam desde as ciências às artes, começámos em Arroios e fomos até Alvalade e essa foi a primeira metade do percurso. Hoje partimos precisamente de Alvalade e iremos até ao Campo Grande, no que será a segunda parte da nossa viagem.
Desta vez teremos histórias que irão desde a arte contemporânea ao Pop-Rock, passando pela arquitetura e biologia e acabando na história. Ao longo de todo esse percurso veremos sinais da passagem do tempo. Mas antes disso, a recordação da etapa inicial:
Iniciamos o nosso caminho pela Galeria Quadrum, não muito longe da Praça de Alvalade, mesmo junto à Biblioteca dos Coruchéus. A dita galeria é um local histórico, pois foi o laboratório inaugural da arte experimental portuguesa nas décadas de 70 e 80 do século XX.
No jardim mesmo em frente à galeria, está instalada uma escultura de José Pedro Croft, um dos maiores artistas contemporâneos nacionais, que foi o representante de Portugal na 57.ª Bienal de Arte de Veneza.
A obra, que foi propositadamente concebida pelo artista para esse lugar, funde-se com o movimento dos ramos da árvore na qual se encontra. A escultura acompanha o lento crescimento da árvore e contempla-se de distinta forma, conforme as diversas estações do ano, a mudança da luz ou a folhagem que se renova.
É uma obra que não aposta na espetacularidade, mas sim na quase invisibilidade, convocando desse modo a nossa atenção para o profundo mistério do que é transitório e fugaz, e muito discretamente se vai transformando com o tempo.
Abaixo uma fotografia da Galeria Quadrum.
A nossa visita de estudo, vira-se agora da arte contemporânea para a música, para aquela que em tempos foi um sucesso, mas que agora só passa na Rádio Nostalgia. É nesse mesmo jardim dos Coruchéus, que se celebra o percursor do Punk-Rock português, o malogrado João Ribas, que esteve na origem de várias bandas importantes como os “Kú de Judas”, “Os Censurados” e os “Tara Perdida”.
Os “Kú de Judas” eram todos nativos de Alvalade e começaram por atuar na Escola Secundária Padre António Vieira, por ser a que todos os elementos da banda frequentavam. No verão de 1988, João Ribas decide partir numa nova aventura e nascem assim “Os Censurados”, que chegaram a ter sucesso com temas como Não Vales Nada e Tá a Andar de Mota. Depois vieram os “Tara Perdida”, que em 2009 chegaram a realizar concertos nas mais prestigiadas salas do país, como por exemplo no Coliseu dos Recreios em Lisboa e no Cinema Batalha no Porto.
A relação de Alvalade com a música vem de longe, razão pela qual é um bom ponto de partida para se desenvolver a sensibilidade musical. Nos anos 80, a zona teve uma importância decisiva no despontar do novo Pop-Rock nacional. Existiam imensas bandas de garagem na Avenida EUA. O falecido Zé Pedro, membro dos Xutos e Pontapés e morador do bairro, revelou numa entrevista, que a sua "fase de arrastar a vida nas esplanadas" foi passada nos cafés do cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida dos EUA. Zé Pedro lembra-se que o pessoal das bandas de Alvalade ficava “por ali a ver as miúdas passar, em conversas parvas...", e recorda-se também que tanto os Sétima Legião como os Heróis do Mar também ensaiavam ali por perto.
Se recuarmos um pouco mais no tempo, à década de 60, vemos que também os músicos Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e Carlos Mendes são de Alvalade, sendo que todos eles fizeram parte da banda “Sheiks”, que cantava em inglês. Aqui fica um tema de 1966, “Missing You”:
Andando uns quantos minutos, até ao início sul do Jardim do Campo Grande, vemos por diante de nós um grande edifício, a Biblioteca Nacional. O arquiteto que a projetou foi Pardal Monteiro, que ficou para sempre conhecido como “O primeiro moderno de Lisboa”.
Alguns dos edifícios mais emblemáticos da cidade foram por si projetados, como é o caso da Estação do Cais de Sodré, do Instituto Superior Técnico, do Diário de Notícias, da Cidade Universitária, da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, do Hotel Ritz e das gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde Óbidos. Conhecer a sua obra é quase um sinónimo de conhecer a história da cidade, desde os anos 30 do século XX até finais dos anos 60.
O Jardim do Campo Grande é rico em fauna e flora, e para quem o souber fazer, há aí muito para dizer sobre biologia. No jardim podemos encontrar os mais diversos exemplares botânicos, alguns bastante raros, como palmeiras das Canárias, pinheiros, eucaliptos, acácias, amoreiras de papel, figueiras, pimenteiras, tílias, incenso, jacarandás, grevídea, bordo e castanheira da índia vermelho. Também há muitas espécies de aves que aí nidificam e podem ser observadas, nomeadamente os pintassilgos, os pardais, os chamarizes, as toutinegras carrasqueiras e os maçaricos das rochas.
Muito antes de ser jardim, esse mesmo exato local foi palco do cerco a Lisboa pelo rei de Castela na sequência da crise dinástica de 1383-1385. Foi aí também que se deu a cerimónia de revista às tropas pelo Rei D. Sebastião, antes da sua partida para Alcácer Quibir. Outros tempos!
A meio do jardim há duas pequenas peças de arquitetura muito significativas, sendo que, ao sabermos as suas histórias, algumas coisas aprenderemos sobre as transformações que o tempo traz.
Uma das peças chama-se “Casa Raúl Lino”. Ao longo das suas muitas décadas, o edifício já foi balneário, casa de banho pública, esteve quarenta anos abandonado, semi-arruinado e é agora, após ter sido renovado, um restaurante.
Raúl Lino (1879-1974) foi um famoso arquiteto, que ficou conhecido por ser o inventor de um estilo cuja denominação é “A Casa Portuguesa”. A sua arquitetura valorizava a articulação com a paisagem, privilegiando o uso de materiais tradicionais, mas de um modo moderno. Foi alguém único no panorama das artes em Portugal, devido ao facto de ter conseguido harmonizar a tradição portuguesa com as inovações do início do século XX.
Seguindo para norte, um pouco mais à frente no jardim, deparamo-nos com o Edifício Caleidoscópio, que em tempos, nos anos 70 e 80, foi um moderno e bem-sucedido centro comercial, com restaurante, cinema, snack-bar e tudo. Mais tarde veio a decadência e depois o abandono.
O edifício do Caleidoscópio em termos estéticos é praticamente o oposto da Casa Raúl Lino. Aqui a tradição é o que menos importa, com efeito, nesta caso reina o cimento, erguido à condição de material preponderante, e a geometria octogonal a tudo se impõe.
Em 2011 a Câmara Municipal de Lisboa adquiriu o edifício, sendo depois cedido à Universidade de Lisboa para aí instalar um Centro Académico. O projecto de reabilitação repôs as características originais da obra, acentuando a sua relação com o Jardim do Campo Grande. Correu tão bem, que até lhe atribuíram uma Menção Honrosa do Prémio Valmor no ano da sua inauguração, em 2016.
Foi também preservado o painel em relevo da ceramista Maria Emília Silva Araújo que se intitula “Homenagem a Lisboa”.
A propósito de cerâmica, mesmo no fim do Jardim do Campo Grande, situa-se o Museu Bordalo Pinheiro. O artista que dá o nome ao museu é o mais popular ceramista que alguma vez Portugal teve. É particularmente conhecida a personagem, por si criada, o Zé Povinho.
Bordalo Pinheiro definiu assim tal figura: "O Zé Povinho olha para um lado e para o outro e... fica como sempre... na mesma".
A sua principal característica é o gesto do manguito (o "Toma!"), representando a sua faceta de revolta e insolência. Em certa medida, é ótimo para se discutir cidadania e qual é a melhor forma de participarmos na vida da nossa comunidade, de modo a que não nos sintamos excluídos e, por consequência, revoltados e dados a ter atitudes insolentes.
Bordalo Pinheiro foi também o criador de inúmeros objetos cerâmicos que ainda hoje são abundantemente produzidos.
Joana Vasconcelos, uma artista contemporânea, atualizou essas peças de outros tempos. Para vermos o que fez, basta atravessarmos a estrada, e entrarmos no museu que fica do outro lado do Campo Grande, e mais concretamente no seu jardim.
Abaixo uma fotografia do jardim do Museu da Cidade, com obras de Bordalo Pinheiro cuja instalação foi pensada por Joana Vasconcelos. Ele há macacos, cobras, lagartos, sapos, lagostins, caranguejos e muitos outros bichos.
E pronto, já que estamos no Museu da Cidade, por que não terminarmos esta nossa visita de estudo, visitando-o, e assim percorrendo a história da cidade desde a antiguidade até à atualidade?
Já agora, mesmo mesmo para acabar, uma canção "O material tem sempre razão".
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